quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Espero receber-Te neste Natal / Espero que me convenças do pecado!

 

Espero receber-Te neste Natal

Nesta segunda meditação de advento gostaria de dizer como Deus se revela numa Palavra; gostaria de falar do mistério de Deus que continua a revelar-se na Palavra que nos sustém e nos recria. Todos nós fizemos a experiência de que certas pessoas nos disseram tudo numa palavra; e fazemos também a experiência do poder criador da palavra. Há palavras verdadeiramente transformantes que ficam dentro de nós; ou melhor, que nos trazem a vida, a vida de uma pessoa como entrega e promessa. Um amigo que nos liga não dá apenas informações mas dá-se a ele próprio; um pai que diz “meu filho” manifesta na palavra uma vida totalmente entregue e prometida; um homem que diz “amo-te” entrega-se e promete-se nessa palavra, etc. Poderíamos estender os exemplos a muitas situações que causam o impacto de uma transformação, de uma mudança interior, ou de uma nova relação pessoal. Deus revela-se na palavra da mesma maneira; ao dizer uma palavra no evangelho, no kérigma, nos sacramentos da Igreja, na vida dos irmãos e das circunstâncias da vida, Ele dá-se. Quando Deus fala, Deus diz-se; quando Deus se dá, Deus promete-se, a si próprio. Deus não diz uma palavra que tenha uma mensagem, uma informação, uma orientação; na sua palavra, Deus não vai dizer-te qual o caminho a seguir, se estás bem ou se estás mal, se deves fazer isto ou fazer aquilo. Quer dizer, Deus não vai acrescentar absolutamente nada àquilo que já disse em Seu Filho Jesus Cristo Nosso Senhor. Quando Deus se revelar na palavra deste Natal não vai trazer soluções para nada nem ninguém. Vai dizer uma palavra e isso nos basta. S. João da Cruz diz a este respeito: “fixa os olhos somente nEle, porque foi nEle que restringi todas as coisas: nEle eu disse tudo e revelei tudo. Tu encontrarás nEle mais do que tu possas desejar e pedir. Tu pedes uma palavra, uma revelação, uma visão parcial: se prenderes os olhos nEle, tu encontrarás tudo Nele. Ele é toda a minha palavra, toda a minha resposta, ele é toda a minha visão e toda a minha revelação. Eu tudo vos respondi, tudo disse e tudo manifestei, tudo revelei, dando-vos por irmão, por companheiro, por mestre, por herança, por palavra e por recompensa” (S. João da Cruz, A subida do Carmelo, Livro II, cap, XXII, n.4).

Lembro-me perfeitamente de como Deus se me disse numa palavra. Lembro-me ainda hoje do impacto que criou em mim no primeiro ano do seminário a proclamação da palavra “tu és o meu filho, eu hoje te gerei”; ou o estremecimento de ter chamado a Deus de “Pai” pela primeira vez no segundo ano de seminário; ou o momento em que foi pronunciada a palavra da oração consecratória “constitui este vosso servo na dignidade de presbítero, renovai em seu coração o Espírito de santidade (…)”. Verdadeiramente, uma palavra traz uma pessoa divina que se entrega e se promete; numa palavra a pessoa não fica aquém e a palavra além; pessoa e palavra são o mesmo e ficam o mesmo dentro de nós. Foi essa a experiência do centurião de Cafarnaúm quando disse “Senhor, diz uma só palavra e o meu servo será salvo” (Mt 8,8). Ainda que a vida esteja cheia de contradições entre a existência e a palavra, entre a existência e uma missa, Deus continuar a revelar-se na palavra; faço essa experiência da revelação da palavra na eucaristia, na escritura, nas aulas, na escuta das pessoas; quando me sentei por aqui a ouvir as histórias da JMJ há uma palavra que salta para mim, que me diz respeito e que me toca pessoalmente. Ainda agora um pastor evangélico sentou-se ao meu lado e a palavra foi como que uma revelação. A palavra dos irmãos é como que uma revelação. A palavra fez um caminho extraordinário: ela foi pronunciada, criou impacto, foi interiorizada, convenceu do pecado, fez voltar para Cristo, fez voltar a chamar Pai e reconhecer-me como Filho. Este percurso da palavra é o percurso da graça! É o mesmo percurso da graça! Basta recordar Isaías para perceber o percurso: “tal como a chuva, tal como a neve, desce dos céus e não volta para lá sem ter irrigado a terra, sem a ter fecundado e feito produzir, de modo a dar semente para aquele que semeia e pão para aquele que come, assim é a minha palavra, quando sai da minha boca: não volta para mim em vão sem ter feito aquilo que Eu quis e sem realizar com êxito aquilo para que a enviei” (Is 55,10-11). Nós, os cristãos, leigos, consagrados, padres, somos umas testemunhas privilegiadas de que Deus se continua a revelar na palavra, por ela mudando vidas e situações interiores, de uma forma fundamental. Somos testemunhas da eficácia da palavra, observadores da força da palavra.

