segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Homilias

9 de março de 2025, Domingo I da Quaresma

Seremos servidos por anjos!

O texto de Lucas diz que Jesus veio ‘repleto’ do Espírito Santo, das água do rio Jordão. Depois desse momento intenso e ardente, sentiu-se impelido a ir ao deserto. Imaginemos o Senhor Jesus na solidão do deserto e da montanha, sem pessoas e sem lugares, sem mínimos de vida. Tantas vezes estamos como Jesus no deserto! Esse é, depois do tempo da exuberância, o tempo da solidão e da tentação; é o tempo do cansaço do matrimónio, do sem saber o que fazer aos filhos, das preocupações com os pais; é o tempo da dificuldade económica, do desemprego, da vontade de mudar, etc, etc. Se não passámos, estamos a passar ou iremos passar no meio do deserto, também sozinhos, sem lugares habitáveis, sem mínimos de sentido. 

O evangelho mostra-nos que é nesse deserto por que passamos que aparecem as grandes tentações. A primeira é a de poder consumir tudo, de poder utilizar tudo, como esvaziar o frigorífico, o shopping ou a conta bancária; a segunda tentação é a de poder mandar em tudo, de poder dizer tudo, de poder fazer tudo, com toda a liberdade e sem responsabilidade; a terceira, a de poder fazer uma coisa inédita, que deixe todos boquiabertos, como acabar com o matrimónio, cortar relação com a família, etc. O deserto e a tentação são lugares que todos acabaremos por frequentar.

É nesse lugar comum que o Senhor se torna um pioneiro. Jesus abre caminho para o Pai. Só com o Pai, na presença de Deus, se podem vencer as tentações. O mestre promete-nos que seremos servidos por anjos!


2 de fevereiro de 2025, Festa da Apresentação do Senhor, Alcanena, 12.00

O cântico processional deste domingo 'Levantai ó portas os vossos umbrais e entrará o rei da glória' é um belíssimo mote para esta festa da Apresentação do Senhor. 

Na realidade, nós cantamos o salmo 27 - 'levantai ó portas os vossos umbrais, alteai-vos pórticos antigos, e entrará o rei da glória; quem é esse rei da glória? o Senhor poderoso nas batalhas' - cantamo-lo, muitas vezes, ao longo do ano litúrgico! Na Festa da Apresentação, no dia 2 de fevereiro; na Descida à mansão dos mortos, em Sábado santo; na Ressurreição do Senhor, no Domingo de Páscoa; e, também, na Ascensão do Senhor. É um salmo antigo, escrito talvez para a dedicação do templo de Jerusalém, ou para festejar essa mesma dedicação, ou até para cantar a entronização de um rei de Israel. O Salmo canta a vinda da luz ao seu templo; é uma luz tão forte que precisa que os ferrolhos antigos se destranquem, e os portões se alarguem para a vinda de Deus. 

A leitura faz-me lembrar o Non abiate paura! Aprite le porte, anzi, spalancate le porte! do papa João Paulo II, no início do seu ministério pontifício. Precisamos de abrir as comunidades, as pessoas, nós mesmos, à luz!

Depois, escutámos o evangelho de Lucas. Tenho a imagem da Virgem Maria a levar um bébé e a entregá-lo a Simeão. Quando as mães e os pais levam um bébé a casa dos avós, dos familiares ou dos amigos que a criança conhece, ela logo saltará para o colo de um rosto ou de um aconchego que lhe é familiar. Tenho a imagem do Menino Jesus a saltar do regaço de Maria para os braços de Simeão. Jesus vem ao que é seu: aquele templo, aquela liturgia, aquele velho, são-lhe familiares, pertencem-lhe! 

E hoje cada um de nós vem ao que seu: também esta casa, este ambão e este altar, estes livros e este cálice são-nos familiares. Vimos ter com Aquele que faz parte da nossa vida que é o Senhor Jesus! Obrigado, Senhor, por fazeres parte da nossa vida!   


12 de janeiro de 2025, Festa do Batismo do Senhor, 12.00, Alcanena, Igreja de S. Pedro

"O que é que queres ser quando fores grande?!"

Os pais habitualmente perguntam aos filhos 'o que é que queres ser quando fores grande?!' Ontem, na Igreja de Santa Maria, os miúdos respondiam 'quero ser futebolista', ou 'tenista' ou 'paleontólogo'! É bom que os pais façam essa pergunta e ajudem os filhos a compreender a vida como missão. Parece-me, no entanto, que os pais de Jesus, Maria e José, nunca fizeram essa pergunta ao Menino Jesus; arriscavam-se a levar uma resposta semelhante àquela 'Não sabíeis que devia estar na casa de meu Pai?!'

É possível que os pais de Jesus nunca tivessem feito a pergunta mas a tivessem guardado no coração. Parece-me, no entanto, que o Menino Jesus terá perguntado 'Meu Deus e Meu Pai, o que é que queres que eu seja?!' Sim, Jesus coloca-se diante do Pai e pergunta-lhe sobre a sua missão, que é a de ser salvador do mundo. Como diz o profeta Isaías, 'fiz de ti a aliança do povo e a luz das nações, para abrires os olhos aos cegos, tirares do cárcere os prisioneiros e da prisão dos que habitam nas trevas' (Is. 42,7). 

É uma bela missão, também expressa, logo depois do batismo, na sinagoga de Nazaré: 'o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu... Cumpriu-se hoje a palavra da Escritura que acabaste de ouvir.'. É a missão de fazer uma nova criação, descrita na pomba que paira sobre o caos, no livro do Génesis, e que hoje desce sobre Jesus; e também a de fazer uma nova aliança, como na pomba que regressa à arca depois do dilúvio, trazendo um raminho de oliveira.

Termino, dizendo que deste dia 12 de janeiro, festa do batismo do Senhor, até ao dia 20 de abril, Solenidade da ressurreição, vamos fazer o percurso de reconhecimento e de acolhimento do Senhor Jesus. Muitos perceberam dele um profeta, um mestre, um taumaturgo, outros acreditam nele como o Senhor, o Messias, o Filho de Deus. Outros recusaram-no. Temos um bom guia neste caminho que é a liturgia e a palavra de Deus.  


1 de janeiro de 2025, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, 16.00, Alcanena, Igreja de Santa Maria

Que vai ser de ti, meu filho?!

Hoje é o primeiro dia do ano, jornada mundial da paz e solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus!

Quando o anjo Gabriel anunciou que Maria iria ser a mãe do Filho de Deus, a jovem perguntou 'como será isso?'; e quando foi saudada por sua prima Isabel, Maria exclamou 'a minha alma glorifica o Senhor!' Maria escuta e responde.

Mas, desde o nascimento de Jesus, em Belém da Judeia, Maria não diz nada. 

Vêm os pastores e Maria guarda as suas palavras no coração; o mesmo acontecerá na visita dos magos, e ao ouvir as palavras de Simeão e de Ana, no templo de Jerusalém. 'Maria guardava todos estes acontecimentos, meditando-os em seu coração' (Lucas 2, 19).

Que pensas Maria?!

Parece-me que não há dúvidas, há sim inseguranças! Como uma mãe que tem nos braços um bébé e admira-se de tanta pequenez e fragilidade, Maria também contempla, insegura, quase incerta, o Menino recém nascido. 

Parece que a sentimos pensar 'o que será de ti?!', 'como serás rei?!', ' como serás Filho do Altíssimo?! Essa insegurança é o espaço que faz contemplar o Menino como um Mistério.

