Joseph Ratzinger, num livro
escrito em 1979 - “A morte e o outro lado” -, explica de que modo a passagem de Pedro
a caminhar sobre o mar pode ser um paradigma de todo o pensamento cristão. Pedro vai ter com Jesus que o incita a caminhar; Pedro avança sobre o mar e começa a afundar-se; e é imediatamente socorrido pelo Mestre que o agarra. Trata-se de uma
passagem-modelo da conceção dialogante, aberta e universal de todos os aspetos
da doutrina cristã. Nesta forma dinâmica poderão ser vistas as relações entre o
criador e a criatura, entre a natureza e a graça, entre a alma e a essência
divina. O homem quer ir a encontro de Deus mas a visão de Deus está para além
do seu poder; o desejo tem de ser sustentado pela graça do
próprio Deus. Para Ratzinger, a passagem de Pedro a caminhar sobre as
águas é também um paradigma de toda a obra de S. Tomás de Aquino. S. Tomás
mantém a tensão da alma que tende ao seu Senhor e a necessidade da Sua graça
para poder alcançar. A passagem aponta para o caráter tensional do cristianismo
– o ‘caráter dialogal’, na formulação de Ratzinger -, porque mantém a mútua
correspondência entre Pedro e Jesus de Nazaré, entre o homem e Deus,
etc. Trata-se de respeitar a liberdade do homem e a atuação de Deus, sem
acentuações de um lado ou do outro.
De modo particular, é no quadro do ‘caráter dialogante’ que compreendemos o que o
cristianismo quer dizer com imortalidade da alma. Ao longo da
história da humanidade, muitos foram os que trataram da questão da imortalidade alma como se ela tivesse existência própria, sem estar referida a Deus. Os
filósofos gregos – Platão, Aristóteles – pensaram-na como uma substância à parte
do corpo, uma substância que precisa de ser separada e libertada para continuar
a viver. Numa conceção individual e, portanto, sem correspondência a Deus, a
alma é uma substância independente e isolada, e a sua imortalidade é uma
libertação sem Deus e sem comunhão. Muitas das nossas ideias sobre a alma e
sobre a sua imortalidade seguem ainda este filão antigo. Pensamos que a alma
cai do céu, que permanece provisoriamente neste corpo, e que se separa dele
depois da morte; pensamos que a alma está separada do corpo, que é oposta ao
corpo, à matéria, à impureza, etc. Esta dualidade é antiga mas não é cristã. Esta
preocupação da alma referida a si mesma, sem Deus é também muito contemporânea.
Muitos pensam a alma como interioridade espiritual, profundidade, subconsciente,
consciência, individualidade; e procuram a paz, a harmonia, o bem estar da
alma, sem a correspondência imediata a alguém. Percebemos com facilidade que se
trata de uma acentuação da subjetividade sem relação a Deus e aos outros. Se
acrescentarmos as estas perspetivas individualistas, os novos desafios trazidos
pela psicologia, pela psiquiatria, e pelas neurociências, o discurso sobre a
alma e a sua imortalidade torna-se ainda mais vago e tendente ao silêncio.
J. Ratzinger nota que também do
lado dos crentes, e sobretudo da parte de muitos teólogos do século XX, há um
discurso sobre a alma e a sua imortalidade que não tem nada a ver com a
tradição cristã. Muitos deles para fugirem à conceção individualista da alma
substituíram a conceção da imortalidade pela de ressurreição dos mortos. A
ideia seria acabar com a conceção pagã descrita em cima e que está enraizada
nas comunidades cristãs para pensar apenas naquilo que está escrito na Bíblia:
que Deus é um Deus de vivos, que ressuscitou a Cristo, e que nos ressuscita com
Cristo. Assim, para estes teólogos, a perspetiva mais bíblica e mais
compreensível seria afirmar que assim que morrermos seremos ressuscitados com
Cristo; que o último dia é o dia da nossa morte; e que o julgamento final é o
dia do nosso juízo. Além da nova conceção que emprega a ressurreição dos mortos
pela imortalidade da alma, outros teólogos, continua Ratzinger, afirmaram a inexistência
da alma, da sua sobrevivência, da sua imortalidade, preferindo dizer que é Deus
quem, na hora da morte, garante a continuidade e quem permite que continuemos a
viver. Se por um lado, houve acentuações da alma individual e da sua
imortalidade numa forma isolada de qualquer relação, por outro, houve também acentuações
da perspetiva de que é Deus quem pode tudo. Também deste lado se perdeu o
caráter dialogante, correspondente, da conceção cristã.