Neste Natal vamos ouvir algumas leituras sobre a Palavra, sobretudo na leitura do prólogo do evangelho de S. João – que será o evangelho do dia de Natal - e a leitura do prólogo da primeira carta de S. João – que será a primeira leitura do terceiro dia da oitava do Natal, o dia do apóstolo S. João. S. João é o apóstolo e o evangelista do testemunho de Jesus de Nazaré, o Verbo de Deus encarnado: Jesus veio dar o testemunho da verdade (Jo 3, 11; 3,32; 18,37) veio dar testemunho por meio das obras de que o Pai o enviou, e do que viu e ouviu a seu Pai (Jo 5,36; 7,7; 10,25); Ele é de facto a testemunha fiel (Ap 1,5). O próprio evangelho de S. João descreve por várias vezes João batista como a testemunha da luz que havia de vir (Jo 1,7; 3,26; 5,33). Por fim, falará dos crentes como as testemunhas de verdade.

Escutemos o prólogo do evangelho de S. João (Jo 1,1-18)

“No princípio era a Palavra e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus. Ela estava, no princípio, junto de Deus. Por meio dela todas as coisas surgiram, e sem ela nem uma só coisa do que existe surgiu. Nela estava a vida e a vida era a luz dos homens; a luz brilha nas trevas e as trevas não se apoderaram dela.

Surgiu um homem, enviado por Deus: o seu nome era João. Ele veio para um testemunho: para dar testemunho da luz, para que todos, por meio dele, acreditassem. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.

A Palavra era a luz verdadeira, que ilumina todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo e o mundo por meio dela surgiu; mas o mundo não a conheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram. Mas a todos quantos a receberam deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus: àqueles que acreditam no seu nome. Estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.

E a Palavra fez-se carne: estabeleceu a tenda entre nós e contemplámos a sua glória; glória como unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade"».

Escutemos também o prólogo da primeira carta de S. João (1Jo 1,1-4):

“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós, que vimos e ouvimos é, pois, o que também vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco.

Um dos aspetos que mais chama a minha atenção neste evangelho e nesta carta é que em ambas somos chamados à contemplação do mistério de Deus que se fez homem por amor de nós: “nós contemplámos a sua glória; glória como unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” e “o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram (…)”. Contemplar quer dizer observar fixamente, olhar com muita atenção. A contemplação é o fruto da intimidade, é o efeito da união com Deus; é gustatio, é fruitio… Na experiência prática traduz-se como espanto pelo mistério, admiração pela humildade de Deus, assombro pelo kenose do Verbo. Mas muitas das nossas experiências sensíveis de Natal poderão não ser contemplação verdadeira. Em todos os natais experimentamos uma espécie de espanto, de estupefação, pela grandeza do mistério, e também pela beleza da liturgia, do presépio, do cântico; concebemos a contemplação habitualmente como uma espécie de experiência estética. A mim faz-me lembrar as muitas noites de Natal que entrei na Igreja paroquial às duas ou três da manhã para contemplar o estado de beleza e de esplendor onde acabámos de celebrar os mistérios de Deus... Isso não é contemplação, é admiração; e também não é fruição, é prazer! A contemplação da glória de Deus é a resposta a quem se revelou numa palavra que faz sentido, que mudou qualquer coisa de essencial e que ainda hoje faz sentido! Apresente-vos desta forma o risco do Natal. Trata-se do risco de admirar a estética do natal, do presépio, dos arranjos, dos cantos, da liturgia, sem esperar a revelação de Deus numa palavra. Os nossos sentidos estão orientados para admirar no tempo do natal: admirar o pensamento de Deus e a lógica da encarnação, ver as coisas bonitas que conseguimos fazer, sentir a alegria e a comunhão dos irmãos. Mas a palavra precede o pensamento e os sentidos, a palavra é anterior a todas essas coisas. Não é a Quaresma que é o tempo da palavra; é o Natal que é o tempo da revelação da Palavra.