A insegurança, a incerteza das nossas vidas, neste início de ano, fazem-nos contemplar, como Maria, a vida como um presente, um mistério, cujo destino está nas mãos de Deus!

Senhor, abençoa o mistério que somos todos nós!


29 de dezembro de 2024, domingo, 12.00, Alcanena, Festa da Sagrada Família

O envolvimento dos pais de Jesus

O Evangelho deste domingo da Sagrada Família de Nazaré tem duas frases pequeninas que gostaria de comentar.

A primeira é 'os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, pela festa da Páscoa' (Lc 2,41). Estamos habituados a ver Maria e José separados; ela é a Virgem Maria e ele o castíssimo justo de Israel; cada um tem as próprias aparições do anjo Gabriel, e as perspetivas sobre o Menino parecem não se cruzar. Esta frase mostra-nos, no entanto, que José e Maria iam todos os anos a Jerusalém, como casal, no espécie de peregrinação ou de retiro! Quanta cumplicidade, quanto envolvimento e compromisso um com outro estão manifestos nesta pequenina frase!

A segunda é a frase que segue 'quando Ele fez doze anos, subiram até lá, como era costume nessa festa' (Lc 2,42). José é o rosto paterno de Deus Pai para Jesus; Maria é o sinal da ação, da operação, do Espírito Santo e da graça derramada no coração. José e Maria são os canais humanos, como que as mediações da presença de Deus; com certeza que essa presença será essencial e interior no próprio Cristo, e será com certeza explicitada por Maria e José. Os pais de Jesus ensinam, melhor, introduzem, o Senhor Jesus à vida de Deus!

Parece-me que o que mais falta nos nossos casais e nas nossas famílias é Deus. Não tenhamos preconceito, respeito ou vergonha de falarmos da Santíssima Trindade, do Povo de Israel e da santa Igreja! 


24 de dezembro de 2024, terça-feira, 22.30, Espinheiro, Missa da noite

O poder de nos tornarmos filhos de Deus

A liturgia da palavra desta santa noite é cheia de contrastes e de desproporções. 

A primeira aparece-nos logo na primeira leitura tirada de Isaías quando descreve 'o calçado ruidoso da guerra' (7) e 'os belos pés do mensageiro que anuncia a paz', também de Isaías, na primeira leitura de amanhã (Is. 52). 

O segundo contrastes é o da 'roupa manchada de sangue' com 'o Menino recém nascido, envolto em panos e deitado na manjedoura' (Lc 2). O terceiro poderá ser o César Augusto imperando em todo o orbe com a pequenez da cidade de David, Belém, e da manjedoura feita trono.

As desproporções são gigantescas. De um lado o poder, do outro, o serviço, de um, o domínio, do outro, o do Espírito. 

Amanhã, na missa do dia, escutaremos no Evangelho de S. João que Deus 'deu-nos o poder de nos tornarmos filhos de Deus' (Jo 1). Esse é o poder de Jesus, o de entregar o Espírito Santo; e nós participamos desse poder de sermos doadores do Espírito, no perdão, na comunhão e na construção de um mundo melhor.


21 de dezembro de 2024, sábado, 6.30, Igreja de S. Pedro

Já passou! Mostra-me o teu rosto!

As leituras deste dia 21 de dezembro criam a imagem de um pai que diz à filha 'já passou!', 'olha p'ra mim!', 'mostra-me o teu rosto!', depois dela ter caído, ter-se assustado ou acordado de um pesadelo.

Na primeira leitura, tirada do livro do Cântico dos cânticos, Deus diz 'já passou o inverno' e 'mostra-me o teu rosto, deixa-me ouvir a tua voz' (Cãnt 2,8). É o próprio Deus que assegura à trémula pomba que não precisa esconder-se nas fendas dos rochedos nem de abrigar-se nas encostas escarpadas.

No Evangelho de Lucas, escutámos a visita de Maria a sua prima Isabel. Não esqueçamos que o relato da aparição do anjo Gabriel a Zacarias, no templo de Jerusalém, nos tinha deixado com o escondimento de Isabel: 'Isabel, sua esposa, concebeu e permaneceu oculta durante cinco meses' (Lc 1,24). Isabel parece ter receio, sente embaraço ou vergonha.

É a Virgem Maria que diz a Isabel 'já passou!', 'mostra-me o teu rosto!', 'olha p'ra mim!'. De facto, Isabel já não precisa de ter medo porque se aproxima o Salvador, e diz 'donde me é dado que venha ter comigo a mão do meu Senhor?' Ela ouviu a voz da saudação e veio-lhe ao encontro.

Parece-me que neste Natal o Senhor Jesus vem para nos tirar o medo, a vergonha, a submissão, causados pelo desprezo ou pela humilhação. Temos um Salvador deixemo-nos libertar por Ele.


22 de dezembro de 2024

III Domingo do Advento, Domingo da Alegria

A justiça é o caminho para a alegria!

O Evangelho deste 3º domingo do advento coloca-nos alguns grupos de improváveis a mudar de vida. 

Encontramos, por exemplo, os soldados, gente habituada à guerra, à violência e à morte, a perguntarem a João 'o que devemos fazer?'. Também os publicanos, cobradores de impostos, habituados à usura e à corrupção, perguntam a João 'o que devemos fazer?'

Aos primeiros, João responde que não devem praticar a violência e devem contentar-se com o soldo; aos segundos, responde que não devem exigir mais do que for prescrito.

Trata-se, no entanto, da ordem da justiça. 

Significa que é necessário passar pelo arrependimento, e depois pela justiça, para chegar à ordem da graça. Uma não existe sem a outra! 

É necessário, por isso, colocar as relações humanas na ordem justa para nos podermos amar uns aos outros.

Nós somos seres relacionais; relacionamo-nos na família, na turma, no clube, na catequese, no partido, etc. Temos relações que nos constituem e nos constroem. 

Procuremos a justiça em todas elas de modo a podermos viver na ordem da graça. 


10 de novembro de 2024 

XXXII Domingo do Tempo Comum

Dispor dos restos! - a viúva de Sarepta e a viúva de Jerusalém 

A primeira leitura deste domingo, tirada do primeiro livro dos Reis (17) conta-nos a história de uma viúva, mãe de um filho único, que se encontra na rua, a apanhar ‘uns cavacos de lenha para preparar esse resto para mim e para o meu filho’ e depois esperar a morte. Esse resto era o pouco de azeite na almotolia e o punhado de farinha na panela; a região passava com certeza por uma terrível seca. 

Ao deparar-se com Elias, o profeta pede-lhe ‘coze-me um pãozinho e depois traz-mo aqui, e prepararás depois o resto para ti e para o teu filho…’. A mulher fez o que lhe tinha dito o profeta e nunca mais se esgotou o azeite e a farinha.

O evangelho de Marcos narra também a história da viúva. Desta vez, trata-se de uma viúva de Jerusalém que vem ao templo e deposita duas pequenas moedas, ou seja, ‘tudo o que tinha, tudo o que possuía para viver’ (Mc 12)... 

Estas duas histórias não podem ser a apologia da pobreza. Descrevem a imensa confiança - ‘confiança prática’ - na providência de Deus que nunca abandona aqueles que nela esperam. 

A mim, estes restos de azeite, de pão e de moedas, recordam-me alguns restos de vida que guardamos e com os quais lidamos muitas vezes. São os restos do que já foi e não volta mais. 

São, por exemplo, um nome que sobrou de uma família imensa e importante, um curso que foi feito e não serve de nada, ma empresa grande e agora fechada, uma casa de movimento agora em ruína, um trabalho que fiz e do qual desisti, etc, etc. 

