Em formação. Talvez a forma mais concreta de dar a entender o que segue é tirar um exemplo do dia a dia. Uma pessoa pode querer ser pianista, e terá de estudar piano para chegar ao fim a que se propôs; a articulação do querer e do conhecer, de forma alternada, sucedânea e habitual, no pleno uso da liberdade, fará com que um dia chegue a tocar bem piano. Assim também, a operação conjunta de Deus e do livre arbítrio (vontade e intelecto) integram novos hábitos de graça, em ordem a receber graça sobre graça (Jo 1,16).
I. A Graça, nas missões invisíveis do Filho e do Espírito à alma humana, em S. Tomás
1. A graça primeira é Jesus Cristo e a graça segunda é o amor de Deus derramado nos corações.
A graça primeira é o amor, a cáritas, com que Deus nos entregou o Seu Filho. O amor de Deus derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que habita em nós (Rm.5,5) é a graça segunda por meio da qual participamos na natureza divina.
2. O desígnio tripartido: criação, recriação e consumação.
Deus é o dador de ser (I-II,q.112,a.1), é nEle que nos movemos e existimos (At.17,28). Deus é fonte de bondade e é a causa de toda a bondade, de tal ordem que os atos e os efeitos da bondade lhe pertencem como a causa primeira de todas as coisas. Deus é razão e é a causa de toda a inteligibilidade do mundo, de modo que os atos e os efeitos das criaturas racionais lhe pertencem como causa primeira de todas as coisas. Acresce que às criaturas racionais, Deus comunica também a luz natural pela qual possuem intuição das coisas ideais (I-II,q.109,a.1). S. Tomás chama a este modo comum de participar das criaturas no Criador de semelhança natural – que é o modo comum de participação (I,q.43,3). Uma vez que possui a bondade e a racionalidade, o homem foi criado para coisas maiores e mais sublimes. Tomás de Aquino pensou o homem 'à imagem e semelhança de Deus' (Gén 1,26). Cristo é a verdadeira Imagem - Ele é o esplendor da glória de Deus e a imagem da sua substância (Heb 1,3) - e o homem é a imagem da Imagem, a semelhança da Imagem. Não se trata de uma semelhança de ordem física, mas de uma semelhança de ordem racional.
Os autores medievais, anteriores a S. Tomás, pensaram o dom da criação e da conservação na existência, como o primeiro bem, a gratia similitudinis (graça da semelhança). Esse primeiro dom natural foi apelidado de graça primeira, gratia creatoris (graça do criador), gratia creatrix (graça criadora), conditoris gratia (graça fundante). Os primeiros dons de Deus são os dons da natureza e os segundos dons são os da graça. A este respeito, Robert Javelet (em Image et Ressemblance, de Saint Anselme a Alain de Lille, Éditions Letouzey, Strasbourg, 1967, p. 320-346) diz que a gratia creatoris "é a graça do criador ou a graça criadora, que é um dinamismo em ato, não o resultado”(p. 324). À graça criadora foi acrescentada, segundo o autor, por S. Bernardo, a gratia media - "la grâce moyen (p. 325) - que é, no fundo, a graça atual antes da graça santificante, que também é gratia adjuvans e gratia coadjuvans, ambas atuantes no livre arbítrio, porque 'o homem foi criado livre mas precisa da ajuda da gratia adjuvans e coadjuvans'.
Os autores do século anterior a S. Tomás, distinguiram - sem separar - a ordem da criação natural e a ordem da recriação sobrenatural, mas numa linha de continuidade, porque Deus é o criador, o conservador e o fim último do homem. Trata-se de um único desígnio, de uma única história do homem, e de um único dinamismo inserido na criatura humana, que a orienta para o Seu Criador. Mesmo que a natureza enferme do pecado original, a semelhança natural é atraída pela verdadeira Imagem, de forma que a vocação do homem é sobrenatural. Alguns autores pensaram uma única ordem de graça, um único dinamismo de criação e de recriação, de semelhança natural e de semelhança sobrenatural (Hugo de S. Vítor), como um movimento de semelhança bipartida (S. Bernardo), um movimento de conhecimento natural de Deus e de conhecimento sobrenatural de Deus. Neste dinamismo podemos distinguir mas não separar; distingue-se um princípio (incipit) e um aperfeiçoamento (perficitur), uma preparação (preparatio) e um espelho (speculum) (Wobéron).
Esta dinâmica da criação natural e da recriação por graça vai ser depois estendida ao seu termo unitivo, o terceiro termo, de forma que se pode falar de uma criação, de uma recriação e de uma semelhança (Thomas de Citeaux), de uma criação, recriação e glória, ou criação, conformação e consumação, ou liberdade natural, liberdade de graça e liberdade de glória (S. Bernardo) de uma visão terrestre, uma visão espiritual, e uma visão celeste (Wobéron), de creatio, apparitio e laetitia (Adam Scott).
O processo dinâmico e tripartido - como creatio, recreatio e consumatio - dirige-nos para a possibilidade de vermos a graça também numa perspetiva dinâmica e tripartida, como gratia creatrix, gratia santificans e gratia unionis. Curiosamente, na sua dinâmica interna dentro da natureza humana, a ação da graça será também tripartida: purificação, iluminação e perfeição, ou remissão, conformação e união. Veremos estes aspectos da graça mais à frente, mas fiquemos com advertência de Javelet por inteira: "A graça é portanto a ação de Deus, recortada pelos autores espirituais, segundo as suas operações sucessivas: criação, restauração, consumação. Não convém exagerar nas distinções que são admitidas pela tradição, ou inventadas segundo as necessidades do momento, de maneira a classificar o real. Os pré escolásticos classificaram segundo normas móveis, simbólicas, ... e pelo prazer de classificar. A graça de Deus é criadora e santificadora" (sicut, p. 343).
3. Deus criou o homem capax de receber a graça.
S. Tomás diz que o homem foi criado para a visão de Deus tal como Ele é. O fim último do homem é a visão beatífica e eterna da essência de Deus: “sendo espírito, o homem é capaz de Deus. Feita à imagem de Deus, a alma possui uma aptidão para receber a beatitude perfeita” (I,q.93, a.1). O santo doutor pensa, como os autores do seu século, a criação do homem como um desígnio que passa pela criação, pela santificação e culmina na perfeição da união. No entanto, não é pela aptidão natural nem pela luz da razão (a que S. Tomás chama também de graça comum), que o homem pode ver a essência de Deus (I-II,q.109,a.3). É necessária uma ‘transformação interior’, uma determinada ‘semelhança’ com Deus e uma determinada ‘participação na natureza divina’ para esbater a desproporção entre sobrenatural e natural. Essa transformação, semelhança ou participação, é sempre sobrenatural, por ser obra da graça de Deus. Note-se que apesar de as pessoas naturalmente não poderem chegar a Deus, são naturalmente capazes de receber a graça[1], até porque ela própria antecede sempre a natureza, predispondo-a por meio de moções, inspirações e apelos, à elevação sobrenatural[2].
S. Paulo diz que “Deus predestinou-nos para sermos seus filhos adotivos em louvor e glória da sua graça” (Ef.1,5). Deus ama-nos, como diz S. Tomás, em primeiro lugar, com um ‘amor comum’, como ama todas as coisas que criou e que existem; e, depois, Deus ama-nos com um ‘amor especial’ pelo qual eleva a criatura a um bem divino que excede a natureza (I-II,q.110,a.2). S. Tomás reconhece que Deus é imenso e infinito para se tornar presente na criatura e que esta é demasiado pequena para O receber. Desta forma, Deus opera na alma humana de acordo com as suas possibilidades, e numa progressiva conformação a Cristo. Como vamos ver, Deus apresenta-se à criatura humana a partir das faculdades intelectivas e volitivas; 'aparece' como um ‘objeto’ a ser percebido e desejado pela inteligência e pela vontade. Primeiro, torna-se reconhecível nos seus atributos pessoais, para se tornar depois amável e visível na sua própria essência.
