quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

II. A Graça, na analogia da revelação da palavra

 

O texto anterior - “As missões invisíveis do Filho e do Espírito Santo à alma humana, em S. Tomás” – descrevia, na medida do possível, a presença da graça na liberdade humana, como dom criado, ou presença operante e habitual de Deus na nossa natureza. A tentativa de uma revisitação do tratado da graça na perspetiva escolástica traz-nos sempre um vocabulário claro, bem definido, e sempre analógico[1], mas às vezes rígido e pouco personalista. Com certeza que é um vocabulário válido - e assim há-de permanecer - mas isso não impede que possa ser traduzido noutras analogias. S. Tomás de Aquino desenvolve a questão da graça a partir da operação de amar e de conhecer “como o conhecido dentro do cognoscente, e o amado dentro do amante” (I,q.43,a.3). Esta conceção intencional do amar e do conhecer um semelhante sobrenatural não foi impeditiva da criação de outras analogias como a da amizade. Na verdade, “se se aceita como S. Tomás de Aquino (…) que a amizade comporta uma benevolência mútua e a reciprocidade, ambas fundadas sobre a comunhão de um ‘bem’, então um verso como aquele ‘já não vos chamo servos mas chamo-vos amigos’ (Jo 15,15) pode muito bem constituir uma fonte escriturística da amizade entre Deus e o homem”[2]. Outros autores procuraram desenvolver o processo de interação entre Deus e o homem na perspetiva do personalismo, da paternidade ou da conjugalidade[3]. O autor a que aqui vamos fazer referência – Jean-Louis Lecuit[4] -  procura desenvolver essa interação numa perspetiva dialógica cuja conceção de opera em torno de um argumento criado pelo próprio: “como o locutor no interlocutor”. Trata-se de um conceito que parte da revelação de Deus como Palavra, e da interiorização da Palavra como presença criadora de uma nova situação relacional.

Um exemplo quotidiano ilustra perfeitamente o conceito desenvolvido “como o locutor no interlocutor”[5], como a inabitação de um outro, ou a interiorização de uma presença. As expressões traduzem a nova relação pessoal criada por Deus dentro de mim mesmo e que significa uma mudança na forma de me relacionar e de ver a vida. A chamada de um amigo por exemplo não traz consigo apenas um conjunto de palavras ou de informações com alguma importância para mim, sobretudo carregam nelas a auto entrega de uma pessoa e a promessa de permanência junto de mim; essa chamada é criadora de relação pessoal interior, diz J-B. Lecuit. A palavra pronunciada por um homem que diz “amo-te” traz com ela o significado de toda uma pessoa, de uma vida, que é auto doação e promessa de si mesma a uma outra pessoa; e esse “amo-te” vai causar de tal ordem um impacto transformante que a pessoa que o disse passa a estar-nela, a ser-nela. Um último exemplo pode ser o de um pai que diz “meu filho”, e que nessa palavra se exprime todo como auto comunicador e gerador de vida e de relação; a palavra não é indiferente mas gera um espaço de relação e de sentido que o pai ‘demora’, ‘permanece’ no filho. De facto, há palavras verdadeiramente marcantes e que ficam impressas na alma a ponto de iniciarem processos novos de transformação relacional. São palavras efetivas, verdadeiramente atuantes, no sentido de serem atos da presença estruturante, constituinte, de um sujeito. Há realmente pessoas nas nossas vidas que numa palavra disseram tudo aquilo que são para nós e que com essa palavra nos fizeram como pessoas. De facto, “a doação da palavra tem a densidade da entrega pessoal de si ao outro”[6].