Os exemplos poderiam tocar também as nossas relações, as nossas paróquias, etc, etc… uma paróquia pequenina que já foi grande e ativa, etc, etc… 

São os restos, as lembranças, as ruínas, as sobras, do muito que foi feito.

Penso que o Senhor nestas leituras nós poderá querer mostrar que as vezes é preciso perder para ganhar, é preciso dispor para ganhar, é preciso pôr a zeros as contas do nosso passado e do nosso presente para podermos começar de novo. 

As víúvas deste Domingo puseram tudo a zeros e não se importaram com isso. Faltou-lhes alguma coisa?


3 de Novembro de 2024

XXXI Domingo do Tempo Comum

Sejamos livres! - a libertação do escriba (Marcos 12)

Acontece algumas vezes que os evangelista, à margem da narrativa, inserem alguns comentários pessoais. 

Basta recordarmos, por exemplo, do momento em que S. João diz no momento da deposição de Cristo no sepulcro 'por ser sábado - era um grande dia aquele sábado! -...'

Há um que pode servir de introdução à homilia deste domingo. É de S. Marcos, no capítulo 7: 'Os fariseus viram que vários dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras, isto é, por lavar - 3 é que os fariseus e todos os judeus em geral não comem sem ter lavado e esfregado bem as mãos, conforme a tradição dos antigos; 4ao voltar da praça pública, não comem sem se lavar; e há muitos outros costumes que seguem, por tradição: lavagem das taças, dos jarros e das vasilhas de cobre.' 

Parece que os fariseus, e os judeus em geral, cumprem muitos preceitos, que pensam ser de tradição divina e não passam de preceitos humanos! 

O Evangelho, no entanto, apresenta-nos hoje um escriba que deseja questionar as coisas adquiridas e libertar-se de coisas que lhe parecem mais fantasias do que realidades importantes. 

O escriba deste domingo, no fundo, vem perguntar ao Senhor Jesus o que verdadeiramente é importante. Ele procura ser livre das coisas passageiras para concentrar-se na pessoa divina, no 'amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo'.

Parece-me que muitas vezes nos desfocamos da realidade primeira. O Senhor primeiro deu-nos a Páscoa e, depois, é que nos permitiu fazer os preceitos. Não podemos tomar os últimos pelo primeiro. 

Sejamos livres! Sejamos criativos! Abramo-nos ao outro! Deixemo-lo entrar nas nossas vidas e nos nossos grupos!


27 de outubro de 2024

XXX Domingo do Tempo Comum

Que eu veja o Filho de David!! - O cego Bartimeu (Marcos 10)

É surpreendente o silêncio que Jesus impõe aos discípulos, às multidões e aos miraculados. Há um cuidado, uma espécie de segredo, imposto pelo próprio Senhor. Jesus não quer mal entendidos! Ele não será alguém para liderar políticas e projetos, nem para lidar com as pessoas como se lidam com os objetos. O silêncio guarda a Sua verdadeira identidade. E o Senhor impõe o silêncio. 

Vemos isso na cura do surdo-mudo - aquele a quem Jesus enfia os dedos pelas orelhas dentro e diz 'Effetá! Abre-te!' (Marcos) - o qual ouvirá, pela primeira vez, 'Não digas nada a ninguém!' 

O mesmo sucede ao cego de Betesda a quem Jesus também dirá 'Não digas nada a ninguém!' Muitas outras vezes, o Senhor ordena o silêncio aos seus silêncios. 

É por essa razão que a multidão manda calar o cego Bartimeu, filho de Timeu. É que ele grita 'Filho de David', 'Filho de David', e ninguém pode saber que Ele é mesmo o Filho de David. 

Curiosamente, desta vez, Jesus ouve-o, chama-o e como que lhe diz 'Tens razão, Sou o Filho de David': que queres que te faça? Que eu veja, que eu Te veja, que eu veja o Filho de David! Jesus já não se importa, Jesus quebra o silêncio que impôs. 

O Senhor Jesus compreende que as pessoas também compreenderam! As pessoas compreenderam que Ele é a pessoa divina que produz efeitos no coração das pessoas. O Senhor não se importa mais com o seu segredo. 

Manda então os discípulos à aldeia ali em frente a soltar um jumentinho filho de uma jumenta para entrar na cidade de Jerusalém ao canto do 'Hossana! Hossana! Ao Filho de David!"     


13 de outubro de 2023

XXVIII Domingo do Tempo Comum

Ficar para a história! - o homem que possuía muitas riquezas (Marcos 10)

Os evangelhos têm o cuidado de dizer os nomes daqueles que procuram Jesus e o seguem. Identificam Nicodemos, Zaqueu, Bartimeu, Mateus, etc., mas não o fazem quando aqueles que procuram Jesus deixam o seu seguimento a meio caminho. É o caso do homem deste Domingo que 'se aproximou, correndo, e se ajoelhou diante dEle' (Mc 5,3). É um anónimo... 

Com certeza que Nicodemos, Zaqueu ou Mateus poderiam aproximar-se de Jesus, correndo e dizendo as palavras da primeira leitura, tiradas do livro da Sabedoria: ' orei e foi-me dada a prudência, implorei e veio a mim o espírito de sabedoria; amei-a e decidi tê-la como luz' (Sab 7,7). Eles queriam mais e estavam disponíveis para o mais que viesse. 

Com o homem do evangelho é diferente: ele conhece a escritura, cumpre os mandamentos, vai à sinagoga e peregrina a Jerusalém, mas não sente nada, não passa daquilo, 'desde a sua juventude', em nada progrediu na fé e já não sabe o que há-de fazer. Habitualmente o desejo é um guia do caminho, mas este homem anónimo perdeu-o. 

Corre para Jesus, explica-lhe o percurso, e o Mestre compreende-lhe a dependência, a amarra, e simplifica-o como se fosse um pequeno laçarote: 'Vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e depois segue-me'. Jesus olha com simpatia, porque a resolução é muito simples, mesmo muito fácil. Se a dependência das riquezas é uma amarra enorme, para Jesus é uma questão simples de liberdade e de desprendimento. 

Gostaria de salientar que Jesus oferece a este homem anónimo a oportunidade de uma vida. Parece-me que Jesus de Nazaré o convida para o grupo dos discípulos, convida-o a conviver com Simão Pedro, André, Tiago e João. Mas a dependência, a cegueira, não permite a este anónimo antecipar o chamamento e o seguimento, e, por isso, não ficou na história. 


22 de setembro de 2024

XXV Domingo do Tempo Comum

Esta é a vossa missão! - o poder dos discípulos (Marcos 9)

O Senhor Jesus mandou os seus discípulos, dois a dois, a anunciar o Reino dos céus, a curar os enfermos e a perdoar os pecados. Os evangelhos dizem-nos que eles sentiram uma grande alegria e uma profunda gratidão por verem os efeitos da missão. Os discípulos estavam bem na missão! 

Nos últimos domingos, o Senhor anuncia-lhes, porém, que tem de ir a Jerusalém, para sofrer muito e morrer às mãos dos homens, e ressuscitar ao terceiro dia. Mas "os discípulos não compreendiam aquelas palavras e tinham medo de o interrogar" (Mc 9); não as compreendiam, mas compreendiam o que poderia significar ir a Jerusalém, com o Messias, o novo Rei de Israel!

Parece-me vê-los a fantasiar: Simão Pedro poderia imaginar-se o novo governador da cidade, André novo sumo sacerdote do templo, Mateus o guardador do tesouro, e Tiago o chefe do sinédrio. Cada um deles aparece-me assim destacado da missão, a prever concorrências e a congeminar estratégias, no fundo, a pôr-se em bicos de pés e a fazer-se maior que o outro! 