Para S. Tomás de Aquino, o ponto de contacto entre Deus e a alma humana são as faculdades do livre arbítrio, as faculdades da vontade e do conhecimento. De alguma forma, estão implícitos outros pontos de contato entre Deus e a criatura racional, como o espírito ou a fé. Mas o seu argumento central é ‘como o conhecido dentro do cognoscente, e o amado dentro do amante’ (I,q.43,a.3), assim Deus, tornando-se Ele próprio, objeto do amor e do conhecimento, é recebido e apreendido pelas faculdades humanas; e entra dentro do próprio ato de conhecer e de num novo modo invisível, um novus modus essendi, ou specialis modus. Será este o percurso que desejamos fazer, procurando responder às perguntas: que tipo de presença especial estamos a falar? Como é essa presença totalmente nova e operativa, a que S. Tomás chama 'graça criada'? Como se dá o contato entre Deus e a alma humana? Como interagem e se articulam mutuamente? No fundo, procuraremos saber como é que Deus se torna na alma humana o próprio princípio sobrenatural da transformação.
5. A estrutura tripartida da graça: remissão, santificação e participação
A tradição bíblica e eclesial compreende a ‘missão invisível da pessoa divina à alma humana’ como graça santificante (I,q.43,a.3). Deus envia, por meio de seu Filho, o Espírito Santo – a que S. Tomás de Aquino chama de graça incriada, e que opera a justificação (a presença do Espírito que na alma faz com que o pecado se ‘retire’ - processo que chamamos também de remissão ou perdão dos pecados), a santificação (que é a vinda, a infusão, do Espirito como presença na alma humana) e a participação (que é a presença do Espírito Santo que se dá à vontade no novo modo de presença de Amor, e que traz à inteligência a presença invisível do Filho novo modo de presença que é Sabedoria; à participação é tomar parte da semelhança sobrenatural a partir da semelhança sobrenatural criada na alma; é também chamada de conformação ou de inhabitação).
O Espírito Santo opera, portanto, a remissão, a santificação e a participação. No seguimento, da estrutura tripartida do desígnio de Deus, que vimos atrás, criação natural, recriação pela graça e consumação na glória, S. Tomás tem uma estrutura tripartida da graça - remissão, santificação e inhabitação. Os autores que precederam o santo doutor falariam, desse trinómia da graça, na "tripla operação da graça no livre arbítrio ou no sujeito" (Javalet, p. 327) como purificação, iluminação e perfeição ( como Hugo de S. Vítor: purgatio ad puritatem, illuminatio ad veritatem, perfectio ad bonitatem, Cf. Javalet, p. 332). S. Bernardo desenvolveria a teologia da graça no contexto da liberdade, compreendendo a graça como a liberdade do Espírito que dentro de nós se opera como liberdade penetrada, liberdade iluminada e liberdade para a liberdade. Fugindo de certa forma a uma conceção tomista da graça, e optando por uma uma perspetiva pessoal, S. Bernardo concebe a graça como um processo de liberdade que se dirige à nossa liberdade pessoal (Cf. Javalet, p. 338). A liberdade espiritual é o fundamento da vida espiritual, e dessa forma a liberdade espiritual é a semelhança sobrenatural dentro de nós.
S. Tomás de Aquino desenvolve a teologia tradicional do envio do Espírito Santo no contexto da justificação, da santificação e da participção, e desenvolve-a de acordo com a ordem das processões no seio da Trindade, e das suas missões na ordem da revelação: o Pai envia o Filho por meio do qual procede o Espírito. Nesta mesma ordem tradicional, Cristo ressuscitado, doador do Espírito Santo, envia o Espírito à alma humana. Por vinda, ou descida, à alma humana, entendemos o primeiro ato de infusão da graça no contexto da justificação, que precede a graça santificante. Diz Tomás de Aquino que “as quatro condições referidas, para a justificação do ímpio são simultâneas (…). A primeira dentre elas é a infusão da graça; a segunda, a moção do livre arbítrio para Deus; a terceira, a moção do livre arbítrio contra o pecado; a quarta enfim, a remissão da culpa” (I-II,q.113,a.8). A partir do que escreveu, intuímos a minúcia e a precisão com que S. Tomás trata da vinda de Deus à alma: Cristo ressuscitado envia o Espírito Santo, a graça incriada, que aparece e prepara as condições exteriores para a livre adesão da pessoa (aparição da graça; gratia praeveniens); depois, o Espírito move a vontade para a contemplação exterior de Deus e o desejo da sua graça; move-a de seguida contra o pecado, fazendo-o recuar dentro da alma; e, por fim, cria espaço à renovação interior, à presença da graça, da qual voltamos a receber a graça sobre graça (I-II, 1.113,a.3) em ordem ao progresso da graça santificante. No fundo, quando a graça entra na alma humana ela desaloja o pecado e torna-se o fundamento de mais graça. Esta é a 'justificação primeira', ou a preparação para a receção da graça santificante e da sua tripla operação.
O esquema da moção do querer e da ativação do conhecer correlacionados será o esquema que S. Tomás aplicará ao dinamismo da graça santificante; outros autores chamarão a esse esquema de dupla operação de 'concórdia de caridade' e de 'caridade de comunhão' (Cf. Javalet, p. 329). Na verdade, o Espírito Santo recria um novo processo de desejo e de conhecimento na alma humana que conduz à remissão, santificação e conformação. No contexto da graça santificante e no contexto de progresso na graça salvadora, o Espírito Santo realiza em primeiro lugar a 'purificação' da vontade, ou, no dizer de outros autores, a 'purificação da espontaneidade do querer' ou da " liberdade natural' (respetivamente expressões de Hugo de S. Vítor e de S. Bernardo, em Javalet, p. 335), transformando a vontade em caridade, equilibrando as potências do apetite sensível, irascível e concupiscível. Em segundo lugar, o Espírito Santo que transformou a vontade em caridade-amor move a inteligência para a espera e a receção de Cristo: "o Verbo-Sabedoria é esperado pela inteligência do amor, não pela razão que procede da mediação das criaturas e das ideias" (Javalet, p. 329). A vinda do Verbo à alma humana acontece porque foi preparada pela ação do Espírito; o Verbo não desce à alma humana por iniciativa da razão natural ou dos pensamentos, mas sim pela inteligência movida pela caridade. Essa presença do Verbo ilumina e transforma a inteligência em sabedoria, e por meia dela as potências da cognição sensível, da imaginação, da memória.
A graça de Deus opera no querer e no conhecer, e é na confluência e na articulação destas duas liberdades que ela é interiorizada e apropriada. Dito doutra forma, é na circularidade entre graça e liberdade, na aparição do Espírito e apreensão do livre arbítrio (da vontade e do intelecto), que se gera um processo crescente, circular e intensivo de graça. Essa circularidade de graça no agir humano fará com que seja um agir teologal humano. S. Tomas vai aplicar a circularidade às missões invisíveis do Espírito Santo e do Filho à alma humana. Dessa forma, o Espírito que opera num novo modo de presença na alma, enquanto graça santificante, vai tornar-se ponto de apoio para um outro modo de presença, que é a presença invisível de Cristo: “é somente no efeito criado da graça santificante que pode ser encontrado o termo temporal da processão eterna do Filho, o seu novus modus essendi in creatura “ (Belloy, p. 127). Com efeito, a graça santificante será a raiz da processão do Filho e do Espírito dentro da alma, a raiz das duas semelhanças sobrenaturais, como veremos mais à frente.