Mas o mistério do Natal é um mistério de proclamação de uma palavra de vida, é o mistério do pronunciamento da única Palavra de vida: “tu és o meu filho, eu hoje te gerei”. Neste tempo, na liturgia da Igreja, na reunião das famílias, nos encontros que vamos ter, Deus continua a pronunciar, a revelar, a sua palavra única a cada um de nós. O prólogo do evangelho depois de sublinhar o testemunho de João - Ele veio para um testemunho: para dar testemunho da luz (…) – afirma com toda a clareza que Jesus é a Palavra que ilumina todo o homem que vem ao mundo (…). Também a epístola de S. João confessa a revelação da vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós. O prólogo do evangelho de S. João fala também dos crentes como as testemunhas de verdade: todos quantos a receberam deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus; àqueles que acreditam no seu nome deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. E também o prólogo da primeira epístola nos diz que o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos.

Neste Natal não somos apenas convidados a uma experiência estética e sensível de admiração e de espanto pelo nascimento do Verbo de Deus na nossa natureza humana. Somos convidados a esperar a sua vinda numa palavra que nos traz Ele mesmo e a sua promessa. Ele mesmo e a sua promessa não fora mas dentro de nós.

 


Espero que me convenças do pecado!

No início desta pequena recoleção, escolhi, por ser sexta-feira, o tema do pecado, e isso vai dar ideia de que estamos na Quaresma e não no Natal! Fiz essa escolha porque não dá para esperar Jesus com o coração ocupado com muitas coisas; é preciso fazê-las recuar para que a espera e o acolhimento da Palavra eternamente pronunciada possa acontecer. Proponho por isso uma espécie de meditação quaresmal de inverno, e, para a primeira meditação, proponho o texto de Jo, 5,1-10. Jesus, numa das festas dos judeus, sobe a Jerusalém, e perto da porta das ovelhas, entra na piscina de Bethesda, onde jaz uma multidão de enfermos, cegos, coxos, impotentes, que esperavam a ondulação da água. Escutemos o texto: “Estava ali um homem enfermo há trinta e oito anos. Vendo-o estendido e tomando conta de que ele estava naquele estado há tanto tempo, diz-lhe: “queres curar-te?”. O homem responde-lhe: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina quando a água é agitada, e no tempo em que é, um outro avança antes de mim”. A narrativa teológica de S. João liga-nos ao livro do Deuteronómio, no capítulo 1, quando Moisés recebe a instrução do Senhor: “já permanecestes muito tempo nesta montanha. Voltai-vos e parti; e entrai na na Arabá, na montanha e na planície costeira, no Négueb e na beira do mar, a terra dos cananeus e o Líbano e até ao grande rio, o rio Eufrates. (…) Entrai e tomai posse da terra que o SENHOR jurou aos vossos pais, Abraão, Isaac e Jacob” (Dt 1,6-8). Mas eles, sem conhecimento de Deus, reuniram doze homens das 12 tribos de Israel e foram explorar previamente essa terra prometida. Trouxeram os frutos da terra e com eles o pavor dos ‘homens de grande estatura, dos altos dignatários e das cidades bem organizadas’ que estavam do lado de lá. Por não terem escutado a voz de Deus e por terem estabelecido o que deviam fazer, sem o seu Senhor, nenhum deles atravessou da montanha do Horeb: “o SENHOR ouviu o rumor das vossas palavras, encolerizou-se e jurou, dizendo: “Nem sequer um dos homens desta geração perversa verá a terra boa que jurei dar aos vossos pais (…) Foram trinta e oito anos – narra Moisés no Livro do Deuteronómio - aqueles em que caminhámos desde Cadés-Barnea até atravessarmos a torrente de Zéred, até desaparecer toda a geração de homens de guerra do meio do acampamento, conforme o Senhor lhes tinha prometido com juramento” (Dt2,14-16).

Israel ficaria entre Cardés e Arnon trinta e oito anos, na terra estrangeira do Seïn e de Moab, comprando a comida e a bebida ao preço da prata. Israel tinha-se tornado impotente. O meu olhar prende-se com atenção ao estado em que ficou o povo de Israel, privado de Deus e ferido na sua realização como povo. Foram estes os dois bens – o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob e a identidade como povo da aliança – que Israel perdeu. Ficou privado de Deus e agora encontra-se sem o favor do Senhor, sem o seu poder, sem a sua glória, sem a sua presença, a sua luz, os seus dons e os seus carismas. Sem Deus, Israel ficou privado da graça... Mas ficou também ferido na sua própria essência de povo eleito, de povo da promessa, porque encontra-se agora enfraquecido, impotente e bloqueado. Israel deixou de ser uma possibilidade, um projeto de realização. Israel não existe…