À noite, Jesus perguntou-lhes: 'rapazes, ainda hoje não vos ouvi falar sobre o anúncio do Reino, sobre a cura das doenças e o perdão dos pecados! Então, o que é que se passa?!' - ou: "o que discutíeis no caminho? Eles ficaram calados porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior" (Mc 9). Então Jesus chama uma criança para o meio, uma daquelas de um rancho de irmãos, desnutrida, magricela e suja, e diz-lhes: 'esta é a vossa missão!' 

Na verdade, quando nos distanciamos ou nos destacamos da verdadeira missão, ficamos mal, e, às vezes, até mal uns com os outros; e, pelo contrário, quando sabemos qual é, e quais as prioridades que a compõe, trabalhamos como um só, e vemos os efeitos do trabalho conjunto. E ficamos bem! Fiquemos bem na missão que é a vida e nas prioridades que a tornam intensa.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Espírito prático

 

A liturgia é prática. Começa-se por apresentar, introduzir, ler, cantar, proclamar, explicar e rezar, até aos anúncios finais. O que gravamos disso tudo, a palavra que ficou a remoer, é que pode ser Palavra de Deus para nós. Precisamos de um espaço p’ra fazer isso. Se for só p’ra proclamar deixamos de contar historias como os judeus.

De seguida, chama-se o Espírito que desce, mas não desce sozinho; traz Jesus pela mão para O esconder na flor da farinha e O tornar acessível a quem tenha fé. Ficamos sempre contentes por Eles descerem assim e, com os corações ao alto, vamos p’ra Deus. Precisamos de um espaco p’ra fazer isso. 

Eu acho que pode ser qualquer coisa que esteja aberta à descida e disponível à subida, sei lá, um altar, uma mesa, um vaso! Os espaços recortados dos altares dão, por exemplo, a ideia de movimento. Até pode ser um quadrado com um chapéu por cima - o baldaquino - como em Roma, ou com umas pinturas, como na Catalunha, ou então com uns arcos em ogiva - os americanos gostam muito. Nós apontamos tudo p’ró Ceu… e p’rá descida do Ceu! 

E, depois, quando aquilo tudo termina e ficamos sozinhos, e percebemos que aquele é p’ra ler e aqueloutro é p’ra descer e fazer subir, continuam a funcionar.

A liturgia é prática, é função. Ou funciona ou não funciona. A função aguça a arte, como a audácia, o engenho. Posso gostar ou não gostar, mas apenas depois de perceber que funciona quer esteja em grupo, quer esteja sozinho. Posso não gostar das peças da Notre Dame mas percebo para que é que servem. 

É só isso. 

Ps. Saudo as paróquias de Alcanena e de Monsanto, com alegria, amizade e fé, e, de modo particular, o Espinheiro, terra da Sra da Encarnação, onde retorno surpreendido e contente! Vou com tempo para ser quem sou, para deixar as pessoas serem quem são, nos lugares onde se sentem bem, e onde possam ajudar melhor. O caminho é p’ra Cristo e a missão é a forma de lá chegarmos!

segunda-feira, 18 de março de 2024

‘Uma geração de kids definitivos’ em Michel Houellebecq

1. Há já um tempo que queria ler M. Houellebecq. Não sei se o deva ler, ou, melhor, se não perco tempo em lê-lo. Há outros autores muito mais proveitosos ao espírito e à missão. Se quisesse fazer um comentário ao livro ‘A possibilidade de uma ilha’ entraria pela discussão sobre Teilhard de Chardin. Daniel defronta-se com Robert, um leitor de Teilhard - ‘na presença de um leitor de Teilhard de Chardin sinto-me desarmado, desconcertado, prestes a desfazer-me em lágrimas’ (73). Porque Teilhard é o pensador do Cristo Alfa e Omega, do donde e para onde do homem e da matéria. Há nele uma lenta cristificação do mundo; em Cristo, os processos ganham sentido, e, nesse ganho, tudo se transforma. Para Daniel, no entanto, só há o homem e a mulher, ‘um belo arranjo de partículas, uma superfície lisa, sem individualidade, cujo desaparecimento não teria importância nenhuma’; só há a matéria bruta, e a brutalidade da realidade e dos acontecimentos sociais; o homem tem apenas duas fases, a da ascensão, até aos quarenta, e a da degradação física e social, até à morte. Na primeira fase, cresce o sucesso, a riqueza, as realizações, e, com eles, o estatuto, a mansão de 17 quartos, os carros de alta cilindrada, o número de amigos, de mulheres disponíveis para o sexo; na segunda, cresce a ansiedade, o desejo insatisfeito, a confrontação com homens mais novos, a possibilidade da rejeição. ‘A minha encarnação degrada-se. As nossas noites já não vibram de terror e de êxtase, mas vamos vivendo, sem alegrias nem mistérios, o tempo parece-nos breve’. Diante da brutalidade do mundo, onde encontramos todo o género de vazio - abandono, vazio, solidão, enfermidade, envelhecimento, doença - e todo o género de violência - racismo, tortura, barbárie, pedofilia, homicídio, parricídio - Daniel compreende que é preciso fazer qualquer cosa. Os revolucionários respondem com uma brutalidade acrescida; os decoradores, como Vincent, procuram atenuar o sofrimento, criando uma nova estética, um mundo idílico;  os apaziguadores, como os eloimitas, satisfazem desejos, contemplam os bonismos da natureza, as maravilhas do ADN, as esperanças da ciência. Daniel é um experimentador de todas essas vivências, mas, sem se iludir com o naufrágio do homem e da civilização, prefere 'não viver no meio dos kids'. De nada vale tentar apaziguar-se. A realidade é dura. ‘Num mapa de escala 1/200 000, toda a gente parece feliz; à escala 1, encontramo-nos no mundo normal, o que não tem nada de divertido; mas se aumentarmos mais escala, entramos num pesadelo: começamos a distinguir os ácaros, as micoses, os parasitas, que roem as carnes’ (233).  No fundo, nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. A única solução para quem, como Zaratustra, anuncia que o amor morreu, será desaparecer. 'Fui dominado por um intenso desejo de desaparecer, de me fundir num vazio luminoso, activo, vibrante de potencialidades perpetuas' (363).

2. Os vários aspectos da existência humana são abordados de uma forma despersonalizada, quase mecânica, e determinista. Todos esses aspectos existenciais são um espaço de evangelização, no sentido de serem um lugar que pode receber uma boa notícia. A de que o amor não morreu. É por isso que o Evangelho continua a ser um testemunho do realismo da esponsalidade, da geração, da corporeidade, da amizade, da virtude. Contra o irrealismo, ou melhor, o hiper realismo que outra coisa não é que um materialismo. Contra o materialismo, a realidade da vida e do amor; contra o nihilismo, o sentido da existência.


Imagem do pintor hiperrealista Guillermo Lorca 

domingo, 3 de março de 2024

O SAGRADO CORAÇÃO, O AMOR ARDENTE PELA HUMANIDADE

1. Estamos a celebrar 350 anos das aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria de Alacoque (1638-1690). Estas aparições provocaram um estrondo tão grande que encontramos hoje em quase todas as igrejas uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. Encontramos, aliás, em todas elas, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus e uma imagem de N. Sra de Fátima.