S. Tomás de Aquino em ordem à santificação da alma humana acrescenta a conjuntio, a conjunção, da presença invisível de Cristo, como um segundo dom da graça santificante. Na perspetiva escolástica, o envio do Espírito como graça santificante significa a entrada do Espírito na alma humana e a sua assimilação no agir humano - e a consequente remissão dos pecados e o novo modo de presença operante na alma; e também significa a preparação para a vinda invisível da pessoa de Cristo que entra na alma e é assimilado no agir humano (1,q.43,a3). No seguimento de S. Agostinho, S. Tomás de Aquino reconhece que "o Filho é enviado a cada qual (...) porquanto possa ser conhecido e percebido segundo a capacidade da alma racional, que está em progresso para Deus ou que está em Deus" (Santo Agostinho, De Trinitate, IV, XX, 28). Assim, diz S. Tomás que “o Filho procede de Deus desde toda a eternidade; mas ele procede também no tempo como homem numa missão visível, ou dentro do homem numa missão invisível (I,q.43, a.2).
Relativamente ao envio da pessoa invisível do Filho, S. Tomás particulariza a afinidade desta pessoa ao dom criado no intelecto: “certos dons (…) são atribuídos ao Filho por uma certa apropriação, a saber aqueles que respeitam ao intelecto. E é segundo estes dons que se observa uma missão do Filho” (I,q.43,a.5). Esta ideia vinha já no seu livro das sentenças: “o dom que aperfeiçoa o intelecto, a saber a sabedoria, e segundo o qual se observa uma missão do Filho, é um outro, que o dom que aperfeiçoa a afeição ou a vontade, segundo o qual se observa uma missão do Espírito Santo” (ISent.d.15, q.4,a.2).
Segue-se desta forma que S. Tomás de Aquino reconhece as duas missões e as duas operações na alma por parte do Espírito e do Cristo para o aumento de graça, e para o progresso das virtudes infusas, de dons carismáticos e do maior conhecimento de Deus (I,q.43,a.6). O maior conhecimento de Deus é definido por pleniori modo, "conhecimento mais completo", pelo qual a alma volta à fruição da glória de Deus. "Desta forma, o justo progride no conhecimento e no amor de Deus; a graça cresce nele, o templo que acolhe as divinas pessoas alarga-se" (Belloy, p. 88).
Vamos ver de seguida este processo de comunicação de uma forma mais detalhada. Trata-se de uma especulação descrita como “concepção qualificada volta e meia de ‘psicológica’, ‘de ‘objetiva’, de ‘operativa’ ou de ‘intencional’, segundo a qual é pelas suas operações sobrenaturais de conhecimento e de amor que a criatura se encontra unida às divinas pessoas. (…) A uma presença por modo de semelhança da pessoa em nós, S. Tomás teria finalmente preferido a presença por modo de objeto”[4].
6. A graça santificante como nova presença do Espírito em ordem à nova presença do Cristo.
a. A integração do Espírito e do Verbo no ato humano de amar e conhecer. S. Tomás diz que 'a graça santificante dispõe a alma a possuir a pessoa divina' (I,q.43,a.3), a fruir da sua presença porque ‘Deus está em nós como o conhecido está no cognoscente e o amado está no amante’ (I,q.43,a.3). Para Tomás de Aquino, dizer que o objeto conhecido está no sujeito cognoscente significa dizer que o objeto passou pelo complexo processo do conhecimento humano; passou pela receção, discernimento, imaginação, memória, representação, abstração, conceptualização. Agora, o objeto faz parte do ato humano, está integrado no ato humano, de tal modo que terá a intenção de conhecer objetos semelhantes. S. Tomás aplica este paradigma circular do conhecimento humano ao modo como as pessoas divinas se apresentam à alma humana. Deste modo, as pessoas divinas do Espírito Santo e do Filho comunicam-se primeiramente como Amor e Sabedoria à vontade e ao conhecimento humanos, movendo-os (I,q.43,a.3; I,q.27,a.3); movidas as faculdades, elas percecionam e apreendem as pessoas divinas que aparecem como ‘objeto’ de assimilação; e ao assimilá-las, integram-nas como Amor e Sabedora dentro das próprias faculdades humanas, no ato de conhecer e amar. Esta operação de integração possibilita que as pessoas divinas se tornem dons, no sentido de dadores, operadores, vivificadores das faculdades humanas.
Ao processo que descrevemos, acrescente-se que a integração das pessoas divinas no conhecimento humano imprime no próprio processo uma dinâmica de procura pelo seu semelhante; a sua integração vai de tal modo santificar e sobrelevar a operação volitava e intelectiva que as faculdades vão procurar um objeto semelhante. Em cada operação, o Espírito e o Verbo elevam o amor e o conhecimento, inscrevendo no nosso espírito uma semelhança maior; em cada intencionalidade de amar e conhecer, as faculdades humanas são de tal modo agraciadas que, em cada nova operação, procuram Deus que se apresenta mais intensamente.
Esta operação circular é muito especulativa e complexa, mas pode ser descrita com maior detalhe nos autores referenciados[5]. S. Tomás de Aquino chama a esta reciprocidade entre as duas pessoas divinas de ‘circulatio et regiratio’ (ISent,d.14,a.2), em francês ‘regiration’[3]. Este movimento circular de dar e receber é o movimento interno à própria Trindade; e é o movimento interno da Trindade dentro da alma, a que chamamos ‘inabitação’. Deus move-se e articula-se dentro de si mesmo; Deus move-se e articula-se dentro da criatura. É ainda o movimento interno do processo do conhecimento humano e do processo do hábito, por exemplo.
b. Os 'dons criados' como 'semelhança sobrenatural' no ato humano de conhecer e de amar. S. Tomás diz que a descida das pessoas divinas à alma e a sua integração no ato de conhecer e amar fazem com que na alma humana haja agora duas ‘semelhanças’ sobrenaturais com o Espírito Santo e o Verbo. Por semelhança não se entende a reprodução artificial de um original, uma espécie de degradação relativa ao original. Para S. Tomás e para os seus contemporâneos, a similitudo é vista como uma condição e possibilidade para esperar e para assimilar a própria res. Esta ideia de similitudo é uma íntima proximidade que só o nome conformatio pode traduzir a realidade criada: “pela graça a alma é conformada a Deus” (I, q.43, a.5). A ideia de conformação é a de criação de uma forma sobrenatural, ou de uma semelhança sobrenatural dentro da alma. A questão é de saber como é que se produz uma semelhança sobrenatural na alma que espere a realidade sobrenatural, a res. S. Tomás vai responder que os "dons criados" na alma humana serão as semelhanças sobrenaturais. Quando dizemos ‘dons criados’ não nos estamos a referir a coisas criadas, mas às próprias pessoas divinas que são os ‘dons criados’, ou melhor, elas próprias são os dons operantes dentro das faculdades humanas. A este respeito, diz São Tomás que, da mesma forma que o agente está dentro daquilo que age, Deus agente está intimamente dentro da alma que age.
Para S. Tomás de Aquino, o dom do Espírito Santo na graça santificante vai imprimir no ato humano duas semelhanças sobrenaturais apropriadas às pessoas do Espírito e do Filho, e vai operar dois dons, o dom do amor e o dom da sabedoria (Belloy, p.40; p. 142). Para S. Tomás, o Espírito e o Verbo comunicam-se numa nova presença invisível de Amor e de Sabedoria à vontade e ao intelecto, de tal ordem que serão assimilados como dons criados, dons de Amor e de Sabedoria, no próprio processo de conhecimento humano. As pessoas divinas tomam, então, parte do ato do conhecimento para assimilar novos conteúdos semelhantes; dito na forma de S. Tomás, elas "imprimem" dentro da alma uma semelhança sobrenatural que vai procurar a sua correspondência sobrenatural. Agraciadas com a nova presença das pessoas divinas, as faculdades humanas vão procurar conhecê-las e amá-las cada vez até alcançarem a plenitude da sua Imagem. Note-se que S. Tomás utiliza os termos forma impressa e sigillatio para manifestar a semelhança sobrenatural produzida na alma nos dons criados, operados, do Amor e da Sabedoria. Portanto, na graça santificante reconhecemos uma dupla doação (Belloy, p. 49), objetiva, exemplar e intencional.