Antecipamos a dificuldade de aplicar a ‘analogia da revelação de nós mesmos na palavra’ à graça de Deus que se entrega ao homem. Como é que Deus numa palavra se pode dar a si mesmo como graça à alma humana? Como é que Deus que é Pai pode pronunciar uma palavra que atravesse todo o meu ser[7]? Encontrei a resposta na própria experiência pessoal de Deus como Pai. A experiência de ter ouvido no primeiro ano de seminário a palavra “tu és meu filho, eu hoje te gerei”, e aquela outra no segundo ano de seminário de ter chamado a Deus de “Pai” pela primeira vez, são revelações de palavra que trazem a auto doação de Deus e a promessa de si próprio, e que fazem recuar o pecado, criando um espaço novo ‘como num templo, para uma presença sobrenatural. Cada um de nós, à sua maneira, pode identificar a forma como Deus se dirigiu numa Palavra que só a si diz respeito, que foi pessoalmente dirigida, e depois acolhida como nova mudança e nova situação. É nessa Palavra “tu és o meu filho”, “eu entrego-me por ti”, “eu amo-te”, “eu compreendo-te”, “eu perdoou-te”, que se efetiva a paternidade divina e a graça da adoção filial. Essa relação filial é a relação que na Escritura melhor expressa a relação de Deus com a criatura. O sumário deste processo da graça na analogia da revelação e da interiorização será de seguida pormenorizado na perspetiva do autor.

1. O conceito da “revelação na palavra” numa perspetiva humana.

Vimos anteriormente como a palavra de um amigo que liga, de um pai que diz “meu filho” ou de um homem que diz “amo-te” traz um conteúdo que é mais importante do que a própria palavra dita: “essa palavra dá a própria pessoa”[8]. Ao dizê-la estou a fazer uma auto entrega de mim mesmo e a prometer-me a mim mesmo ao outro; ao pronunciar uma palavra de vida estou a revelar a minha situação original de subjetividade[9] a mim mesmo e ao outro; por último, estou a fazer uma interpretação da minha existência, uma compreensão de mim mesmo, como existência reportada a alguém, co-implicada, que gera uma pessoa. No fundo, a palavra dita, diz-me[10] ao outro. Se por um lado a palavra dita é uma palavra de vida e uma palavra promitente de mim mesmo ao outro, por outro, é, como vimos em cima, uma palavra geradora de uma nova situação.

A palavra de um homem, de um pai, de um conjugue, de um amigo, que traz consigo a auto comunicação dessa pessoa, cria, no ato de dizer a palavra, uma interiorização – um impacto - de tal ordem que gera um novo tipo de presença da pessoa dentro de nós. Dito doutra forma, essa palavra impactante e transformante gera não apenas uma representação da pessoa por delegação[11] - como se a pessoa fosse interiorizada como um objeto da sensação, da figuração, da imaginação, da memória, etc [12] - mas constitui, enquanto palavra impactante, um ato de nova relação da pessoa. O impacto do ato de palavra como constitutivo de uma pessoa – “como o locutor no interlocutor” – tem um carácter traumático, no sentido de que o outro faz irrupção de tal ordem na minha esfera de consciência, que cria em mim um novo ‘espaço pessoal de linguagem’[13]. Por espaço pessoal de linguagem entende-se o quanto uma nova relação de vida provoca uma nova significação, uma nova definição e uma nova linguagem, que não é apenas uma nova consciencialização de si, mas a própria constituição do sujeito como uma pessoa que sabe dizer-se de uma forma nova[14].

2. O conceito da “revelação na palavra” como analogia para uma teologia da graça.

2.1 Fundamento bíblico.

Procuremos finalmente aplicar o conceito de auto doação do ‘locutor no interlocutor’ ao processo de justificação, santificação e inabitação trinitária. “O coração da analogia é que Deus habita na pessoa justificada como um locutor de um ato de palavra de auto doação no seu interlocutor, e, ainda mais profundamente, que se dá para ser acolhido e respondido”[15] . Na tradição bíblica, Deus revela-se como Palavra para os homens. A Palavra, o Verbo, o Logos, é o Filho eterno de Deus, “o esplendor da sua glória e a expressão da sua substância” (Heb 1,3). Deus expressa-se no Verbo, todo o seu ser é dito no Filho, todo o seu ser é atuado no Filho – como se a mente de Deus se derramasse no pensamento do Filho, ou como se o pensamento de Deus se resumisse no razão do Filho. S. João reflete esta corelação Pai-Filho dizendo no prólogo que o Verbo estava voltado para Deus (Jo 1,1). Depois, S. João afirmará que “o Verbo fez-se carne” (Jo 1,4), querendo assim dizer que Deus diz a Palavra única em Jesus de Nazaré, nEle diz-se a si próprio, interpreta-se a si próprio e manifesta-se a si próprio.