A primeira aparição ocorreu a 27 de dezembro de 1673, no dia do apóstolo S. João. Margarida Maria tinha entrado na capela do mosteiro da Visitação, em Paray le Moniale, para fazer a adoração noturna. Enquanto adorava o Santíssimo Sacramento, o Senhor Jesus apareceu-lhe com o Coração coberto de espinhos. A religiosa continuou em adoração, reclinando-se sobre o lado de Jesus, e ouvindo o batimento do Seu coração. Vê, depois, o Senhor Jesus pegar no seu coração - como um pequeno ponto - um átomo - que introduz dentro do Seu próprio coração, para, depois, o voltar a colocar no de Margarida Maria. Diz-lhe nesse momento ‘O meu coração arde de amor pelos homens. Doravante dou-te o nome de discípula do meu Sagrado Coração’. Ao fazê-la discípula do Coração, Jesus pede a Margarida uma resposta de amor. 

A segunda aparição ocorreu na primeira sexta feira de junho de 1674. Estando na capela do mosteiro em adoração ao Santíssimo Sacramento, Margarida Maria vê Jesus resplandecente, todo Ele rodeado de luz e de fogo, e vê as cinco chagas de Jesus como cinco sóis. Nessa aparição, o Senhor Jesus mostra-lhe o Seu lado aberto, e o Seu coração como uma fornalha, que é a fonte de luz do corpo do ressuscitado. Enquanto lhe mostra o lado aberto, Jesus diz-lhe ‘tu, ao menos, dá-me esta alegria de reparar o mais que possas’. O Senhor pede-lhe então para fazer uma Hora santa, das 23.00 às 00.00, dessa quinta em honra da agonia do Getsemani, ‘para acompanhar-me na humilde oração que fiz ao Pai no meio de todas as minhas angústias’ e para comungar nas primeiras sextas feiras de cada mês. Ao pedir a Hora santa e a comunhão na primeira sexta feira Jesus pede a margarida uma resposta de amor.

A terceira aparição ocorre a 13 de junho de 1675. Durante a adoração ao Santíssimo Sacramento, o Senhor Jesus aparece a Santa Margarida Maria, mostra-lhe o Seu coração rodeado de espinhos e diz-lhe ‘eis este coração que tanto amou os homens (voilá ce coeur qui a tant aimé les hommes), e que nada poupou até consumir-se e esgotar-se de amor. E em troca só recebe ingratidões, irreverências, sacrilégios e ofensas’. O Senhor Jesus pede, por fim, a Margarida Maria que ‘a primeira sexta feira depois da oitava do Corpo de Deus seja dedicada a uma festa particular para honrar o meu coração’. Ao pedir a festa do Sagrado Coração, Jesus pede a Margarida uma resposta de amor.

A primeira festa em honra do Sagrado Coração de Jesus foi celebrada por Santa Margarida Maria e pelo padre jesuíta S. Claude de la Colombiére em 21 de Junho de 1675, tendo sido oficializada no mosteiro de Visitação em 1686. A Festa do Sagrado Coração foi estendida a toda a Igreja em 1856 e, desde 2002, é o Dia de oração pela santificação dos sacerdotes.

Num tempo de muito rigorismo, moralismo e dogmatismo, marcado pelo juízo, pela pena e pelo castigo, as aparições do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria de Alacoque mostram que o Coração de Jesus é um coração ardente de amor por todos os homens. Nestas aparições de Paray le Moniale, o Senhor Jesus, no Seu Sagrado Coração, mostra-se de forma pessoal, direta e íntima, a Margarida Maria, e deixa-Se tocar por ela. Margarida Maria foi, de facto, uma discípula do Coração de Jesus e uma mensageira do Seu amor por todos os homens. 

2. Quais os textos evangélicos que falam do Coração? O Padre Claude de la Colombière era o orientador espiritual e o confessor das religiosas do mosteiro da Visitação, e conhecia muito bem Margarida Maria e a sua experiência do Sagrado Coração de Jesus. Com certeza que o padre jesuíta teve de ajuizar a verdade das aparições, e de confrontá-las com o Evangelho e com a Tradição da Igreja. Será que o Evangelho descreve o Coração de Jesus, como amor pessoal, direto e íntimo, e como amor aberto a todos os homens? Será que é apenas uma experiência mística isolada, ou é uma experiência de amor ardente, que deve ser dilatada? Escolhi três pequenos textos do Evangelho que nos ajudam a perceber como o Coração de Jesus no próprio Evangelho é uma relação de amor pessoal, direto e íntimo, e uma fonte de amor e de vida para o mundo:
Mateus 11: Vinde a mim, todos os que estais fatigados e oprimidos, e eu vos darei descanso. 29Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas vidas, 30pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.

João 7: 37No último dia, o mais importante da festa, Jesus pôs-se de pé e clamou, dizendo: «Se alguém tem sede, venha a mim; e beba 38quem acredita em mim. Como diz a Escritura: Do seu coração brotarão rios de água viva»39Disse isto acerca do Espírito, que estavam prestes a receber os que nele acreditaram; de facto, ainda não havia Espírito, porque Jesus não fora ainda glorificado.

João 19:31Os judeus, visto que era a Preparação, para que os corpos não permanecessem na cruz durante o sábado – era um grande dia o daquele sábado –, pediram a Pilatos que lhes quebrassem as pernas e fossem retirados32Vieram, então, os soldados e quebraram as pernas do primeiro e do outro que tinha sido crucificado com ele. 33Mas, ao chegar a Jesus, como o viram já morto, não lhe quebraram as pernas. 34No entanto, um dos soldados trespassou-lhe o lado com uma lança; e saiu imediatamente sangue e água.

3. Qual é a espiritualidade do Coração de Jesus? A espiritualidade do Sagrado Coração de Jesus é a espiritualidade do amor de Deus e da abertura de Deus a todos os homens. Trata-se de uma espiritualidade que pode ser resumida na frase: Jesus ama-me, Jesus ama todos os homens, Jesus deseja que O amemos e que nos amemos uns aos outros. Escolho para sintetizar quatro dimensões da devoção ao Sagrado Coração de Jesus:
a) Espiritualidade da abertura do coração. No evangelho de S. João, Jesus diz ‘Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (...) Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas. Ninguém ma tira sou Eu que a dou livremente’ (Jo 10,10-11,18). O Sagrado Coração de Jesus significa o coração humano de Jesus, é o centro originário da realidade humana de Jesus; o Sagrado Coração é a própria existência - a própria vida - de Jesus, oferecida a cada um de nós. A vida de Jesus é uma vida entregue, e o seu coração é um coração aberto a todos: aos familiares e aos conterrâneos de Nazaré, aos discípulos e aos habitantes das aldeias vizinhas, aos judeus e aos pagãos, aos homens e às mulheres, aos velhos e aos novos, aos pobres e aos doentes, aos publicanos e aos fariseus, aos políticos e aos sacerdotes.

O Sagrado Coração de Jesus é o sinal de que o Coração do Ressuscitado é um Coração aberto a todos os homens. Nos evangelhos estão representados todos os homens de todos os tempos e de todas as geografias. Os evangelhos mostram-nos que o Senhor Jesus a todos chama à vida e a todos chama à glória; o Senhor Jesus ama todos os homens, e a todos quer oferecer a salvação. Sem exclusões e sem condições. O Sagrado Coração é o sinal de que Jesus existe agora, de que ama incondicionalmente, e de que acompanha o ritmo da humanidade.