J. Ratzinger, no livro que
escreve em 1979, entre correntes tão distintas e acentuações tão fraturantes, mantém
o pensamento equilibrado da tradição eclesial, e afirma o caráter dialogante e
global da noção de imortalidade da alma. Em primeiro lugar, o então arcebispo
de Munique destaca o pensamento cristão das conceções antigas de alma: “esta
noção da alma é qualquer coisa de novo em relação a todas as outras conceções
antigas da psique. Ela é um produto da fé cristã e das suas exigências. (…) A
noção da alma tal qual a usamos na liturgia e na teologia até ao Vaticano II
não tem a ver com a Antiguidade (…). Ela é uma noção estritamente cristã; ela
não pode ser formulada a não ser na base da fé cristã”[1].
Ratzinger afirma então que no cristianismo, a imortalidade da alma só pode
existir numa perspetiva dialogante[2];
a alma não pode existir por si própria, mas para Deus; só faz sentido falar de
imortalidade se o homem tiver sido criado para a visão de Deus. O autor mostra,
de modo particular, como a perspetiva de S. Tomás sobre a alma – a ‘alma como
forma do corpo’, como ‘primeiro princípio de vida’, como ‘primeiro princípio de
operação’ -, é a perspetiva que melhor formula o pensamento bíblico e cristão.
No pensamento de Tomás de Aquino, a alma é princípio vital e universal, que
abre continuamente o corpo às operações, às pessoas, ao mundo, de forma
unitária, englobante e inseparável. Ratzinger afirma, nesse sentido, como S.
Tomás, que o homem foi criado para a visão de Deus, e, por essa razão, depois
da morte, tem de permanecer incorruptível porque Deus é incorruptível; tem de
permanecer imortal porque Deus é imortal. Por outras palavras, se o homem foi
feito para Deus, se o homem está aberto a toda verdade, bondade e beleza, terá
de continuar o seu caminho na passagem da morte; a abertura do homem ao
universal será correspondida pela abertura total de Deus ao homem. É nesse
sentido que J. Ratzinger afirma que “Deus não é um ‘átomo’, é relação porque é
amor; é por isso que Ele é vida”[3].
Se a imortalidade da alma só poderá ser sustentada a partir do caminho para Deus
numa perspetiva dialogante, terá de ser vista também numa perspetiva
englobante: “aquilo que é salvo é o homem na unidade do seu ser, a pessoa na
sua totalidade, a pessoa que, pouco a pouco, chega à maturidade da sua
existência corporal”[4].
J. Ratzinger também não embarca
na substituição fácil de conceitos, como a identificação da imortalidade da
alma com a ideia de ressurreição dos mortos, e prefere orientar-se pela
tradição que indica que à imortalidade da alma segue-se a ressurreição dos
mortos. A este respeito afirma que a teologia mais recente excluiu a
imortalidade da alma como ‘estado intermédio’[5].
O arcebispo explica desta forma: “se o último dia se identifica com o instante
da morte individual, se o considerarmos realmente como o fim geral da história,
a questão põe-se em saber o que sucede ‘entre-tempos’. Para a teologia católica
(…) a resposta a esta questão consiste em reenviar à imortalidade da alma”[6].
A imortalidade da alma é assim entendida como união a Cristo depois da morte,
união que é representada como luz, água, paraíso. Com S. Paulo, Ratzinger
afirma que os mortos vivem em Cristo: “trata-se da imortalidade dos ‘espíritos’
ou da alma como na tradição judia. O espírito unido a Cristo está na
expectativa da definitiva ressurreição”[7].