c. A representação das pessoas divinas no ato de conhecer e de amar humanos. Tomás de Aquino afirma que a integração das pessoas divinas no ato de conhecer e de amar humanos produz uma semelhança sobrenatural, ao modo de “conhecido no cognoscente e do amado no amante”. Essa semelhança sobrenatural opera uma transformação interior radical que se traduz em maior perceção e afeição das pessoas divinas. Com efeito, é dentro da própria semelhança sobrenatural recebida na alma que a pessoa divina é conhecida per modum rapraesentationis (Belloy, p. 51). Neste sentido, as novas presenças das pessoas divinas, a que chamamos dons criados de Amor e de Sabedoria, ou melhor, que operam como Amor e Sabedoria na vontade e no intelecto, vão produzir efeitos de sabedoria e de amor sobrenaturais na alma humana, pelos quais podemos reconhecer as presenças divinas (Belloy, p. 140). Dito de outro modo, é dentro e por meio deste amor e conhecimento sobrenaturais, que distinguimos as ‘representações’ do Espírito Santo e do Verbo. É por estas vias que as pessoas se manifestam e se dão a conhecer à fruição (1Sent.d.15,q.4,a.1). Para S. Tomás, as pessoas divinas dão-se, deixam-se assimilar, tornam-se participantes, mas apenas podem ser encontradas pelo conhecimento experimental, dentro dos efeitos dos seus dons. Esse conhecimento experimental dos efeitos dos dons criados na alma chama-se ‘fruição’.
7. A graça santificante como um novo modo de ser.
Para S. Tomás de Aquino, a graça opera
uma transformação ontológica do nosso ser e não apenas das nossas faculdades
espirituais (I-II,q.23,a.2) em ordem a criar na criatura uma
semelhança (similitudo). A essa necessária transformação interior iniciada
e permanentemente atuado pelo Espírito Santo que conforma a Cristo, a tradição
católica chama de graça santificante[7]; esta graça é “um novo
modo dessa pessoa divina inhabitar” (I,q.43,a.5) a alma. S. Tomás tem a convicção de
que a graça mete uma realidade sobrenatural na alma; de que a graça é dentro da
criatura uma realidade ‘criada’ – quando se diz “criada” não se quer dizer uma
coisa feita, mas é a forma de dizer que o Espírito Santo, a graça incriada, que produz na alma uma transformação radical
(I-II,q.109,a.1).
Na realidade, a graça opera uma transformação profunda no princípio de vida do corpo, na nossa vida pessoal, porque as pessoas divinas são enviadas não apenas às faculdades humanas, mas ao sujeito das potências (I-II, q.110.a.4), ao homem todo, à essência da alma, ao princípio da vida do corpo. Com efeito, a comunicação das pessoas divinas, por meio das faculdades intelectivas e volitivas, entra no dinamismo de todo o corpo vital, de tal ordem que a presença habitual opera uma verdadeira transformação interior sobrenatural, “um novo modo de ser sobrenatural”, uma “qualidade sobrenatural para a consecução de um bem sobrenatural” no dizer de S. Tomás (I-II,q.110,a.2). Na linguagem tomista, podemos dizer que a graça dirige-se ao ser profundo da alma[8], tornando-se uma ‘forma acidental da alma’ (I-II, 110,a.2).
Assim, o Espírito Santo, que é a
causa exemplar do dom, concede a graça santificante; a graça santificante, como
hábito entitativo, concede a justificação e os dons do amor e do conhecimento,
ao jeito de uma forma imprimida ou sigillatio – que significa as duas
semelhanças recebidas e impressas; estes dons do amor e da sabedoria são os
efeitos da vinda das pessoas divinas e são os “modos” pelos quais o Filho e o
Espírito Santo vêm habitar em nós[1].
O sujeito recebe o dom conferido, acolhe-o, percebo-o e apropria-se dele, de
modo que, só depois de recebidos os dons do amor e da sabedoria tem
conhecimento per modem repraesentatio das pessoas divinas pela actuação das
próprias pessoas nestes dons do amor e do conhecimento[2];
é a semelhança que permite a apropriação: isto significa que não é a
apropriação que estabelece a semelhança, é a semelhança que estabelece a
apropriação[3]. Depois,
as pessoas divinas influem nos dons criados, não por uma nova semelhança, mas
por uma nova operação, as virtudes infusas da caridade e da fé. Neste sentido,
“desde o princípio, desde a humilde
receção do hábito graciosamente conferido, aquilo que é próprio da divina
pessoa é representado na sua semelhança. E nós sabemos que esta representação
não é fruto das nossas aproximações reflexivas, mas obra da própria pessoa que se manifesta, se
faz conhecer, se representa na semelhança”[4].
A posse das pessoas divinas – a
pessoa possuída – resulta na fruição imperfeita ou perfeita.
Dinâmica da graça
santificante enquanto processão das Pessoas divinas |
Graça atual |
|
|
Graça santificante
impressa |
Recepção dos dons e
disposição entitativa |
|
Efeitos criados: Dons
do Amor e da Sabedoria que emanam da graça santificante |
Perceção dos Dons
recebidos |
|
Semelhança das Pessoas
divinas nos Dons criados e atuados de forma permanente |
Representação da Pessoa
divina por semelhança |
|
Virtudes infusas que
emanam da graça santifcante |
Apropriação intencional
da Pessoa divina por conhecimento experimental |
|
|
Fruitio que é comunhão
intencional dos atributos das pessoas divinas por meio das potências
sobreelevadas |
[1] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 51.
[2] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 59.
[3] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 55.
[4] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 56.
8. A
graça como hábito sobrenatural, permanente e estável das pessoas divinas em nós.
As criaturas racionais purificam-se e
retornam a Deus por via dos atos, dos hábitos, das virtudes, das graças e dos
dons. S. Tomás define graça como hábito qualitativo, por meio do qual
as Pessoas divinas se atuam de forma permanente e estável na alma humana.
Este hábito torna-se ‘entitativo’ porque a ação permanente de Deus opera na
criatura racional ‘um novo modo de ser’ sobrenatural; na verdade, a atuação da
graça santificante e a permanente doação das Pessoas divinas nos dons do amor e
da sabedoria criam na alma humana uma disposição a recebê-las cada vez mais e a
adquirir maior semelhança com elas.
O hábito, naturalmente falando, é uma
disposição permanente para a prossecução de um fim natural (Q.49,a.1). Ou seja,
mais do que uma rotina, o hábito é uma qualidade estável e permanente que
conforma uma pessoa com a finalidade da sua natureza humana. A graça é desta
forma também um hábito qualitativo, uma vez que a ação das Pessoas divinas
transforma radicalmente o estado da alma, orientando-a para a participação na
natureza divina. Podemos dizer que o dom das Pessoas divinas é um dom habitual
e permanente, porque é também querido e ativado pelo próprio sujeito que deseja
sempre mais. Essa graça criada não é uma substância, uma coisa;
como vimos, é uma qualidade, no sentido de ser um enriquecimento qualitativo
sobrenatural, uma qualidade de tipo hábito sobrenatural.
Da mesma forma, a graça não é um dom que seja dado de uma só vez, e que permanece de forma estática e imóvel na alma. Pelo contrário, as pessoas divinas dão-se como dom estável e permanente à alma racional. Pela constante atuação do dom, Deus sana, eleva e santifica o homem, para que, ao receber gratuitamente um novo modo de ser sobrenatural, possa reconhecer e amar a presença das Pessoas divinas na sua alma. Para S. Tomás de Aquino, há uma reciprocidade entre graça incriada e graça criada[10], no sentido de que o Espírito Santo precede os seus dons; mas também o Espírito Santo procede dos dons, no sentido de que depois da graça criada, da semelhança sobrenatural, permanece na alma como num templo, conferindo virtudes, dons e graças. Note-se que quando falamos de hábito humano adquirido ou de qualidade humana adquirida não estamos a falar de uma qualidade que fica estática e fixa; trata-se, pelo contrário, de uma qualidade que tem de ser atuada de forma estável e permanente para que não possa diminuir nem ser perdida. O mesmo acontece com a graça. Ela terá de ser atuada de forma estável e permanente pelas Pessoas divinas, de modo que não se diminua nem se perca.