Se por um lado o Sagrado Coração de Jesus é o sinal do amor e da abertura de Deus a todos os homens, por outro, o Sagrado Coração pede também uma resposta de abertura e de amor. Se ‘eu tenho uma única doença - todo o amor que me falta - tenho (também) uma única salvação: todo o amor que Deus tem por mim’. Jesus pede-nos também uma resposta de amor como pediu a Margarida Maria. 

b) Espiritualidade de transformação de coração: de libertação da lógica da compra de amor e da lógica do medo. O Senhor diz no evangelho que ‘é do coração que procedem más intenções, homicídios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos difamações. São estas coisas que tornam o homem impuro’ (Mt 15,19-20). Estes são os frutos - os resultados - de não sabermos amar.

Fabio Rosini diz que nós, desde que entrámos no mundo, contamos apenas connosco próprios e com a satisfação das nossas carências pessoais: vivemos, por isso, na lógica de comprar amor - de mendigar amor - de instrumentalizar o amor - para sermos recompensados; e que, por essa razão, acabámos por entrar na lógica do medo de não sermos amados e de não obtermos a nossa compensação. As crianças dão um beijo à avó se virem em volta dela qualquer coisa que lhes interesse! Os adultos procuramos agradar ou cativar para sermos considerados ou estimados por alguém! Os exemplos podem ser muitos... 

Na lógica do comprar amor, mostramos que precisamos de ser gostados, estimados, reconhecidos, considerados, elogiados, satisfeitos. Temos horror de sermos tolerados, desconsiderados, de nos sentirmos a mais, de sermos desprezados, humilhados, ofendidos. Temos medo de não ser aceites, de não ser respeitados, de sermos rejeitados, etcO coração está cheio de medos: medo de não ser amado, medo de não ser apreciado, medo de não ter importância, medo de ser descartável, medo de ser rejeitado, medo de de desiludir, medo de perder o controlo, medo de sofrer. 

A lógica do medo dentro do homem é a autossabotagem de si próprio, e da sua felicidade. É a lógica de contar apenas comigo e de instrumentalizar todas as relações. 

O Sagrado Coração - o amor humano de Jesus - liberta-nos da lógica de comprarmos amor e da lógica do medo. O Sagrado Coração põe um só Senhor, e um só Espírito no coração, de tal modo que sei que a minha vida e o meu amor estão guardados na vida e no amor de Jesus. No Filho e no Espírito clamo Abbá Pai. 

O Sagrado Coração põe virtudes cardeais (justiça, fortaleza, temperança e prudência) no nosso coração; coloca virtudes teologais (fé, esperança e entendimento); e dons espirituais (entendimento, ciência, sabedoria, conselho, justiça, piedade e temor de Deus). Transforma o amor-de-mim e a vida-para-mim num amor-para-ti e numa vida-para-ti.

c) Espiritualidade de reparação do amor ferido: espiritualidade da consolação e da cura do amor ferido. Diz o Senhor ‘Vinde a mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei’ (Mt 11,28). Quando entramos na lógica de comprar amor e na lógica do medo entramos na dependência dos outros. A dependência dos outros traz-nos muitas feridas - feridas relacionais - porque as nossas mendicâncias, as nossas indigências, de amor, não são sempre correspondidas. A nossa procura de amor recebe muitas vezes a resposta das muitas indiferenças e desconsiderações; de murmurações, críticas e acusações; desprezos, humilhações e abusos; rejeição, abandono e inimizade. 

Essas respostas criam também enormes feridas interiores, e geram sentimentos contrários ao amor, como o ressentimento, o rancor, o ciúme, a inveja, a ira, o ódio, a violência, etc... mas também o autodesprezo, a autocomiseração, a autovitimização. 

O Sagrado Coração de Jesus deseja reparar as nossas feridas relacionais e as nossas feridas interiores. O amor de Deus derramado no nosso coração é maior que a nossa dependência, condicionamento ou sujeição aos outros. O Sagrado Coração de Jesus ajuda-nos a viver na liberdade dos filhos de Deus; faz-me compreender que sou filho, não servo, ou escravo, ou vítima. 

d) A espiritualidade do repouso do coração. 
Diz o Senhor no evangelho ‘tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas’ (Mt11,29). O Sagrado Coração traz-nos paz e repouso.

Desde o livro do Génesis que uma das características de Deus é a de ter entrado no seu repouso: ‘no sétimo dia, Deus repousou de todas as suas obras’. Também no final da Epístola aos Hebreus se fala do repouso de Cristo: ‘Empenhemo-nos, portanto, por entrar nesse repouso’ (Heb 4,11). O salmo mais pequeno da Bíblia, o salmo 131, diz ‘Senhor, não se eleva soberbo o meu coração, nem se levantam altivos os meus olhos, não ambiciono riquezas, nem coisas superiores a mim. Antes fico sossegado e tranquilo como criança ao colo de sua mãe’.

São João da Cruz diz que ‘alma que anda no amor não cansa nem se cansa’. 

Infelizmente, andamos todos pouco repousados, pouco descansados; às vezes, inquietos, perturbados, desiquilibrados, frustrados, angustiados, depressivos. Isto acontece porque não estamos na lógica do coração, na lógica da confiança e da entrega, mas na lógica do medo. Para todos aqueles que não têm descanso, o Coração de Jesus é lugar de tranquilidade, de sossego, de repouso; para todos aqueles que não têm paz, o Sagrado Coração é lugar de descanso.

4. O nosso espaço interior. Um espaço fechado a Deus e um espaço dessacralizado.

Neste processo de interiorização dos sentimentos de Jesus e de conformação da nossa vida à vida de Jesus há uma condição muito importante: precisamos reconhecer que há um espaço interior - o coração - onde se realiza o encontro com Deus

Na Escritura e na Tradição da Igreja, este espaço interior é designado por coração, espírito, alma, morada, templo, santuário. É um espaço hospitaleiro, para o doce hóspede da alma. É uma espécie de centro da alma - fina ponta da alma - um espaço onde ninguém entra, e que está apenas reservado a Deus e que nos revela plenamente. 

Sucede,porém, que este espaço do coração como encontro com Deus está fechado a Deus! Nós cultivamos muito a dimensão corporal (corpo, saúde, alimentação), a dimensão psíquica (emoções, sentimentos, relações, bem estar), a dimensão intelectiva (inteligência, conhecimento, tecnologia). Se trabalhar a dimensão corporal vou colher resultados corporais, se trabalhar aspectos psíquicos vou colher resultados psíquicos, e se for conhecimento vou colher mais conhecimento. Se não trabalhar a dimensão espiritual não vou colher os frutos do Espírito.

Nós trabalhamos pouco a nossa espiritualidade. O Sagrado Coração é remédio para quem trabalho pouco a sua espiritualidade, é cura para quem reza pouco! S. Paulo na Carta aos Romanos (8,8) afirma que o Espírito fala ao nosso espírito, quer dizer, que o Espírito penetra o espírito humano e transforma-o. Nenhuma criatura pode preencher este espaço espiritual a não ser Deus, e, por isso, ele mantém-se vazio, por cultivar, em tantas pessoas.

Note-se que para além de ter-se fechado este espaço interior, ele foi desalojado, dessacralizado ou profanado, pelas ‘câmaras profanas’ da modernidade. No princípio da modernidade, o espaço interior foi visto como um espaço privado, uma intimidade comigo próprio, do eu-mesmo, da consciência, da psicologia, do sentimento. Jean-Louis Chrètien diz que Emanuel Kant desalojou Deus do espaço interior e substituiu-o pela lei moral e pelo imperativo categórico, Rousseau substituiu-o pela subjectividade, Freud pela pulsão. 

