O
texto anterior - “As missões invisíveis do Filho e do Espírito Santo à alma
humana, em S. Tomás” – descrevia, na medida do possível, a presença da graça na
liberdade humana, como dom criado, ou presença operante e habitual de Deus na
nossa natureza. A tentativa de uma revisitação do tratado da graça na
perspetiva escolástica traz-nos sempre um vocabulário claro, bem definido, e sempre
analógico[1], mas
às vezes rígido e pouco personalista. Com certeza que é um vocabulário válido -
e assim há-de permanecer - mas isso não impede que possa ser traduzido noutras
analogias. S. Tomás de Aquino desenvolve a questão da graça a partir da
operação de amar e de conhecer “como o conhecido dentro do cognoscente, e o
amado dentro do amante” (I,q.43,a.3). Esta conceção intencional do amar e do
conhecer um semelhante sobrenatural não foi impeditiva da criação de outras
analogias como a da amizade. Na verdade, “se se aceita como S. Tomás de Aquino
(…) que a amizade comporta uma benevolência mútua e a reciprocidade, ambas fundadas
sobre a comunhão de um ‘bem’, então um verso como aquele ‘já não vos chamo
servos mas chamo-vos amigos’ (Jo 15,15) pode muito bem constituir uma fonte
escriturística da amizade entre Deus e o homem”[2].
Outros autores procuraram desenvolver o processo de interação entre Deus e o
homem na perspetiva do personalismo, da paternidade ou da conjugalidade[3]. O
autor a que aqui vamos fazer referência – Jean-Louis Lecuit[4] - procura desenvolver essa interação numa
perspetiva dialógica cuja conceção de opera em torno de um argumento criado
pelo próprio: “como o locutor no interlocutor”. Trata-se de um conceito que
parte da revelação de Deus como Palavra, e da interiorização da Palavra como
presença criadora de uma nova situação relacional.
Um
exemplo quotidiano ilustra perfeitamente o conceito desenvolvido “como o
locutor no interlocutor”[5],
como a inabitação de um outro, ou a interiorização de uma presença. As
expressões traduzem a nova relação pessoal criada por Deus dentro de mim mesmo
e que significa uma mudança na forma de me relacionar e de ver a vida. A
chamada de um amigo por exemplo não traz consigo apenas um conjunto de palavras
ou de informações com alguma importância para mim, sobretudo carregam nelas a
auto entrega de uma pessoa e a promessa de permanência junto de mim; essa
chamada é criadora de relação pessoal interior, diz J-B. Lecuit. A palavra
pronunciada por um homem que diz “amo-te” traz com ela o significado de toda
uma pessoa, de uma vida, que é auto doação e promessa de si mesma a uma outra
pessoa; e esse “amo-te” vai causar de tal ordem um impacto transformante que a
pessoa que o disse passa a estar-nela, a ser-nela. Um último exemplo pode ser o
de um pai que diz “meu filho”, e que nessa palavra se exprime todo como auto
comunicador e gerador de vida e de relação; a palavra não é indiferente mas gera
um espaço de relação e de sentido que o pai ‘demora’, ‘permanece’ no filho. De
facto, há palavras verdadeiramente marcantes e que ficam impressas na alma a
ponto de iniciarem processos novos de transformação relacional. São palavras
efetivas, verdadeiramente atuantes, no sentido de serem atos da presença
estruturante, constituinte, de um sujeito. Há realmente pessoas nas nossas
vidas que numa palavra disseram tudo aquilo que são para nós e que com essa
palavra nos fizeram como pessoas. De facto, “a doação da palavra tem a
densidade da entrega pessoal de si ao outro”[6].
