segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

A ALMA, NA PERSPETIVA DE RATZINGER E NA EXORTAÇAO PASTORAL DE GARRONE

1. A alma na perspetiva de Joseph Ratzinger

Joseph Ratzinger, num livro escrito em 1979 - “A morte e o outro lado” -, explica de que modo a passagem de Pedro a caminhar sobre o mar pode ser um paradigma de todo o pensamento cristão. Pedro vai ter com Jesus que o incita a caminhar; Pedro avança sobre o mar e começa a afundar-se; e é imediatamente socorrido pelo Mestre que o agarra. Trata-se de uma passagem-modelo da conceção dialogante, aberta e universal de todos os aspetos da doutrina cristã. Nesta forma dinâmica poderão ser vistas as relações entre o criador e a criatura, entre a natureza e a graça, entre a alma e a essência divina. O homem quer ir a encontro de Deus mas a visão de Deus está para além do seu poder; o desejo tem de ser sustentado pela graça do próprio Deus. Para Ratzinger, a passagem de Pedro a caminhar sobre as águas é também um paradigma de toda a obra de S. Tomás de Aquino. S. Tomás mantém a tensão da alma que tende ao seu Senhor e a necessidade da Sua graça para poder alcançar. A passagem aponta para o caráter tensional do cristianismo – o ‘caráter dialogal’, na formulação de Ratzinger -, porque mantém a mútua correspondência entre Pedro e Jesus de Nazaré, entre o homem e Deus, etc. Trata-se de respeitar a liberdade do homem e a atuação de Deus, sem acentuações de um lado ou do outro.

De modo particular, é no quadro do ‘caráter dialogante’ que compreendemos o que o cristianismo quer dizer com imortalidade da alma. Ao longo da história da humanidade, muitos foram os que trataram da questão da imortalidade alma como se ela tivesse existência própria, sem estar referida a Deus. Os filósofos gregos – Platão, Aristóteles – pensaram-na como uma substância à parte do corpo, uma substância que precisa de ser separada e libertada para continuar a viver. Numa conceção individual e, portanto, sem correspondência a Deus, a alma é uma substância independente e isolada, e a sua imortalidade é uma libertação sem Deus e sem comunhão. Muitas das nossas ideias sobre a alma e sobre a sua imortalidade seguem ainda este filão antigo. Pensamos que a alma cai do céu, que permanece provisoriamente neste corpo, e que se separa dele depois da morte; pensamos que a alma está separada do corpo, que é oposta ao corpo, à matéria, à impureza, etc. Esta dualidade é antiga mas não é cristã. Esta preocupação da alma referida a si mesma, sem Deus é também muito contemporânea. Muitos pensam a alma como interioridade espiritual, profundidade, subconsciente, consciência, individualidade; e procuram a paz, a harmonia, o bem estar da alma, sem a correspondência imediata a alguém. Percebemos com facilidade que se trata de uma acentuação da subjetividade sem relação a Deus e aos outros. Se acrescentarmos as estas perspetivas individualistas, os novos desafios trazidos pela psicologia, pela psiquiatria, e pelas neurociências, o discurso sobre a alma e a sua imortalidade torna-se ainda mais vago e tendente ao silêncio.

J. Ratzinger nota que também do lado dos crentes, e sobretudo da parte de muitos teólogos do século XX, há um discurso sobre a alma e a sua imortalidade que não tem nada a ver com a tradição cristã. Muitos deles para fugirem à conceção individualista da alma substituíram a conceção da imortalidade pela de ressurreição dos mortos. A ideia seria acabar com a conceção pagã descrita em cima e que está enraizada nas comunidades cristãs para pensar apenas naquilo que está escrito na Bíblia: que Deus é um Deus de vivos, que ressuscitou a Cristo, e que nos ressuscita com Cristo. Assim, para estes teólogos, a perspetiva mais bíblica e mais compreensível seria afirmar que assim que morrermos seremos ressuscitados com Cristo; que o último dia é o dia da nossa morte; e que o julgamento final é o dia do nosso juízo. Além da nova conceção que emprega a ressurreição dos mortos pela imortalidade da alma, outros teólogos, continua Ratzinger, afirmaram a inexistência da alma, da sua sobrevivência, da sua imortalidade, preferindo dizer que é Deus quem, na hora da morte, garante a continuidade e quem permite que continuemos a viver. Se por um lado, houve acentuações da alma individual e da sua imortalidade numa forma isolada de qualquer relação, por outro, houve também acentuações da perspetiva de que é Deus quem pode tudo. Também deste lado se perdeu o caráter dialogante, correspondente, da conceção cristã.