O certo é que este espaço interior existe. Pode atualmente chamar-se subjectividade, interioridade, subconsciente ou profundidade. As palavras significam que há muito mais, que não está debaixo de nós, mas acima de nós; significam que há uma geografia interior a percorrer para abrir o templo reservado a Deus e trazê-lo de volta ao espaço que Ele criou para si. O Sagrado Coração de Jesus como sinal de amor por todos os homens, e sobretudo como lugar de transformação, de reparação e de repouso do coração humano, devolve-nos por isso o coração como lugar de encontro do homem com Deus.

Imagem do Cristo Rei de Almada 

Torres Novas, Igreja da Misericórdia, 3-3-2024

   

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

UM LIVRO PARA A QUARESMA DE 2024: A Arte de Curar, de Fabio Rosini

O padre Fabio Rosini é um padre italiano, da diocese de Roma, cujos livros vão sendo traduzidos para português. Depois da A Arte de Recomeçar, de 2021, sobre o discernimento, a partir dos seis dias da criação, surgiu A Arte de Curar, de 2023, 342 p., sobre a cura do amor, a partir do relato da hemorroíssa e da ressurreição da filha de Jairo. Este livro pela sua profunda espiritualidade faz-me lembrar outros quase-clássicos como O Curador Ferido ou O Filho Pródigo, do Henri Nouwen, ou O Elogio da Sede, do Cardeal Tolentino Mendonça. 

Fabio Rosini aborda o medo enquanto sistema que impede, distorce ou diminui o amor. O medo - o medo de não ter importância nenhuma, de não ser reconhecido, de ser rejeitado, de desiludir, de sofrer, de cair na frustração, de perder o controlo, etc… - é a causa de uma série de patologias relacionais. O medo é ‘o golpe que está por detrás da vergonha, da falta de liberdade, do encerramento, das violências, do espírito possessivo, das dependências, dos apetites desordenados, das timidezes, dos autodesprezos, da frieza dos corações, das torturas ardilosas, das agressividades, das inseguranças e das dificuldades afectivas de qualquer tipo’ (p. 73). 

Esta descrição das nossas atitudes é um conjunto de ‘sintomas’ de ‘patologias relacionais’ que não posso negar, nem banalizar, nem sequer contrariar. Fabio Rosini pede que cada um dos nossos sintomas seja enfrentado e questionado com ternura por nós mesmos e ao mesmo tempo com verdade: porque me comporto assim? Com que medo estou em contacto? Só está clareza nos dará lucidez para nos magoarmos menos. ‘Então, não se trata de dar cabo do medo à força, ou, pior ainda, de negá-lo. Que devo fazer, então?’ (p. 83). 

Para o autor, os sintomas revelam uma patologia relacional causada pelo medo, e o próprio medo tem uma origem nas nossas vivências pessoais que ‘autossabotaram’ o nosso sistema operativo. Muitas das circunstâncias da nossa vida criaram dentro de nós uma falsidade, uma mentira, acerca de nós próprios, que foi sendo interiorizada, assumida, a maior parte das vezes de forma inconsciente, e que nos roubou a nossa própria identidade. Rosini é peremptório no que respeita à auto-aceitação da nossa auto-diminuição como pessoas: ‘o espaço destas mentiras é o pensamento triste. Estes pensamentos autodestrutivos ou autoexaltantes têm o contexto mental da melancolia autocomiserações, daquela tristeza adocicada a que se referiu o papa Francisco’ (p. 95). 

Assim, ‘de um modo geral, a tonalidade desse pensamento tem que ver com a má metabolização de um acontecimento passado, lido em sentido triste, doloroso, sem qualquer aspecto construtivo’ (p. 97). Para o autor, um conjunto de vivências introduziram o autodesprezo e a vergonha nós nossos corações. ‘Recapitulemos o percurso feito: temos atitudes erradas que são as nossas patologias afectivas, produzidas pelos nossos medos, e estes são gerados por convicções erradas, que os tornam devastadores. Tudo isto produz dor e então tentamos salvar-nos por estratégias que pioram a situação’ (p. 112). Habitualmente, diz o autor, como a hemorroíssa do evangelho que procurará muitos médicos, nós também procuramos muitos terapeutas para os nossos problemas. 

   (Elvis Spadoni, Emorroissa, 2017)



quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

350 anos do Sagrado Coração

1. As aparições do Sagrado Coração de Jesus 

Neste ano de 2024 celebramos 350 anos das aparições do Sagrado Coração (sobretudo quatro comunicações) a Santa Margarida Maria de Alacoque (1638-1690), ocorridas no Mosteiro da Visitação, em Paray-le-Moniale, entre 27 de dezembro de 1673 e 21 de Junho de 1675.

A primeira aparição ocorreu no dia de S. João, o apóstolo que viu o coração de Jesus a ser trespassado e a jorrar sangue e água. Nesta primeira aparição, o Senhor vai dizer-lhe na capela do mosteiro que ‘foste tu que eu escolhi, por causa da tua fraqueza e da tua ignorância, assim ver-se-á bem que tudo vem de mim’. Nesse mesmo instante, o Senhor tomou o seu Coração e colocou-o no coração de Margarida Maria que sente a união, enquanto ouve ‘doravante dou-te o nome de discípula do meu Sagrado Coração’. 

A segunda aparição em 1974 acontece numa comunicação do Senhor a Margarida Maria durante a adoração do Santíssimo Sacramento. Jesus pede à religiosa para comungar de modo mais frequente, e para comungar na primeira sexta feira de cada mês; depois pede para fazer uma Hora santa em cada quinta feira das 23.00 às 24.00 horas, ‘para acompanhar-Me na humilde oração que fiz então a meu Pai no meio de todas as minhas angústias’. A superiora não lhe permite o cumprimento das petições da parte do Senhor, concedendo-lhe permissão após a cura milagrosa de uma febre grave.

Numa terceira aparição, o Senhor pede a Margarida Maria para dizer à comunidade que o Senhor se queixa da falta de devoção de algumas religiosas. Santa Margarida teve muita dificuldade em fazer este anúncio, e fá-lo no capítulo de comunidade, sentindo imediatamente a indignação, a revolta e a arrogância, das irmãs. Aquela era a maior prova da sua vida. Nesta ocasião, o padre jesuíta Claude de la Colombière aparece na comunidade das visitandinas para ser o confessor das religiosas. O Padre de la Colombière confirma as aparições do Senhor e as graças que Margarida Maria tinha recebido.

A última aparição, a 13 de junho de 1975, acontece na festa do Corpo de Deus. O Senhor aparece e Margarida Maria vê o Senhor que lhe mostra-lhe o seu Coração dizendo ‘Vê o meu Coração que tanto amou os homens, que nada poupou até consumir-se e esgotar-se de amor. E em troca não recebe da maioria outra coisa que ingratidões, por suas irreverências, sacrilégios e desacatos neste sacramento de amor. (…) Por isto te peço que a primeira sexta feira, depois da oitava do Corpus, se célebre uma festa particular para honrar o meu Coração. (…) Prometo-te que o meu Coração derramará uma abundância de bênçãos do seu divino amor’. 

A primeira festa do Sagrado Coração será celebrada uma semana depois, a 21 de junho de 1675, por Margarida Maria e pelo padre de la Colombière que se consagraram pessoalmente ao Sagrado Coração. Santa Margarida Maria continua a sua vida de oração, a sua vida de reparação e as suas grandes penitências, tendo sido chama para Mestra de noviças. A festa será celebrada em todo o mosteiro em 1986. Santa Margarida Maria pinta o primeiro quadro do Sagrado Coração em 1985. Em 1988, começará a ser construída uma Capela em honra do Sagrado Coração. 