Antecipamos
a dificuldade de aplicar a ‘analogia da revelação de nós mesmos na palavra’ à
graça de Deus que se entrega ao homem. Como é que Deus numa palavra se pode dar
a si mesmo como graça à alma humana? Como é que Deus que é Pai pode pronunciar
uma palavra que atravesse todo o meu ser[7]? Encontrei
a resposta na própria experiência pessoal de Deus como Pai. A experiência de
ter ouvido no primeiro ano de seminário a palavra “tu és meu filho, eu hoje te
gerei”, e aquela outra no segundo ano de seminário de ter chamado a Deus de
“Pai” pela primeira vez, são revelações de palavra que trazem a auto doação de
Deus e a promessa de si próprio, e que fazem recuar o pecado, criando um espaço
novo ‘como num templo, para uma presença sobrenatural. Cada um de nós, à sua
maneira, pode identificar a forma como Deus se dirigiu numa Palavra que só a si
diz respeito, que foi pessoalmente dirigida, e depois acolhida como nova
mudança e nova situação. É nessa Palavra “tu és o meu filho”, “eu entrego-me
por ti”, “eu amo-te”, “eu compreendo-te”, “eu perdoou-te”, que se efetiva a
paternidade divina e a graça da adoção filial. Essa relação filial é a relação
que na Escritura melhor expressa a relação de Deus com a criatura. O sumário
deste processo da graça na analogia da revelação e da interiorização será de
seguida pormenorizado na perspetiva do autor.
1.
O conceito da “revelação na palavra” numa perspetiva humana.
Vimos
anteriormente como a palavra de um amigo que liga, de um pai que diz “meu
filho” ou de um homem que diz “amo-te” traz um conteúdo que é mais importante
do que a própria palavra dita: “essa palavra dá a própria pessoa”[8]. Ao
dizê-la estou a fazer uma auto entrega de mim mesmo e a prometer-me a mim mesmo
ao outro; ao pronunciar uma palavra de vida estou a revelar a minha situação
original de subjetividade[9] a
mim mesmo e ao outro; por último, estou a fazer uma interpretação da minha
existência, uma compreensão de mim mesmo, como existência reportada a alguém,
co-implicada, que gera uma pessoa. No fundo, a palavra dita, diz-me[10]
ao outro. Se por um lado a palavra dita é uma palavra de vida e uma palavra
promitente de mim mesmo ao outro, por outro, é, como vimos em cima, uma palavra
geradora de uma nova situação.
A
palavra de um homem, de um pai, de um conjugue, de um amigo, que traz consigo a
auto comunicação dessa pessoa, cria, no ato de dizer a palavra, uma
interiorização – um impacto - de tal ordem que gera um novo tipo de presença da
pessoa dentro de nós. Dito doutra forma, essa palavra impactante e
transformante gera não apenas uma representação da pessoa por delegação[11] -
como se a pessoa fosse interiorizada como um objeto da sensação, da figuração,
da imaginação, da memória, etc [12] -
mas constitui, enquanto palavra impactante, um ato de nova relação da pessoa. O
impacto do ato de palavra como constitutivo de uma pessoa – “como o locutor no
interlocutor” – tem um carácter traumático, no sentido de que o outro faz
irrupção de tal ordem na minha esfera de consciência, que cria em mim um novo
‘espaço pessoal de linguagem’[13].
Por espaço pessoal de linguagem entende-se o quanto uma nova relação de vida
provoca uma nova significação, uma nova definição e uma nova linguagem, que não
é apenas uma nova consciencialização de si, mas a própria constituição do
sujeito como uma pessoa que sabe dizer-se de uma forma nova[14].
2.
O conceito da “revelação na palavra” como analogia para uma teologia da graça.
2.1
Fundamento bíblico.
Procuremos
finalmente aplicar o conceito de auto doação do ‘locutor no interlocutor’ ao
processo de justificação, santificação e inabitação trinitária. “O coração da
analogia é que Deus habita na pessoa justificada como um locutor de um ato de palavra
de auto doação no seu interlocutor, e, ainda mais profundamente, que se dá para
ser acolhido e respondido”[15] .
Na tradição bíblica, Deus revela-se como Palavra para os homens. A Palavra, o
Verbo, o Logos, é o Filho eterno de Deus, “o esplendor da sua glória e a
expressão da sua substância” (Heb 1,3). Deus expressa-se no Verbo, todo o seu
ser é dito no Filho, todo o seu ser é atuado no Filho – como se a mente de Deus
se derramasse no pensamento do Filho, ou como se o pensamento de Deus se
resumisse no razão do Filho. S. João reflete esta corelação Pai-Filho dizendo
no prólogo que o Verbo estava voltado para Deus (Jo 1,1). Depois, S. João
afirmará que “o Verbo fez-se carne” (Jo 1,4), querendo assim dizer que Deus diz
a Palavra única em Jesus de Nazaré, nEle diz-se a si próprio, interpreta-se a
si próprio e manifesta-se a si próprio.