Depois da vida terrena espera-nos a imortalidade; e depois da imortalidade a
ressurreição que é a eternidade. O próprio Credo segue essa ordem - “creio na
ressurreição da carne e na vida eterna -, ou seja, é na ressurreição final que
surgirá o novo céu e a nova terra, e a vida eterna. Até lá estamos todos em
caminho.
2. A exortação pastoral de
Garrone
Se seguirmos os teólogos do
século XX, vamos notar nos seus escritos sobre a escatologia a observação de
que as comunidades cristãs têm dificuldade em receber a noção cristã de alma e
de imortalidade, numa dimensão dialogante e global, como vimos em cima. Mas dos
poucos escritos pastorais que se poderão encontrar sobre este assunto,
encontrei um que aborda diretamente este assunto. É a Carta pastoral do
arcebispo de Toulouse, o dominicano e cardeal Gabriel-Maria Garrone, aos seus
diocesanos por ocasião da Quaresma de 1962[8].
A carta do arcebispo é uma grande exortação para despertar as almas do
adormecimento e do silêncio. Vale a pena segui-lo. Depois de referir como a
sociedade hoje está muito bem informada pela ciência e pela técnica, diz “mas
sobre ela, sobre a alma, ela nunca esteve tão mal informada: dela já não se
sabe nada, ele (o homem) já não a tem (…) Quanta indiferença, ignorância,
silêncio! Parece que o homem perdeu o seu próprio coração (…) Enfim! Para um
grande número, esta palavra faz ainda algum sentido?”. E continua a exortação:
“É-se uma coisa, um instrumento, uma força, um número, para uma construção toda
ela material. (...) Diante desta morte lenta das almas, deste silêncio de
morte, todo o cristão tem de se comprometer”. Curiosamente, J. Ratzinger em
1979 faz a mesma observação referindo-se às esperanças materiais e aos
messianismos políticos da época. Diz o arcebispo de Munique na introdução o
livro escrito quando era arcebispo de Munique: “hoje podemos escrever uma escatologia
a partir das teologias do ‘avenir’, da esperança e da libertação, onde
praticamente todos os temas clássicos da doutrina dos fins últimos não
apareçam: nem céu nem inferno, nem morte nem imortalidade da alma (…)[9]”.
Mas voltemos ao cardeal Garrone:
“meus caros irmãos, nós não fomos feitos para adormecer, mas fomos feitos para
viver de olhos grandes e abertos, em plena luz, que é Deus quem no-la traz. (…)
Nós aspiramos sem saber a esta felicidade, na retidão, na pureza, para a qual o
nosso coração foi feito. (…) Quando o olho da alma está iluminado, tudo se
ilumina (Lc 11,24), quando a lâmpada está alumiada, tudo se alumia em casa (Mt
5,15). (…)”. É desta forma que o cardeal Garrone trata a alma como uma pessoa
em viagem, porque “Deus traça em cada um programa de desenvolvimento. Ele
distribui a cada um os talentos para explorarem, as graças que servirão ao bem de
todos. Ele colocou cada qual num ponto preciso do tempo, do espaço, onde deve exercer
o seu desenvolvimento”. Como dominicano, Garrone segue o caminho de S. Tomás, e
mostra como “a alma reenvia a qualquer coisa de maior do que ela própria, ela é
abertura, passagem, liberdade. Ela é recetiva à vida que vem de algum lado. (…)
A abertura ao infinito é aquilo que mais caracteriza a alma”. Portanto, “não
vos esqueçais de respirar, dizia, parece-me Péguy. Poderíamos glosar: ‘não
esqueçais que respirais’! Respirar é um todo ele um programa...”.
Deixar a alma respirar é todo ele
um programa!
[1] Joseph
Ratzinger, La mort et l’au-delà,
Paris, 1994, p. 156.
[2] Joseph
Ratzinger, p. 163.
[3] Joseph
Ratzinger, p. 164.
[4] Joseph
Ratzinger, p. 165.
[5] Joseph
Ratzinger, p. 137.
[6] Joseph
Ratzinger, p. 126.
[7] Joseph
Ratzinger, p. 153.
[8]
Gabriel-Maria Garrone, Retrouver son âme,
Lettre pastorale, 1962.
[9] Joseph Ratzinger,
p. 16.
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