J. Ratzinger, no livro que escreve em 1979, entre correntes tão distintas e acentuações tão fraturantes, mantém o pensamento equilibrado da tradição eclesial, e afirma o caráter dialogante e global da noção de imortalidade da alma. Em primeiro lugar, o então arcebispo de Munique destaca o pensamento cristão das conceções antigas de alma: “esta noção da alma é qualquer coisa de novo em relação a todas as outras conceções antigas da psique. Ela é um produto da fé cristã e das suas exigências. (…) A noção da alma tal qual a usamos na liturgia e na teologia até ao Vaticano II não tem a ver com a Antiguidade (…). Ela é uma noção estritamente cristã; ela não pode ser formulada a não ser na base da fé cristã”[1]. Ratzinger afirma então que no cristianismo, a imortalidade da alma só pode existir numa perspetiva dialogante[2]; a alma não pode existir por si própria, mas para Deus; só faz sentido falar de imortalidade se o homem tiver sido criado para a visão de Deus. O autor mostra, de modo particular, como a perspetiva de S. Tomás sobre a alma – a ‘alma como forma do corpo’, como ‘primeiro princípio de vida’, como ‘primeiro princípio de operação’ -, é a perspetiva que melhor formula o pensamento bíblico e cristão. No pensamento de Tomás de Aquino, a alma é princípio vital e universal, que abre continuamente o corpo às operações, às pessoas, ao mundo, de forma unitária, englobante e inseparável. Ratzinger afirma, nesse sentido, como S. Tomás, que o homem foi criado para a visão de Deus, e, por essa razão, depois da morte, tem de permanecer incorruptível porque Deus é incorruptível; tem de permanecer imortal porque Deus é imortal. Por outras palavras, se o homem foi feito para Deus, se o homem está aberto a toda verdade, bondade e beleza, terá de continuar o seu caminho na passagem da morte; a abertura do homem ao universal será correspondida pela abertura total de Deus ao homem. É nesse sentido que J. Ratzinger afirma que “Deus não é um ‘átomo’, é relação porque é amor; é por isso que Ele é vida”[3]. Se a imortalidade da alma só poderá ser sustentada a partir do caminho para Deus numa perspetiva dialogante, terá de ser vista também numa perspetiva englobante: “aquilo que é salvo é o homem na unidade do seu ser, a pessoa na sua totalidade, a pessoa que, pouco a pouco, chega à maturidade da sua existência corporal”[4].

J. Ratzinger também não embarca na substituição fácil de conceitos, como a identificação da imortalidade da alma com a ideia de ressurreição dos mortos, e prefere orientar-se pela tradição que indica que à imortalidade da alma segue-se a ressurreição dos mortos. A este respeito afirma que a teologia mais recente excluiu a imortalidade da alma como ‘estado intermédio’[5]. O arcebispo explica desta forma: “se o último dia se identifica com o instante da morte individual, se o considerarmos realmente como o fim geral da história, a questão põe-se em saber o que sucede ‘entre-tempos’. Para a teologia católica (…) a resposta a esta questão consiste em reenviar à imortalidade da alma”[6]. A imortalidade da alma é assim entendida como união a Cristo depois da morte, união que é representada como luz, água, paraíso. Com S. Paulo, Ratzinger afirma que os mortos vivem em Cristo: “trata-se da imortalidade dos ‘espíritos’ ou da alma como na tradição judia. O espírito unido a Cristo está na expectativa da definitiva ressurreição”[7]. Depois da vida terrena espera-nos a imortalidade; e depois da imortalidade a ressurreição que é a eternidade. O próprio Credo segue essa ordem - “creio na ressurreição da carne e na vida eterna -, ou seja, é na ressurreição final que surgirá o novo céu e a nova terra, e a vida eterna. Até lá estamos todos em caminho.