S. João lança a sua primeira carta dizendo que “o que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós” (1Jo 1,1-3). O apóstolo anuncia-nos desta forma que Deus continua a manifestar a sua Palavra ao mundo, a auto doar-se e a prometer-se a si mesmo na Palavra única ao mundo[16]. De facto, Deus disse-se em Jesus e continua a dizer-se ao mundo em Jesus ressuscitado, conforme a passagem da oração sacerdotal no Evangelho de S. João que afirma “agora sabem que tudo quanto me deste vem de ti, porque as palavras que me deste, a eles as dei. E eles receberam-nas, souberam verdadeiramente que saí de ti e acreditaram que Tu me enviaste. (…) Não peço apenas por estes, mas também por aqueles que acreditam em mim, por meio da sua palavra: para que todos sejam um só” (Jo 17,6-8;20-21). Verdadeiramente Deus continua a falar em Cristo.

2.2 Efetivação da paternidade divina

Vimos que o Pai diz para todo o sempre uma Palavra única às pessoas. Ao dizer em Jesus “tu és o meu filho”, “eu entrego-me por ti”, “eu amo-te”, “eu compreendo-te”, “eu perdoou-te”, Ele pode criar uma relação nova com cada pessoa. O Pai diz a Palavra impactante que gera a adoção filial, a maneira relacional que Ele é de ser Pai gerador de filhos; Deus é Pai e nós somos seus filhos porque Ele coloca dentro de nós uma nova Palavra criadora de uma nova situação de vida: “a adoção filial não é outra coisa que a doação do Filho interiorizado em nós pelo Espírito Santo”[17]. Ou seja, numa Palavra que nos diz respeito e que nos seja pessoalmente dirigida, que possa ser pronunciada por meio do evangelho, do kérigma (anúncio), da catequese, dos sacramentos, das pessoas e das circunstâncias da nossa vida, Deus concede-se e promete-se a Ele próprio como dom; de modo particular, Deus concede-se e promete-se a Ele próprio como dom no Espírito Santo. Na verdade, se num primeiro momento o Espírito que procede do Pai é o veículo que transporta a Palavra até nós, num segundo momento, o Espírito é o conteúdo que a Palavra tem para entregar. Assim, a Palavra pronunciada cria no homem a possibilidade de entregar e prometer o seu conteúdo de amor, que é o Espírito Santo. A Palavra anuncia o amor, o Espírito Santo, que vai atuar como preparação, escuta e disponibilidade, num primeiro momento; ou, como dizemos na linguagem tradicional da escolástica, como graça atual, graça operante e cooperante, ou graça da primeira justificação.

Vimos como a Palavra pronunciada pode criar dentro da alma o impacto de uma palavra transformante “tu és o meu filho muito amado” ou “amo-te”. O impacto dessa Palavra interiorizada não cria apenas uma imagem, uma figura, um traço, nem é apenas uma consciencialização ou uma interiorização de algo que é exterior a nós. A Palavra pronunciada é acolhida de tal forma que está em mim, é em mim, a ponto de eu me dizer nela, ou de me expressar nela. Recordemos que o impacto de uma palavra de vida gera uma interiorização de tal ordem que cria uma nova relação pessoal; ou, por outras palavras, mete dentro de nós a pessoa amada, a pessoa que nos constitui, que nos transforma, como “o locutor no interlocutor”. A referência à hora do encontro entre Jesus e os dois discípulos André e João – “era por volta das quatro horas da tarde” (Jo 1,39) – ilustra bem o impacto da receção da Palavra como constituição de um ‘novo espaço de linguagem’, de uma nova significação da vida, caracterizada como transformação interior. Note-se que essa transformação interior é sobrenatural no sentido em que na proclamação da palavra impactante é o próprio Espírito Santo que se entrega e se promete. A este respeito diz o autor que “trata-se da entrega pessoal e interveniente de um ser pessoal no outro, ainda que ele permaneça radicalmente transcendente”[18]. Quer dizer que é de facto o Espírito Santo que está na alma, mas num outro modo de presença invisível, e atuando como reconhecimento do pecado e reconhecimento da filiação. Há claramente nesta expressão analógica uma referência à graça santificante por meio da qual o Espírito Santo, graça incriada, desce às faculdades da alma, e opera com a sua presença no ato de querer e de conhecer, a justificação, a santificação e a inabitação trinitária. Há ainda uma clara referência ao carácter sobrenatural da própria transformação interior. Assim como na escolástica a nova presença do Espírito Santo como Amor imprime na alma uma semelhança sobrenatural, por meio da qual a alma procura amar e conhecer cada vez mais o seu objeto semelhante sobrenatural, assim também a representação da Palavra na alma, palavra transforma a minha vida, possibilita que a procure cada vez mais. Desta forma, o ‘locutor dentro do interlocutor’ torna-se Ele próprio o fundamento das virtudes infusas da fé, da esperança e da caridade, dos outros dons espirituais e dos dons carismáticos.