O homem que encontramos enfermo na piscina de Bethesda está na mesma situação de Israel. É um enfermo destinado à morte se ninguém lhe pegar. Também ele está privado de Deus e da sua graça; já não tem vocação, nem religião, nem dons nem carisma. E também está ferido na sua realização pessoal de tal forma que é incapaz de fazer alguma coisa por si; não tem beleza nem aspeto de homem, já não pede nada, nem sequer ajuda a Jesus. Ele murmura: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina, e quando tento já outros lá chegaram”. Assim, como a terra da promessa estava à frente do povo de Israel, assim Jesus está mesmo à frente do enfermo. À privação da intimidade com Deus, e à ferida na possibilidade da felicidade, a S. Tomás de Aquino chama de efeitos do pecado mortal[1]. São duas ordens diferentes de afetação – uma é espiritual e a outra humana – que ficam diminuídas na escolha errada que uma pessoa possa fazer; a privação não é infligida por Deus nem a ferida infligida por um outro: eu tomei decisões erradas que trouxeram consequências que podia prever. Mais do que uma coisa ou do que um ato, o pecado é uma não resposta a Deus e ao próximo, é uma interrupção do diálogo, ou melhor, é um ficar a falar sozinho, e que acaba por gerar ruturas muito sérias e muito profundas na vida – a rutura com Deus, com o meu próximo e com a minha humanidade.

S. Tomás de Aquino, ao falar do pecado mortal, toma a passagem de Lucas que diz “um homem descia de Jerusalém para Jericó” (I-II,q.85,a.1). O viajante da parábola deixa o caminho da cidade santa de Jerusalém, a sua mulher e os seus amigos, para ir para a cidade licenciosa de Jericó. “Um homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de salteadores que, depois de o despirem e lhe baterem, se foram embora, deixando-o meio morto (Lc 10,30). Diz S. Tomás que esse homem ficou despido, “privado” da graça, das virtudes da fé, da esperança, da caridade, dons espirituais e dos carismas de Deus; e foi deixado quase morto, que significa, ter sido deixado “ferido” na sua natureza humana, diminuído na sua iniciativa, na sua liberdade, na possibilidade de se levantar. Nós conhecemos uma outra parábola de S. Lucas – a parábola do filho pródigo – que pode ajudar-nos a compreender melhor os efeitos das nossas opções erradas: “o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma região distante e aí esbanjou os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ele gastar tudo, surgiu uma grande fome naquela região, e ele começou a passar privações. Uniu-se, então, a um dos cidadãos daquela região, que o mandou para os seus campos guardar porcos. Desejava saciar-se com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava” (Lc 15,13-16). Também nesta passagem se nota como o filho foi “privado” de todos os bens da família e “ferido” na sua condição de filho. Ele auto privou-se da presença do pai e auto excluiu-se da sua casa de família, e ficou auto feriu-se gastando-se e consumindo-se com coisas medíocres.

O enfermo da piscina de Betesda, o viajante da parábola e o filho pródigo têm histórias muito parecidas. Abandonaram a Deus de tal ordem que ficaram impedidos de continuar por eles próprios o caminho de vida. Não fosse o próprio Jesus a curar o enfermo de Betesda, não fosse o bom samaritano a passar pelo caminho, e a memória que o filho ainda tinha da casa, e eles nunca teriam voltado a caminhar. Os três homens estavam impuros, feridos, sujos; tinham-se distanciado muito da casa, dos seus amigos e de Deus. Infelizmente, os evangelhos são unânimes no descrever que ficaram os três no chão: um estendido no catre, outro na estrada de Jericó, outro no lamaçal dos porcos. Mas, diz Jesus, no princípio não era assim, e, portanto, se Israel tivesse entrado na terra da promessa, e se o filho mais novo tivesse permanecido em casa do pai, e se o viajante de Jericó tivesse peregrinado para à cidade santa de Jerusalém, a alma seria límpida e radiante. S. Tomás diz, a este propósito, que o pecado – o pecado mortal - imprime uma mancha ou uma sujidade na alma (I-II,q.86,a.1). De facto, a graça é límpida, é transparente; o pecado é cegueira, é treva. A graça mete-nos na intimidade com Deus, o pecado faz-nos abandoná-la. Quando a luz de Deus brilha na alma, iluminam-se os pensamentos, as escolhas e as ações; tudo ganha luz! Quando a graça ilumina a alma, sentimos que somos chamados a coisas maiores do que nós próprios, destinados à união e à glória de Deus. Quando os inquisidores perguntaram a Joana d’Arc se ela estava em estado de graça, ela respondeu-lhes: “perguntais-me se estou em estado de graça. Bem, se estou, Deus me guarde. Se não estou, Deus me meta![2]”.