S.
João lança a sua primeira carta dizendo que “o que era desde o princípio, o que
ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos
tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida
manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida
eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós” (1Jo 1,1-3). O
apóstolo anuncia-nos desta forma que Deus continua a manifestar a sua Palavra
ao mundo, a auto doar-se e a prometer-se a si mesmo na Palavra única ao mundo[16].
De facto, Deus disse-se em Jesus e continua a dizer-se ao mundo em Jesus
ressuscitado, conforme a passagem da oração sacerdotal no Evangelho de S. João
que afirma “agora sabem que tudo quanto me deste vem de ti, porque as palavras
que me deste, a eles as dei. E eles receberam-nas, souberam verdadeiramente que
saí de ti e acreditaram que Tu me enviaste. (…) Não peço apenas por estes, mas
também por aqueles que acreditam em mim, por meio da sua palavra: para que
todos sejam um só” (Jo 17,6-8;20-21). Verdadeiramente Deus continua a falar em
Cristo.
2.2
Efetivação da paternidade divina
Vimos
que o Pai diz para todo o sempre uma Palavra única às pessoas. Ao dizer em
Jesus “tu és o meu filho”, “eu entrego-me por ti”, “eu amo-te”, “eu
compreendo-te”, “eu perdoou-te”, Ele pode criar uma relação nova com cada
pessoa. O Pai diz a Palavra impactante que gera a adoção filial, a maneira
relacional que Ele é de ser Pai gerador de filhos; Deus é Pai e nós somos seus
filhos porque Ele coloca dentro de nós uma nova Palavra criadora de uma nova
situação de vida: “a adoção filial não é outra coisa que a doação do Filho
interiorizado em nós pelo Espírito Santo”[17]. Ou
seja, numa Palavra que nos diz respeito e que nos seja pessoalmente dirigida,
que possa ser pronunciada por meio do evangelho, do kérigma (anúncio), da
catequese, dos sacramentos, das pessoas e das circunstâncias da nossa vida,
Deus concede-se e promete-se a Ele próprio como dom; de modo particular, Deus
concede-se e promete-se a Ele próprio como dom no Espírito Santo. Na verdade,
se num primeiro momento o Espírito que procede do Pai é o veículo que
transporta a Palavra até nós, num segundo momento, o Espírito é o conteúdo que
a Palavra tem para entregar. Assim, a Palavra pronunciada cria no homem a
possibilidade de entregar e prometer o seu conteúdo de amor, que é o Espírito
Santo. A Palavra anuncia o amor, o Espírito Santo, que vai atuar como preparação,
escuta e disponibilidade, num primeiro momento; ou, como dizemos na linguagem
tradicional da escolástica, como graça atual, graça operante e cooperante, ou graça
da primeira justificação.
Vimos
como a Palavra pronunciada pode criar dentro da alma o impacto de uma palavra
transformante “tu és o meu filho muito amado” ou “amo-te”. O impacto dessa
Palavra interiorizada não cria apenas uma imagem, uma figura, um traço, nem é
apenas uma consciencialização ou uma interiorização de algo que é exterior a
nós. A Palavra pronunciada é acolhida de tal forma que está em mim, é em mim, a
ponto de eu me dizer nela, ou de me expressar nela. Recordemos que o impacto de
uma palavra de vida gera uma interiorização de tal ordem que cria uma nova
relação pessoal; ou, por outras palavras, mete dentro de nós a pessoa amada, a
pessoa que nos constitui, que nos transforma, como “o locutor no interlocutor”.
A referência à hora do encontro entre Jesus e os dois discípulos André e João –
“era por volta das quatro horas da tarde” (Jo 1,39) – ilustra bem o impacto da
receção da Palavra como constituição de um ‘novo espaço de linguagem’, de uma
nova significação da vida, caracterizada como transformação interior. Note-se
que essa transformação interior é sobrenatural no sentido em que na proclamação
da palavra impactante é o próprio Espírito Santo que se entrega e se promete. A
este respeito diz o autor que “trata-se da entrega pessoal e interveniente de
um ser pessoal no outro, ainda que ele permaneça radicalmente transcendente”[18].