Na linguagem tomista, a
graça santificante, enquanto graça habitual, produz dois grandes efeitos: a
graça da justificação e a graça da santificação. A graça habitual dá gratia de
cura e graça de elevação - gratia sanans et gratia elevans.
Diz S. Tomás que primeiro é
precisa a infusão de graça (a presença real de graça, porque é com esse
presença que se preenche a privação); primeiro é preciso introduzir a graça
para expulsar o pecado: ‘é uma justiça que expulsa um estado oposto de falta,
um estado contrário’[11]. O termo da sanação, da
remissão ou da justificação – palavras que dizem a mesma operação -, é a
santificação, operada pela gratia elevans ou gratia santificans. O Espírito
Santo ao entrar na alma humana faz recuar o pecado e eleva todas as suas
faculdades de modo a que possam receber as virtudes infusas, os dons
espirituais e os dons carismáticos.
Diz S. Tomás que a justificação e a santificação são sempre iniciativa da graça de Deus. S. Tomás indica que a primeira iniciativa opera dentro da graça da justificação[12]: com efeito, Deus toma a iniciativa de chamar e de despertar uma intenção num primeiro momento; a deliberação e a resposta no segundo momento será também fruto da deliberação e da coadjuvação da graça. A esta iniciativa da parte de deus chama-se gratia operans. Também na resposta contínua do homem, Deus coopera com a sua graça a que Tomás chama de gratia cooperans: (gratia operans et gratia cooperans – em I,q.111,a.1)[13]. A graça operans é a graça da iniciativa de Deus e a graça cooperans é o auxílio na colaboração do homem. Para S. Tomás, a graça articula a iniciativa da moção divina e a cooperação agraciada da vontade humana: “dizemos que a primeira moção é operante, enquanto a moção para um ato que depende de um ato anterior é cooperante.[14]
- a graça habitual ao elevar
o agir humano cria os méritos sobrenaturais que proporcionam ao ser humano fins
espirituais; os méritos espirituais são da ordem da graça cooperante;
a.1 – a primeira actuação da
graça da graça da justificação operante num pecador, num ímpio. são sempre
graças operantes
A graça cujo efeito é em devir de justificação (uma justificação suficiente) ou em ato de justificação (uma justificação eficaz).
9. A inhabitação trinitária como movimento de retorno: no Espírito, pelo Filho, ao Pai
“A graça santificante dá-nos a possibilidade de esperar o próprio Deus no nosso conhecimento de fé e no nosso amor de caridade, conformando-nos à sua vida tri-pessoal de conhecimento e de amor”[1]. “Pelas virtudes teologais da fé e da caridade, a alma vai para além da participação por semelhança natural, porque ela comunga intencionalmente por meio das suas potências sobrenaturalizadas dos atributos essenciais da Trindade. Mas é preciso ainda receber, sobre o fundamento ontológico da graça santificante e das virtudes infusas, por um dinamismo operativo, os dons do amor e da sabedoria, que é onde o Espírito e o Verbo se manifestam para conduzir a alma para Deus”[2]. Estes dons neste processo de retorno são deferentes dos dons da graça santificante. Com efeito, uns são os dons de missão, para a santificação, por meio dos quais a alma humana chega ao conhecimento das pessoas divinas, e outros são os dons de retorno por meios dos quais a alma humana chega ao conhecimento da essência de Deus. É preciso um dom específico[3] para alcançar a Trindade Indivisível, para além do dom genérico da graça santificante por meio da qual se conhecem as pessoas divinas. Só a partir deste dom específico é que se poderá falar do conhecimento das pessoas divinas por modo objectivo. Isto significa que no próprio contexto de inabitação, as Pessoas divinas estão presentes à alma humana de um forma nova. A intensificação da graça é por isso a extensão a um novo ato e a uma nova graça[4]. A alma humana fica assim disponível para uma nova ação do Espírito santo e uma nova ação do Verbo. A questão da missão invisível do Filho na q. 43,a.3: “é somente dentro do efeito criado da graça santificante que pode ser encontrado este termo temporal da processão eterna do Filho, o seu novus modus essendi in creatura.[1]” “A existência de uma missão invisível do Filho na alma, que chamamos habitualmente de missão, dá-se dentro do movimento de retorno”[2]. O padre Ambroise Gardeil fez uma enorme investigação intitulada La Structure de l’âme et l’expérience mystique, sobre a presença invisível do Verbo na alma humana, refletida no Comentário às Sentenças e a Suma Teológica da S. Tomás de Aquino, e que abriu uma enorme discussão na década de 1930, retomada por Camille de Belloy, em La visite de Dieu. A primeira ideia que Camille de Belloy quer deixar é que não há lugar na teologia da graça para uma reflexão estática[3], de modo que é a pessoa que visita a alma e não apenas é entregue um dom. Se o Espírito Santo procede eternamente como amor, procede temporalmente como amor: “eternamente como amor o Espírito Santo tende para um outro, a saber, para o amado, como seu objeto”[4]; se procede eternamente como amor para o Filho, procede temporalmente como amor para a criatura. Há, portanto, uma processão eterna e uma processão temporal que não implica qualquer mudança em Deus[5]. Aquilo que muda é o aliquid conferido por Deus à criatura, o efeito novo donde surge uma nova relação da criatura com Deus”[6]. A questão é a seguinte: assim como existe no Espírito um duplo princípio, que é ser causa de exemplaridade na saída de Deus da criatura e uma causa de exemplaridade no retorno a Deus da criatura, poderá ser também o Filho causa de exemplaridade no retorno a Deus da criatura, uma vez que Ele é causa de exemplaridade na saída de Deus. A questão é a de saber “se o Filho é também enviado invisivelmente à alma”. “A graça santificante que nos aparece como condição de possibilidade da vinda invisível das Pessoas divinas, o efeito criado no qual se cria o novo modo de existência da criatura racional, revelou-se ser causa (…) dispositiva. Graça criada e graça incriada desempenham, no plano de causalidades diferentes, uma ‘prioridade recíproca’, para tomar a feliz expressão do padre Rahner”[7]. O Padre A. Gardeil pensa no entanto que “o modo de processão da segunda pessoa não contém uma tendência para um termo temporal criado; a missão temporal do Filho tem a sua parte no retorno para Deus da criatura racional”[8]. De facto, a processão eterna do Filho é a causa e a razão da geração das criaturas – exitus a principio -, e será também o fim a que voltem a vir reditus in finem; como fomos criados pelo Filho no Espírito, assim havemos de regressar no Espírito pelo Filho ao Pai[9]. Sucede, no entanto, que o Filho, a respeito da criatura como objeto, possui também este duplo princípio: como princípio de razão de saída e como princípio exemplar de retorno. Para S.Tomás, “a missão pode convir a um e ao outro”[1] e “esta exemplaridade se exerce também dentro do reditus das criaturas racionais para o seu Deus, num do que não é representação longínqua de um atributo essencial, mas semelhança de ‘próprio’ desta pessoa”[2]. Não se trata apenas de ‘suficiência’ como fim distante, mas de ‘eficácia’ no empenho desse retorno. Para S. Tomás, o Espírito por processão reporta-se às criaturas por um duplo princípio de relação, o de principii exemplaris e o de principiatum exemplatum (princípio de razão e princípio de efeito)[1]. Surge depois a questão importante: se o dom por excelência vem da graça santificante e do Espírito Santo, qual seria o lugar da ação do Cristo?[1] Como relacionar se todos os dons espirituais manifestam o Espírito (1Cor12,7)? S. Tomás responde com a razão do dom e a razão das espécies de dons. Assim, o primeiro dom é causa de todos os dons dados – os dons criados, específicos -, e os efeitos dos dons criados manifestam a causa donde provêm; assim, há apenas “um amor que se divide em dois secundm speciem: o amor e é a missão do Espírito Santo; a sabedoria e é a missão do Filho”[2]. Assim também, há dons que manifestam diretamente o Filho como seu princípio exemplar[3]: a sabedoria. O autor mostra depois que, relativamente à criatura, o Filho continua a ser o enviador (envoyeur) e do doador (donateur); a missão do Filho precede a do Espírito e a do Espírito aponta para o Filho. “O Filho é enviado a cada um a partir do momento em que Ele é conhecido e percebido, tanto Ele possa ser conhecido e percebido segundo a capacidade da alma racional, esteja ela em progresso para Deus, esteja ela perfeitamente em Deus![1] “Dentro do dom conferido que é um hábito, o próprio da divina pessoa é representado como numa semelhança; é assim que se diz que ser enviado é ser conhecido como vindo de um outro por modo de representação”[2]. “Quando o aperfeiçoamento qualitativo do dom é tal que podemos detectar na verdade um novo uso ou ato da graça santificante, portanto, uma nova assimilação específica – semelhança -, à pessoa que representa este dom”[3]. No fundo, S. Tomás distingue o envio das pessoas divinas à alma santificada da presença da Trindade na alma santificada. “Na imagem da sigillatio e da virtus imprimentis, S. Tomás liga de forma íntima a semelhança com as pessoas divinas, pelos dons do amor e da sabedoria imprimidas em nós, e a união a Deus pelo exercício destes dons (agora transformados em virtudes) sob a impressão das mesmas pessoas divinas, de tal ordem que é impossível fazer a distinção entre aquilo que é exemplaridade e aquilo que é intencionalidade”[4]. As pessoas divinas aparecem assim no princípio, no meio e no termo – como objecto – do nosso retorno para deus. O termo Sigillatio é utilizado por Tomás para definir uma presença real da pessoa divina, perceptível pelo conhecimento e pelo amor dos seus atributos pessoais. É o termo que ajuda Tomás a perceber que a representação de Deus não é uma representação distante, como se ele se mantivesse fora, mas está dentro da alma, ainda que não inteiramente dado. Recenhecemos na sigillatio uma dupla doação; mas ainda não compreendemos como é que passamos da semelhança do dom à própria pessoa divina. O ponto de união é o conhecimento do sujeito que está aberto ao primeiro acolhimento do dom, de modo que o simples conhecimento das pessoas divinas é suficiente para a sua missão. A abertura ao dom e o efeito do dom fazem com que o sejueito tenha conhecimento da da pessoa divina per modum repraesentationis.