2.3 A reciprocidade da resposta

Finalmente, Aquele que diz a Palavra é dentro do interlocutor um ser de diálogo. Na realidade, a permanência do Espírito na alma fará com que a resposta do interlocutor seja uma resposta com o Espírito. Com efeito, a presença da Palavra de vida é de tal forma estruturante da nova condição existencial que é nEle que eu digo, que eu me expresso e que eu ajo; a auto doação das pessoas divinas como nova relação possibilita que a resposta seja uma doação recíproca, de tal modo que é na sua palavra, no seu dom e na sua promessa, que diz Abbá, Pai (Rom 8,15).  

 

São João, Matthias Stomer, 1639.



[1] O IV Concílio de Latrão (1215) afirmou que “por maior que seja a semelhança entre Criador e criatura, deve notar-se uma maior dissemelhança entre ela”, definindo o conceito de analogia (p. 156).

[2] p. 154.

[3] Mühlen, Flick, Alszeghy.

[4] Jean-Baptiste Lecuit, Quand Dieu habite en l'homme. Pour une approche dialogale de l'inhabitation trinitaire, Paris, Éditions du Cerf, coll. « Cogitation Fidei », 271, 2010.

[5] O conceito é do próprio autor que significa “uma inabitação do outro em mim” (p. 126). O autor não quer utilizar esta última expressão para guardar o conceito ‘inhabitação’ para a presença de Deus em nós.

[6] p. 104.

[7] Citação de K. Rahner, Jean-Baptiste Lecuit, p. 131. “Père, tu as pronnocé ta parole a travers mon être”.

[8] Jean-Baptiste Lecuit, p. 99.

[9] Jean-Baptiste Lecuit, p. 103. “Situação original de subjetividade transcendental”.

[10] O autor nota que “se a palavra éur reconheço-te como meu filho’ não tiver jamais sido explicitamente declarada , ela diz-se no conjunto dos atos, sem os quais ela não poderia dizer nada” (p. 118).

[11] P. 113.

[12] Nós temos muitas representações das pessoas na mente que são impressões sensoriais, experiências afetivas, lembranças biográficas, mas que são representações por delegação no dizer do autor, ou seja, nunca criaram um impacto transformante, afetivo e constante em nós. No fundo, nunca criaram uma mudança interior.

[13] Jean-Baptiste Lecuit, p. 115.

[14] Jean-Baptiste Lecuit, p. 115-119.

[15] Jean-Baptiste Lecuit, p. 131.

[16] S. João da Cruz dirá a este respeito “fixa os olhos somente nEle, porque foi nEle que restringi todas as coisas: nEle eu disse tudo e reveli tudo. Tu encontrarás nEle mais do que tu possas desejar e pedri. Tu pedes uma palavra, uma revelação, uma visão parcial: se prenderes os olhos nEle, tu encontrarás tudo Nele. Ele é toda a minha palavra, toda a minha resposta, ele é toda a minha visão e toda a minha revelação. Eu tudo vos respondi, tudo disse e tudo manifestei, tudo revelei, dando-vos por irmão, por companheiro, por mestre, por herança, por palavra e por recompensa” S. João da Cruz, A subida do Carmelo, Livro II, cap, XXII, n.4, citado na p. 136.

 

[17] Jean-Baptiste Lecuit, p. 137.

[18] Jean-Baptiste Lecuit, p. 157.

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