Quer dizer que é de facto o Espírito Santo que está na alma, mas num outro modo
de presença invisível, e atuando como reconhecimento do pecado e reconhecimento
da filiação. Há claramente nesta expressão analógica uma referência à graça
santificante por meio da qual o Espírito Santo, graça incriada, desce às
faculdades da alma, e opera com a sua presença no ato de querer e de conhecer,
a justificação, a santificação e a inabitação trinitária. Há ainda uma clara
referência ao carácter sobrenatural da própria transformação interior. Assim
como na escolástica a nova presença do Espírito Santo como Amor imprime na alma
uma semelhança sobrenatural, por meio da qual a alma procura amar e conhecer
cada vez mais o seu objeto semelhante sobrenatural, assim também a representação
da Palavra na alma, palavra transforma a minha vida, possibilita que a procure
cada vez mais. Desta forma, o ‘locutor dentro do interlocutor’ torna-se Ele
próprio o fundamento das virtudes infusas da fé, da esperança e da caridade,
dos outros dons espirituais e dos dons carismáticos.
2.3
A reciprocidade da resposta
Finalmente,
Aquele que diz a Palavra é dentro do interlocutor um ser de diálogo. Na
realidade, a permanência do Espírito na alma fará com que a resposta do
interlocutor seja uma resposta com o Espírito. Com efeito, a presença da
Palavra de vida é de tal forma estruturante da nova condição existencial que é
nEle que eu digo, que eu me expresso e que eu ajo; a auto doação das pessoas
divinas como nova relação possibilita que a resposta seja uma doação recíproca,
de tal modo que é na sua palavra, no seu dom e na sua promessa, que diz Abbá,
Pai (Rom 8,15).
[1]
O IV Concílio de Latrão (1215) afirmou que “por maior que seja a
semelhança entre Criador e criatura, deve notar-se uma maior dissemelhança
entre ela”, definindo o conceito de analogia (p. 156).
[2]
p. 154.
[3]
Mühlen, Flick, Alszeghy.
[4] Jean-Baptiste Lecuit, Quand Dieu habite en l'homme. Pour une
approche dialogale de l'inhabitation trinitaire, Paris, Éditions du Cerf,
coll. « Cogitation Fidei », 271, 2010.
[5]
O conceito é do próprio autor que significa “uma inabitação do outro em mim”
(p. 126). O autor não quer utilizar esta última expressão para guardar o
conceito ‘inhabitação’ para a presença de Deus em nós.
[6]
p. 104.
[7]
Citação de K. Rahner, Jean-Baptiste Lecuit, p. 131. “Père, tu as pronnocé ta
parole a travers mon être”.
[8] Jean-Baptiste
Lecuit, p. 99.
[9] Jean-Baptiste
Lecuit, p. 103. “Situação original de subjetividade transcendental”.
[10]
O autor nota que “se a palavra éur reconheço-te como meu filho’ não tiver
jamais sido explicitamente declarada , ela diz-se no conjunto dos atos, sem os
quais ela não poderia dizer nada” (p. 118).
[11]
P. 113.
[12]
Nós temos muitas representações das pessoas na mente que são impressões
sensoriais, experiências afetivas, lembranças biográficas, mas que são
representações por delegação no dizer do autor, ou seja, nunca criaram um
impacto transformante, afetivo e constante em nós. No fundo, nunca criaram uma
mudança interior.
[13] Jean-Baptiste
Lecuit, p. 115.
[14] Jean-Baptiste
Lecuit, p. 115-119.
[15] Jean-Baptiste
Lecuit, p. 131.
[16] S.
João da Cruz dirá a este respeito “fixa os olhos somente nEle, porque foi nEle
que restringi todas as coisas: nEle eu disse tudo e reveli tudo. Tu encontrarás
nEle mais do que tu possas desejar e pedri. Tu pedes uma palavra, uma
revelação, uma visão parcial: se prenderes os olhos nEle, tu encontrarás tudo
Nele. Ele é toda a minha palavra, toda a minha resposta, ele é toda a minha
visão e toda a minha revelação. Eu tudo vos respondi, tudo disse e tudo
manifestei, tudo revelei, dando-vos por irmão, por companheiro, por mestre, por
herança, por palavra e por recompensa” S. João da Cruz, A subida do Carmelo,
Livro II, cap, XXII, n.4, citado na p. 136.
[17] Jean-Baptiste
Lecuit, p. 137.
[18] Jean-Baptiste
Lecuit, p. 157.
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