[1] Santo
Agostinho em De Trinitate IV,XX,28, citado por Camille de Belloy, La visite de
Diue, p. 69.
[2] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 76.
[3] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 76.
[4] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 45.
[1] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 31.
[2] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 33.
[3] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 33.
[1] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 29.
[1] S. Tomás
de Aquino em I Sent., d.14, q.2, a.2, citado por Camille de Belloy, La visite
de Diue, p. 20
[2] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 30-31.
[1] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 127.
[2] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 105.
[3] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 65.
[4] Gilles
Emery citado po Camille de Belloy, La visite de Diue, p. 20.
[5] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 21.
[6] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 22.
[7] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 112.
[8] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 27.
[9] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 23.
[1] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 107.
[2] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 83.
[3] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 84.
[4] Camille
de Belloy, La visite de Diue, p. 88.
10. A graça atual é uma moção do Espírito Santo.
Por relação à pessoa que a
recebe, a graça pode distinguir-se de diferentes maneiras: moção, operação, dom
habitual e diferentes dons habituais (infusos, carismáticos e de união). S
Tomás começa por distinguir dois tipos de
graça: graça-moção e a graça-forma (I-II,q.111,a.1). Para S. Tomás a
graça-moção é a graça atual; ou seja, é a graça da iniciativa de Deus. O papel
da graça-moção é o de mover as faculdades já existentes na alma humana; é a
moção antes da operação – a moção da potência natural para ato, e a potência
sobrenatural para ato sobrenatural.
Na verdade, Deus não recusa a graça àquele que faz tudo aquilo que pode, porque tudo aquilo que ele pode já é atuado pela graça de Deus: “não há homem, chegado à idade da vida moral, junto do qual a graça atual não esteja em trabalho e não auxilie nas solicitações e nas necessidades de socorro”[15]. Quer dizer que o homem não deveria conceber a graça como um acidente, mas como uma atuação real, simultânea e sincrónica. E acrescenta: “a todo aquele que faz o que pode com o socorro da graça atual, Deus não recusa o dom da graça”[16].
10. O efeito secundário do carácter
O Selo –sphragis - em S. Paulo
“O efeito principal dos sacramentos é a graça e o efeito secundário é o carácter”
Com este texto pretende-se tratar minimamente do carácter como efeito permanente dos sacramentos do batismo, da confirmação e da ordem.
S. Paulo utiliza a palavra selo – sphragis, sigillum – algumas vezes. Por exemplo, em 2Cor 1,21-22: É Deus quem nos confirma convosco em Cristo, e quem nos ungiu, Ele que assim nos marcou com um selo e depositou nos nossos corações o penhor do Espírito. Em Ef 1,13-14: Foi também nele que vós escutastes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação. E foi também nele que, ao acreditardes, fostes marcados com o selo do Espírito Santo prometido.
“Em S. Paulo, a marca do selo relaciona-se à iniciação cristã em geral, englobando com o nome de batismo aquilo que hoje entendemos por batismo e confirmação”[1]. A marca do selo, a impressão do selo, é símbolo de aquisição, de distinção e de proteção. Para S. Paulo, não é propriamente um efeito do batismo tal como o entendemos hoje, mas antes um sinal de santificação para esta vida e para a vida futura. S. Paulo não distingue o selo da graça ainda que faça a distinção entre os “santos” e os que são culpados de pecados graves (I Cor 1,2; 2,17). Esta distinção pressupõe uma santidade objetiva do carácter e uma santidade subjetiva da graça[2]. Podemos dizer que a noção de selo, de impressão, ou de carácter, está presente nos escritos do Novo Testamento e nos Padres da Igreja mas existe uma dificuldade em distinguir graça e carácter, e em perceber qual é a sua natureza.
Na primeira escolástica, a dificuldade em compreender a natureza do carácter torna-se argumento de debate: é uma relação, é uma graça ou é apenas uma figura? É uma qualidade, uma disposição ou uma potência? É uma primeira graça do sacramento ou é um efeito do sacramento? Uma vez que a primeira escolástica define a graça como ação do Espírito Santo na obra da justificação interior, torna-se difícil integrar a noção de caracter como qualquer coisa de distinto da graça. Desta forma, no princípio, “o carácter situa-se como uma realidade intermédia entre o rito e a graça sacramental, entre o “sacramento” e a “coisa do sacramento”[3]. Essa perspetiva do carácter como “prelúdio da graça”[4] é figurada, por exemplo, na ideia do primeiro S. Tomás de Aquino ao afirmar que a impressão da cruz na fronte dos catecúmenos os prepara para receber graças maiores e cultuar a Deus.
Mais tarde, e no seguimento de outros autores, S. Tomás abrirá uma outra via ao carácter, qual efeito secundário dos sacramentos – a da configuração ao sacerdócio de Cristo – “pela qual se o separa do domínio da graça”[5]. Tomás mostrará que à santificação procede o culto e que “a santificação e o culto estão unidos, e eles constituem o movimento relacional para Deus (…). O benefício para a sacramentalidade é incomparável: os sacramentos que dão aos homens a santificação do Christus passus são ao mesmo tempo acções cultuais do homem participante à cultualidade radical do Christus sacerdos”[6].
Os autores da primeira escolástica procuram uma classificação para o caracter: hábito, disposição, potência ou figura? Enquanto S. Alberto e S. Boaventura desenvolvem o carácter a partir do hábito e da disposição, S. Tomás desenvolverá a partir da potência espiritual na inteligência humana. Mas os três doutores da Igreja vão chegar à conclusão de que o carácter é a configuração a Cristo. Cristo é o carácter do Pai (Heb), o “caracter incriado” (expressão de Alexandre de Hales[7]), que é impresso na alma, pelos três sacramentos do batismo, da confirmação e da ordem.