Sinto muito que neste advento preciso de ser convencido do pecado! A partir da minha própria experiência, sinto a privação da graça e a ferida da natureza. Quando alguém afirma uma coisa destas pensamos logo no que é que ele andou a fazer, nas ações graves que praticou, sobretudo relacionadas com o sexto mandamento… O papa Francisco diz a respeito desta nossa tendência para sexualizar tudo que “isso é um pecado, mas não é dos pecados mais graves, porque os pecados da carne não são os mais graves. Os mais graves são aqueles que têm mais 'angelicalidade': a soberba, o ódio[3]. A soberba e o ódio auto privam-nos da intimidade com Deus porque Deus é amor. Às vezes também auto privo-me da união a Deus, na falta de fé, de esperança e de caridade; na falta de intimidade e de comunhão com Cristo e com os irmãos; na falta de dom e da generosidade de mim mesmo. Doutras vezes, sinto também a mancha da alma, a ferida na realização da minha humanidade, na falta de luz, de entendimento, de ciência, de sabedoria, de discernimento, de prudência, de justiça, de temperança e de fortaleza. Sinto neste advento as desculpas que arranjo para não rezar, não ler a escritura, não meditar, não estar na missa como deveria, os esquemas de desvio, de fuga, de vitimização, de murmuração de culpabilização, etc. Sinto que a privação de Deus e a diminuição da nossa alegria e da nossa felicidade se devem muito ao pecado que habita na nossa carne e no nosso espírito! Elas devem-se às ruturas, aos abandonos, de agora ou de outrora, de Deus, das pessoas, da nossa vocação pessoal. A partir de S. Tomás, posso dizer, que a razão fica sem luz e entra a ignorância do caminho a seguir; a vontade fica sem justiça e entra a malícia das minhas intenções; o irascível fica sem força e entra a fraqueza; o concupiscível fica sem temperança e entra a luxúria (I-II,q.85,a.3). Não há outro caminho para Belém a não ser o convencimento do nosso pecado.

A leitura de uma passagem de S. João diz neste sentido: “é melhor para vós que Eu parta, pois, se não partir, o Paráclito não virá a vós; mas, se for, enviá-lo-ei a vós. E, quando Ele vier, denunciará o mundo quanto ao pecado, quanto à justiça e quanto ao julgamento: quanto ao pecado, porque não acreditam em mim; quanto à justiça, porque vou para o Pai e já não me vereis; quanto ao julgamento, porque o Príncipe deste mundo está julgado” (Jo 16,7-11). Precisamos muito de ser convencidos contra o pecado, precisamos muito de contemplar a Deus e a sua graça para movermos o nosso espírito contra o pecado. Com a ajuda de Deus, precisamos de recuar os pecados do espírito – o orgulho (que é o primeiro), a inveja, a ira, a avareza, a acédia (preguiça), e os pecados dos sentidos a gula e a luxúria – porque todos eles nos levam a ruturas e a rejeições muito sérias e muito importantes nas nossas vidas[4]. Neste quase-termo do advento peçamos a Jesus que venha ter connosco como foi ter com o enfermo da piscina de Betesda, que faça retirar todo o nosso pecado, e nos permita reencontrá-lo no templo de Jerusalém que este tempo do Natal: “Jesus encontrou-o no templo e disse-lhe: «Eis que ficaste são; não peques mais, para que não te aconteça algo pior” (Jo 5,14). Não é uma ameaça; é uma exortação! Jesus não quer simplesmente que ele fique mais enfermo do que já era. Foi uma bela meditação ‘na quaresma de inverno’… ! Libertos assim do pecado que habita na nossa carne, venha habitar a palavra invisível de Deus!


Les bergers, conduits par l´´etoile, se rendent à Bethléem, Octave Penguilly, 1883. Museu de Orsay.

 



[1] S. Tomás chama certos pecados de ‘mortais’ ou ‘capitais’, não porque provoquem diretamente a morte física ou porque nos levem ao inferno para toda a eternidade… Chama-os de mortais por analogia, porque assim como a enfermidade leva à morte se não for curada a tempo, assim o pecado leva à rutura, com Deus, com o próximo e comigo mesmo se não for sarado a tempo (I-II,q.88,a.1).

[2] Xavier Thevenot, Les péchés, p. 61.

[3] Conferência de imprensa no retorno da viagem à Grécia a 6-12-2021.

[4] S. Tomás fala da rutura das três ordens da nossa vida; Deus, o próximo, o próprio, porque cria aversão a Deus, rejeição do próximo, remorso no próprio.

 

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