Uma nova superiora é eleita em 1690 e duvida das graças recebidas por Margarida Maria, e é tratada com muito desprezo e muitas humilhações. Santa Margarida Maria continua a sua vida de oração, a sua vida de reparação e as suas grandes penitências. Margarida Maria morre em 17 de outubro de 1690.

2. Entrar nos sentimentos de Jesus 

3. Receber a  graça de repouso, de consolação, de poder do Espírito e de misericórdia. 

A união ao Sagrado Coração dá a graça de repouso. O Senhor Jesus disse Vinde a mim todos os que andais cansados e oprimidos que Eu vós aliviarei. Vinde a mim que sou manso e humilde de coração. 




DIOCESE DE SANTARÉM. A caminho dos 50 anos

II. Muito para além de Adap's, precisamos de 'evangelizadores' com 'carta de missão'. Muito para além de 'conselhos pastorais' precisamos de verdadeiras 'equipas de animação missionária'

Um dos maiores desafios de uma Diocese - e de uma Paróquia - será sempre o desafio da evangelização, ou o de tornar-se uma Diocese e uma Paróquia missionárias. Sucede, porém, que a missão da Igreja e a evangelização têm estado muito dependentes da liturgia - e não da palavra - ou seja, têm estado muito dependentes da garantia da missa, dos sacramentos e dos atos de piedade, em todas as localidades. Uma missão evangelizadora que se autolimite nesta dimensão acabará por concentrar-se numa única pessoa - no ministro ordenado - que não conseguirá chegar a todo o lado. É o que tem acontecido num 'paradigma de manutenção de horários de missa'.

Procurei dizer, no artigo anterior, que a valorização do Domingo e o empenho de todos na celebração festiva da Eucaristia não são apenas importantes mas prioritários. Mas há mais missão que nasce de uma missa e também há mais missão que converge para uma missa. Numa Diocese - e nalgumas Paróquias mais ou menos rurais - como são boa parte das nossas - há aldeias, lugares e casais, que podem convergir para a mesma missa sem que isso signifique o abandono das suas igrejas, capelas ou oratórios; da mesma forma, da mesma missa pode advir uma maior missão para esses lugares. Precisaremos, por isso, de evangelizadores, de missionários, nos próprios lugares, ou então enviados para esses lugares. 

O ministério de catequista recentemente reinstaurado pelo papa Francisco pode muito bem ajudar a garantir e a enviar missionários por todo o território, que não o mantenham apenas, mas o 'missionem', o encontrem, o convidem. No que respeita este ponto, noto que em todo o território francês, em 2012, cerca de 9.500 leigos eram portadores de uma "carta de missão" (lettre de mission) escrita pelo bispo diocesano que nomeava certos cristãos para determinadas missões eclesiais. Pode, na verdade, haver mais missão de visita e de convite, num pequeno lugar, feito por um evangelizador que não precisa necessariamente de ser um animador de 'Assembleia dominical na ausência de presbítero'. Há mais missão para além das celebrações da palavra.

É também precisa uma equipa de missionários numa paróquia. Um padre não pode visitar sozinho todas as aldeias e todos os lugares, da mesma forma que não pode preparar sozinho a celebração do Domingo sem uma verdadeira equipa missionária. Às vezes os nossos conselhos pastorais são um belo grupo de preparação de uma festa, de uma procissão ou de uma angariação de fundos, mas não significa que seja um belo grupo missionário. Hoje precisamos muito de uma equipa missionaria que não seja apenas o coletivo das representações dos grupos e dos movimentos paroquiais, mas que seja um grupo que partilhe a mesma urgência missionária, a mesma visão missionária e a mesma convergência dos meios disponíveis.

James Mallon, a este propósito, fala dos quatro pilares de constituição de uma equipa missionária. É preciso Unidade de visão, Equilíbrio de forças, Vulnerabilidade e confiança e Tensão saudável. Quer dizer, é necessário um grupo que tenha o mesmo alinhamento de visão, cujas pessoas estejam no seu carisma próprio, numa autêntica relação de fé, caridade e perdão, e na transparência da sua intenção. No fundo precisamos de equipas compostas por pessoas credíveis, disponíveis, contagiantes e dóceis ('ductíveis'), que compreendam que a Igreja serve para anunciar Cristo.       

I. Empregar 80% do tempo pastoral para encontrar 80% da comunidade dos irmãos. Da clássica regra 20/80 para a regra de ouro 80/80.

A Diocese de Santarém fará, em Julho de 2025, cinquenta anos da sua criação. A celebração do cinquentenário vai coincidir com o tradicional jubileu da Encarnação. Parece-me uma ocasião propícia para a ação de graças, a reflexão, a purificação e a projeção. Seria importante marcarmos a data com uma revisão de vida, mais do que com eventos físicos, ainda que eles sejam necessários. 

Nesta ocasião, e também porque se aproxima uma nova nomeação pastoral, voltei a consultar James Mallon, Renovação Divina, Paulus, 2019. O livro foi publicado em 2014, e foi sendo aprofundado noutro, entretanto traduzido como J. Mallon, Desbloqueia a tua paróquia, Paulus, 2020. Há um outro sobre a renovação da diocese - Beyond the parish, de 2019 (Au-delà de la paroisse, de 2022) - que ainda não está traduzido em português. 

No primeiro livro, Renovação Divina, J. Mallon aponta 10 prioridades para a renovação de uma paróquia (p. 270-271). As primeiras quatro são:

1. Dar prioridade ao fim de semana 

2. Hospitalidade

3. Música edificante 

4. Homilias fabulosas 

(…)

As dez prioridades contrapõem-se aos sete valores reais por que se pautam as nossas actuais paróquias: 

1. Preservação dos edifício 

2. Catequese centrada nas crianças 

3. Conveniência de horários 

4. Expectativas mínimas 

(…)

Sucede que as quatro primeiras prioridades estão centradas à volta do fim de semana (p. 95-101). O fim de semana - aponta o conhecido autor - é o único momento em que vemos 80% das pessoas da comunidade e, apesar disso, investimos apenas 20% do tempo pastoral a planear e a preparar esse encontro. 

Na verdade, é fácil gastar 80% da semana em assuntos que não têm que ver com o fim de semana, tais como cartório, administração, reuniões, grupos, exéquias, etc. Planeamos e preparamos a semana como se nela acontecessem as coisas verdadeiramente importantes, e descuramos o fim de semana como se ele fosse ‘um acréscimo, um leve interromper do trabalho real, que decorre de segunda a sexta’ (p. 96). 

Não há dúvida de que a prioridade de qualquer paróquia e de qualquer sacerdote deveria ser o fim de semana, a celebração da eucaristia e o encontro da grande comunidade. É preciso ultrapassar a ‘clássica regra dos 80/20’ como diz Mallon, para uma outra regra de ouro 80/80: 80% do tempo semanal para planear e preparar o encontro com 80% da minha comunidade, em vez dos habituais 20% empregados para encontrar 80% da nossa comunidade. 

Na verdade, é fácil verificar como descuramos o domingo. Basta ver as celebrações seguidas umas das outras, sem tempo de qualidade para desenvolver relações e realizar convites, para encontrar ou juntar as pessoas; sem um ministério de música que motive e faça sentido, sem acólitos, sem famílias, etc. Assim, de repente, não podemos celebrar mais de duas eucaristias no domingo de manhã, às 10.30 e às 12.00 (uma outra às 16.00). Deveríamos arrumar assim o domingo para estarmos uns com os outros com comunhão e alegria.