1. S. Alberto e S. Boaventura[8]: hábito, disposição e configuração. As três configurações.
S. Alberto Magno começa por pensar que o carácter não é uma qualidade mas uma relação, como a paternidade[9]. No seguimento de outros autores, compara o carácter na alma à consagração das igrejas: assim como a consagração das basílicas ordena as igrejas à celebração do culto divino, assim o carácter na alma ordena a alma à habitação divina. Mais tarde, abandona a ideia do carácter como relação para o pensar, como S. Boaventura, como hábito, como qualidade, como uma disposição, para receber a luz da graça. Para os seguidores de Boaventura, o carácter poderia ser uma espécie de qualidade infusa- uma graça - paralela às outras qualidades infusas, e às outras qualidades adquiridas. S. Alberto e S. Boaventura concluem que se trata de uma primeira qualidade, de um hábito infuso, que é permanente, e que tem qualquer coisa de dispositivo, porquanto dispõe e não aperfeiçoa. Neste sentido, para S. Alberto, trata-se de um hábito habilitante[10], de um “sinal demonstrativo e causativo de graça”, de uma “gratia gratis data” (por diferença à gratia gratum faciens própria dos efeitos dos sacramentos), da habilitação à graça. Também para S. Boaventura, trata-se de um sinal sacramental que “significa” e “prepara” para a graça e “configura” a Deus (por ser uma semelhança divina) e “distingue”. Trata-se da graça impressa na alma que imprime uma semelhança divina e que dispõe a receber mais graça. Sendo uma semelhança divina, o caracter assimila ou configura a alma a Deus. No entanto, para estes dois autores o grau de semelhança é distinto entre carácter e graça. Na verdade, a assimilação da criatura a Deus comporta três degraus: para S. Boaventura, esses três degraus são a assimilação perfeita da glória, a assimilação suficiente da graça, e a assimilação que dispõe à graça, e que é compatível com o estado de dissemelhança; para S. Alberto, a assimilação pode ser por completa indivisão, por participação ou por imitação. Para S. Boaventura, a terceira assimilação eu dispõe à graça é aquela que produz o carácter, da mesma forma que para S. Alberto, a assimilação por imitação é a semelhança que produz carácter. Estamos, portanto, no campo de uma graça intermédia que dispõe à graça.
Essa graça dispositiva está ordenada a Cristo e a configurar-se a Cristo. Para ambos os autores, S. Alberto e S. Boaventura, o caracter dispõe à configuração ao Filho. Para S. Boaventura, o sacramento configura a um dos ministérios do Filho: ao Filho morrente e redentor (batismo), ao Filho sofrente e combatente (confirmação), ao Filho atuante como ministro (ordem). Para S. Alberto, as três configurações a Cristo têm que ver com os três estados da fé e de ligação a Cristo: os iniciantes, os progressivos e os perfeitos. Ainda que seja uma proposta muito artificial - da configuração a Cristo que dá a fé, a Cristo que a robustece, e a Cristo que exerce um ministério – podemos concluir que, tanto para Boaventura como para Alberto, “é na pessoa e na obra do Filho de Deus que se funda a natureza dos três caracteres sacramentais”[11].
Concluímos que o carácter é uma disposição à configuração; não é a própria configuração. Precede a graça santificante, como uma espécie de primeiro efeito, ao passo que em S. Tomás é um efeito secundário e último do sacramento.
2. S. Tomás de Aquino: configuração ao sacerdócio de Cristo e deputação para o culto divino.
Para S. Tomás de Aquino o carácter não é um hábito nem uma disposição, mas uma potência instrumental[12], que dá determinado poder espiritual, análogo às potências naturais. Numa primeira fase, S. Tomás, referindo-se a Dionísio, afirma que os candidatos ao batismo são assinalados com uma cruz, e, essa cruz, é uma potência para poder participar às operações divinas, à administração e à receção dos sacramentos[13]. S. Tomás segue outros autores que situam o carácter entre o rito sacramental e a res do sacramento (Guilhaume d’Auxerre, Alexandre de Hales, Alberto Magno, Boaventura). No entanto, mas tarde, Tomás de Aquino, entende o carácter como o efeito secundário dos sacramentos: ele é a condição de possibilidade da cultualidade. O Dotor angélico compreende que a santificação é acompanhada simultaneamente pelo culto. Assim como a santificação de Cristo na cruz foi acompanhada simultaneamente de um ato cultual a Deus se Pai[14], assim a santificação do crente é acompanhada de um ato de culto ao Pai por meio do sacerdócio de Cristo. Os homens tornaram-se recetáculo da graça santificante para poderem ser sujeitos de acção cultual. Esta perspetiva pode ter nascido da leitura da carta aos Hebreus ou da própria noção do carácter ministerial dos sacerdotes que tem Cristo sacerdote como referência. Nesta leitura, o ministro sagrado foi configurado ao sacerdócio do Cristo para ser revestido de um caracter, de um poder espiritual, por meio do qual possa oferecer o sacrifício de Cristo. Assim também os fiéis são santificados de modo a serem habilitados com uma potência espiritual para o culto de Deus. Enquanto potência espiritual, o carácter é conferido por três sacramentos que operam a consagração, a destinação de uma pessoa a uma função espiritual; os restantes sacramentos operam a santificação por meio da purificação, como por exemplo a penitência.
Tomás não dirá claramente que o carácter seja uma graça dispositiva para receber maior graça; prefere distinguir a graça do carácter e dizer que o carácter é uma potência espiritual, um poder de participar nos sacramentos[15], uma configuração a Cristo para o culto divino[16]. Tomás de Aquino estende a configuração do sacerdócio de Cristo a todos os fiéis: assim como Cristo se oferece continuamente ao Pai, assim os fiéis se oferecem continuamente ao Pai por meio de Cristo. Tomás de Aquino desenvolve a tripla perspetiva do carácter como tripla configuração a Cristo: a configuração a Cristo como filhos por meio do batismo, a configuração a Cristo como soldados por meio da confirmação, a configuração ao sacerdócio de Cristo por meio da ordem. O carácter para S. Tomás de Aquino não se encontra na essência da alma mas na faculdade da inteligência onde se encontra a Imagem[17]. Por causa desta configuração a Cristo, o caracter do sujeito é incorruptível e imutável; a alma recebe uma participação a Cristo que é causa exemplar, instrumental e final.
Note-se forma muito particular que S. Tomás de Aquino além de associar o carácter ao culto que procede da santificação, ao efeito segundo da configuração ao sacerdócio de Cristo no sacramento, indica que o carácter é uma participação em Cristo. Na verdade, se os sacramentos produzem na alma humana uma participata similitudo divinae naturae, o sinal que trazemos em nós – signaculum etiam non sit sensible - é uma impressão do próprio Deus. “Tomás sabe que tratar da noção de sinal comporta uma precisão necessária, porque a definição augustiniana utilizada para sacramento não pode ser estendida ao carácter sem o recurso à similitudo”[18]. A dificuldade de S. tomás foi relacionar a graça e o carácter. S. Tomás de Aquino não relaciona a graça e o carácter, da mesma forma que não relaciona o Espírito e Cristo; é por essa razão que prefere guardar para o Espírito a obra da justificação e para Cristo a configuração/participação. Ainda que as Escrituras dizem, como Paulo, que os cristãos foram marcados pelo Espírito Santo, S. Tomás afirma que o carácter vem de Cristo.
Q.63,a1
São destinados aos atos convenientes à Igreja presente por um certo sinal espiritual que lhes é impresso e que se chama caráter.
Também pode chamar-se caráter ou sinal, por uma certa semelhança, tudo o que torna um ser semelhante a outro (…). Assim Cristo é chamado figura ou caráter da substância paterna, pelo Apóstolo.
A.2
Os sacramentos da lei nova imprimem caráter, porque por eles se destinam os homens ao culto de Deus segundo o rito da religião cristã.