2. A exortação pastoral de Garrone

Se seguirmos os teólogos do século XX, vamos notar nos seus escritos sobre a escatologia a observação de que as comunidades cristãs têm dificuldade em receber a noção cristã de alma e de imortalidade, numa dimensão dialogante e global, como vimos em cima. Mas dos poucos escritos pastorais que se poderão encontrar sobre este assunto, encontrei um que aborda diretamente este assunto. É a Carta pastoral do arcebispo de Toulouse, o dominicano e cardeal Gabriel-Maria Garrone, aos seus diocesanos por ocasião da Quaresma de 1962[8]. A carta do arcebispo é uma grande exortação para despertar as almas do adormecimento e do silêncio. Vale a pena segui-lo. Depois de referir como a sociedade hoje está muito bem informada pela ciência e pela técnica, diz “mas sobre ela, sobre a alma, ela nunca esteve tão mal informada: dela já não se sabe nada, ele (o homem) já não a tem (…) Quanta indiferença, ignorância, silêncio! Parece que o homem perdeu o seu próprio coração (…) Enfim! Para um grande número, esta palavra faz ainda algum sentido?”. E continua a exortação: “É-se uma coisa, um instrumento, uma força, um número, para uma construção toda ela material. (...) Diante desta morte lenta das almas, deste silêncio de morte, todo o cristão tem de se comprometer”. Curiosamente, J. Ratzinger em 1979 faz a mesma observação referindo-se às esperanças materiais e aos messianismos políticos da época. Diz o arcebispo de Munique na introdução o livro escrito quando era arcebispo de Munique: “hoje podemos escrever uma escatologia a partir das teologias do ‘avenir’, da esperança e da libertação, onde praticamente todos os temas clássicos da doutrina dos fins últimos não apareçam: nem céu nem inferno, nem morte nem imortalidade da alma (…)[9]”.

Mas voltemos ao cardeal Garrone: “meus caros irmãos, nós não fomos feitos para adormecer, mas fomos feitos para viver de olhos grandes e abertos, em plena luz, que é Deus quem no-la traz. (…) Nós aspiramos sem saber a esta felicidade, na retidão, na pureza, para a qual o nosso coração foi feito. (…) Quando o olho da alma está iluminado, tudo se ilumina (Lc 11,24), quando a lâmpada está alumiada, tudo se alumia em casa (Mt 5,15). (…)”. É desta forma que o cardeal Garrone trata a alma como uma pessoa em viagem, porque “Deus traça em cada um programa de desenvolvimento. Ele distribui a cada um os talentos para explorarem, as graças que servirão ao bem de todos. Ele colocou cada qual num ponto preciso do tempo, do espaço, onde deve exercer o seu desenvolvimento”. Como dominicano, Garrone segue o caminho de S. Tomás, e mostra como “a alma reenvia a qualquer coisa de maior do que ela própria, ela é abertura, passagem, liberdade. Ela é recetiva à vida que vem de algum lado. (…) A abertura ao infinito é aquilo que mais caracteriza a alma”. Portanto, “não vos esqueçais de respirar, dizia, parece-me Péguy. Poderíamos glosar: ‘não esqueçais que respirais’! Respirar é um todo ele um programa...”. 

Deixar a alma respirar é todo ele um programa!

 



[1] Joseph Ratzinger, La mort et l’au-delà, Paris, 1994, p. 156.

[2] Joseph Ratzinger, p. 163.

[3] Joseph Ratzinger, p. 164.

[4] Joseph Ratzinger, p. 165.

[5] Joseph Ratzinger, p. 137.

[6] Joseph Ratzinger, p. 126.

[7] Joseph Ratzinger, p. 153.

[8] Gabriel-Maria Garrone, Retrouver son âme, Lettre pastorale, 1962.

[9] Joseph Ratzinger, p. 16.

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