O caráter implica uma certa potência espiritual ordenada às cousas do culto divino. - Mas, devemos saber que essa potência espiritual é instrumental
A.3
Ora, o caráter eterno é Cristo mesmo, segundo aquilo do Apóstolo: O qual, sendo o resplendor da glória e a figura, ou o caráter, da sua substância. Logo, parece que o caráter se deve propriamente atribuir a Cristo.
or onde, é manifesto que o caráter sacramental e especialmente o caráter de Cristo, a cujo sacerdócio se assemelham os fiéis pelos caracteres sacramentais, que outra causa não são senão umas participações do sacerdório de Cristo, derivadas do próprio Cristo.
[1] J. Galot, La nature du caractère sacramentel, Desclée de Brouwer, Bruxelles, 1956, p. 25
[2] Galot, p. 27.
[3] Galot, p. 225.
[4] Galot, p. 229.
[5] Galot, p.229.
[6] Mauro Turrini, L’anthropologie sacramentelle de S. Thomas d’Aquin dans ST, III, q. 60-65, Paris, 1996, p. 446.
[7] Galot, p. 228.
[8] Galot, p. 146-170.
[9] Galot,p.147.
[10] Galot, p. 154.
[11] Galot, p. 171.
[12] Galot, p. 174.
[13] Galot, p. 175.
[14] Turrini, p. 449.
[15] Galot, p. 186.
[16] Galot, p. 184.
[17] Galot, p. 190.
[18] Turrini, p. 457.
11. A graça é sempre eficaz
A GRAÇA É SEMPRE EFICAZ
A graça cumpre sempre a sua
missão em relação ao seu próprio propósito: ela cumpre a justificação, mesmo
que seja penas por profissão de fé, ou por atrição;
A graça é sempre eficaz relativa
àquilo que se propõe e é sempre suficiente relativamente às novas graças
eficazes, que elevarão o homem;
“nós mantemos inteiramente que a
graça, é intrinsecamente eficaz independentemente do acto ou termo para os
quais ela foi imediatamente dada. Mas ao mesmo tempo, esta graça é sempre
suficiente em relação a um acto ulterior (…), até porque os efeitos das graças
estão ordenados entre eles. Cada qual é dado para que auxilie o seguinte; é
dado como capacidade para fazer o seguinte”[1].
“Porque é que muitas graças se
perdem, porque é que não chegam à perseverança? Uma vez que um desígnio de Deus
não deixa de se realizar?”
A a graça é eficaz porque ela dá
ao livre arbítrio o seu acto e a sua determinação. A graça é moção que precisa
de realização, é potência que precisa ser atuada na vontade, é princípio formal
que precisa materializado. Sem coação e sem necessidade.
A graça não coage e a vontade não
é forçada!
Deus move-nos porque somos
capazes de realizar essa operação mas isso não significa uma obrigação de fazer
essa operação; o facto de ser capaz de corresponder à graça de Deus, não
significa que não possa escolher outro termo, outro objetivo. Pode ser
deliberado por mim de outra maneira[2].
A moção divina não impõe por necessidade nem por atratividade[3],
não tira a liberdade, mas dá-a em acto, em deliberação e execução.
O jansenismo corresponde ao
movimento da graça como deleitação vitoriosa – delectatio vitrix, cujo objeto
se impõe como irresistível ao sujeito e, por essa razão, também como violêncoa,
de forma arrebatadora e impositiva. Por exemplo, Blaise Pascal. A Caridade no
fundo é uma ‘cupidez invertida’, que exerce na vontade, aquilo que uma afeição
exerce na concupiscência[4].
Os jansenistas propuseram aos tomistas que se acrescentasse à Litania a prece;
“da graça suficiente livrai-nos Senhor!”[5]
Isto não quer dizer que a
eficácia da graça esteja dependente do nosso consentimento, mas pelo contrário,
a graça eficaz dá ao nosso consentimento a possibilidade de ser livre[6].
Por isso, S. Tomás diz que a
graça é graça suficiente, quer dizer que ela traz em si o suficiente, para que
o acto primeiro, da ordem da intenção, tenha tudo aquilo de que precisa para
agir. “Entre a ‘suficiência formal’, em acto primeiro, e a eficácia actual, há
forçosamente para a criatura uma distância, que aquela que vai da potência ao
acto segundo”[7].
Para os jansenistas, se a graça
não efetuou aquilo a que tendia, então não foi eficaz: se alguma coisa não foi
feita, foi porque a graça não deu. Pascal brincava com “a graça suficiente que
não é suficiente”[8].
Para S. Tomás, o homem regenerado
pela raça pode evitar todos pecados mortais e tem auxílio suficiente para
deixar de pecar; a graça habitual é um recurso suficiente para o homem ficar em
estado de graça, que na morte permitirá a graça nova e final da glória. “ O bom
uso da graça é em si um dom da própria graça”
É Deus que por graça operante dá
este acto último (por ex. a justificação) e a sua intensidade. Assim, a graça é
dispensada segundo a medida do dom de Cristo. Deus não faz as suas obras em
série[9]!
[1] Michel
Labourdette, p. 202.
[2] Michel
Labourdette, p. 195.
[3] Michel
Labourdette, p. 196.
[4] Michel
Labourdette, p. 198.
[5] Michel
Labourdette, p. 202.
[6] Michel
Labourdette, p. 198.
[7] Michel
Labourdette, p. 201.
[8] Michel
Labourdette, p. 199.
[9] Michel
Labourdette, p. 205.
Marc Chagall, A escada de Jacob, 1973.
[1] Michel Labourdette,
p. 220.
[2] Cf. Michel
Labourdette, p. 188-190.
[3] Camille de Belloy,
La visite de Diue, p. 23.
[4] Camille de Belloy, Habitation et missions des personnes divines
selon Thomas d’Aquin, in Revue de Sciences Philosophiques e Théologiques,
2008/2, pág. 225-240.
[5] Jean-Baptiste Lecuit, Quand Dieu habite en l'homme. Pour
une approche dialogale de l'inhabitation trinitaire: Paris, Éditions du Cerf,
2010. Camille de Belloy, La visite de Dieu, Ed. Ad solem, Genéve 2006.
Camille de Belloy, Habitation et missions
des personnes divines selon Thomas d’Aquin, in Revue de Sciences
Philosophiques e Théologiques, 2008/2, pág. 225-240.
[6] Jean-Baptiste Lecuit,
Quand Dieu habite en l'homme. Pour une approche dialogale de l'inhabitation
trinitaire: Paris, Éditions du Cerf, 2010, p.
62.
[7] A noção de graça
santificante foi mal entendida a partir do momento em que se compreendeu a
graça santificante como o um dom criado pelo Espírito Santo na alma humana e
não como a sua presença pessoal. Havia a ideia de que o Espírito criava um dom
e que era nos efeitos desse dom que o Espírito santo se manifestava
pessoalmente. Na perspetiva católica, trata-se de uma presença real e efetiva,
uma vez que essa presença é o fundamento dos dons e não a consequência dos
dons. À primeira teoria chamava-se teoria operativa (Cf. Jean-Baptiste Lecuit, p. 57)..
[8] Michel Labourdette,
p. 156-157.
[9] Jean-Baptiste Lecuit, p. 55.
[10] Jean-Baptiste Lecuit, p. 73.
[11] Michel Labourdette,
p. 215.
[12] Michel Labourdette,
p. 178.
[13] No processo da
graça, São Tomás desenvolve mais ou menos da seguinte maneira: os atos
primeiros são atos interiores que estão no ato da formulação de intenção; e os
atos segundos são os exteriores que estão ao nível da deliberação (antes da
execução). S. Tomás pergunta por quem suscita a formulação da intenção e,
depois, por quem possa suportar o ato da deliberação.”
[14]
Michel Labourdette, p. 175.
[15] Michel Labourdette,
p. 193.
[16] Michel Labourdette,
p. 193.
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