1. A alma, princípio de vida
A alma é o primeiro princípio da
vida, da grande abertura e da imensa expansão, como vamos ver a partir de S.
Tomás de Aquino, da sua Suma Teológica, Parte I, Questões 75-76. Trata-se de
uma perspetiva inédita, ao tempo, e que se mantém válida para a Igreja, e também para
nós que tantas vezes mantemos uma visão dualista da
alma e do corpo. Parece-me que as duas grandes ideias de S. Tomás são de
afirmar a unidade da pessoa, realizada a partir de um único princípio racional
ordenador; e de afirmar que esse princípio racional é expansivo e universal de tal ordem que tem de ser um princípio subsistente
e incorrutível. De facto, o ser humano tende a procurar realidades incorruptíveis que são o seu termo último.
a) A alma é um princípio
racional, criado por Deus, que operacionaliza e ativa todas as possibilidades
do corpo humano, e as organiza e desenvolve em diferentes estágios. S. Tomás,
na I, Q.75, trata da alma humana como o primeiro princípio da vida (a.1), o
primeiro princípio das operações intelectuais de um ser vivente (a.2), o ato
primeiro – a operação -, de um corpo orgânico, e a forma – a orientação -, de todo um corpo vivente (a.5). Quando Tomás de Aquino diz que a alma é um primeiro princípio
racional, intelectual e espiritual, não está a falar daquilo que hoje
entendemos como inteligência, mente ou consciência. O Aquinate procura ir ao primeiro momento da nossa existência para literalmente tratar da alma como um
princípio lógico organizador do crescimento e do desenvolvimento do
corpo vivente, como se fosse um princípio padrão ordenador de todas as
faculdades humanas. Reflete dessa forma que a alma é o princípio da vida que
no primeiro ato gera à matéria, e que, portanto, é o princípio vital
simultâneo à matéria corpórea, e que não precede a matéria como também não a procede (Q.76,a.3). Quer dizer que a alma como ato e forma do corpo
– como operação e intencionalidade do corpo -, gera a matéria de forma
simultânea (Q.76,a.6).
S. Tomás não aceita, de modo
algum, o princípio de que a alma seja uma substância independente dentro de um
corpo recetáculo. Por outras palavras, Tomás de Aquino não aceita a teoria dos
filósofos platónicos de que existem dois
princípios autónomos e separados na nossa pessoa, um que é material e corpóreo,
e outro que é intelectivo e racional. Tomás de Aquino sustenta insistentemente a
existência de um único princípio de vida que é a alma como a forma do corpo – o princípio da vida tal como ela é com intencionalidade, sincronia e coerência num corpo a desenvolver-se. Enquanto
os filósofos platónicos pensavam a alma racional como uma substância preexistente
que caíra num corpo recetáculo, Tomás rejeita categoricamente essa visão e
assume a visão de Aristóteles, alterando-a, mas declarando ser a alma o princípio primeiro das operações de um ser vivente.
No seguimento de Aristóteles, S. Tomás
de Aquino aplica o hilemorfismo. O hilemorfismo é a ideia de unidade compósita
entre forma e matéria, ativada na dinâmica da potência a ato. Como vimos em cima, Platão pensava dois princípios e duas substâncias completamente
separadas e independentes, que tinham de ser ligadas por um órgão corporal; desta
forma, o dualismo platónico aceitava dois princípios diferentes na mesma
realidade humana. Ao contrário, Aristóteles pensa a realidade humana segundo o
hilemorfismo que é a visão de que todas as realidades são unidades compósitas
de forma e de matéria, de uma forma que informa a matéria. Assim, por exemplo, a forma de uma planta é o seu
princípio vital que põe em dinamismo todo o ciclo da planta em ordem à
realização da sua finalidade última que é ser planta; a forma dos “brutos” (os animais) é o
princípio vital, sensorial e psíquico que mete em movimento o ciclo do animal até à
realização da sua finalidade última; a forma de uma pessoa é o princípio vital e racional, que dinamiza as operações da sua existência em ordem ao seu bem
último que é Deus. Curiosamente, os anjos também têm um princípio espiritual que é intelecto capaz de conhecer todas as coisas - com exceção da visão da essência de
Deus, que terão de receber por graça -, e cuja dileção natural (vontade) pode chegar à plenitude de amar a Deus.
b) Por fim, vejamos como a alma é
um princípio expansivo no corpo vivente. A alma humana é o princípio vital, intelectual e
racional, que está no princípio do processo humano – como princípio da nossa encarnação
-, e, como tal, é um princípio imensamente aberto e expansivo, a ponto de nos
tornar capazes de abertura, amizade, família, socialização, abstração, transcendência,
Deus. Quer dizer, que a alma como princípio de vida traz em si uma finalidade
inerente, intrínseca, que vai progredindo ao longo da vida, a fim de conhecer e
amar mais realidades e todas as realidades possíveis. Essa totalidade última,
ou finalidade última do homem, é Deus.
E é por essa razão - porque traz em si, de forma intrínseca, a intenção de uma finalidade última que a alma ativa todo o corpo vivo; e por ser um princípio imensamente aberto e expansivo é um também um princípio subsistente e incorpóreo (cf. Q.89). Com princípio subsistente e incorpóreo, S. Tomás de Aquino não quer dizer um princípio autónomo e independente do corpo; mas quer dizer um princípio que pensa e deseja para além do corpo e das realidades sensíveis; e que, depois da morte corporal, permanece subsistente e incorpóreo, por poder continuar a inteligir e a desejar as realidades inteligíveis e incorpóreas. A posição de S. Tomás é muito válida, até pela razão de que assim como Deus nos mantém no ser e na existência durante esta vida corpórea, também manterá o ser na vida da alma incorpórea, a partir do conhecimento e do amor que a alma tem dEle próprio. Por outras palavras, as almas dos “brutos” (os animais) são sensitivas e psíquicas; orientam-se para fins sensíveis e corpóreos; realizam-se plenamente na satisfação dos bens sensíveis e corpóreos; e morrem com a morte do corpo porque não têm em vista mais nada do que o sensível. Os homens, pelo contrário, não se realizam plenamente com a satisfação de bens sensíveis e corpóreos. De forma muito diferente, orientam-se para a última intelecção e a última volição que é Deus. O homem tem por finalidade ver a essência de Deus tal qual é. O Génesis, diz S. Tomás, sublinha esta diferença fundamental entre os homens e os animais, ao referir que “Deus inspirou no homem um sopro de vida”, e acerca dos animais disse “produza a terra animais viventes”. O homem vem de Deus e os animais vêm da terra.
2. A alma humana como princípio de vida, de abertura e de expansão, pode ser distinguida nas muitas operações e faculdades. S. Tomás de Aquino, como Aristóteles, distinguia, depois dos seres inanimados, os seres viventes plantas, animais, homens e anjos, com quatro almas diferentes, vegetal, animal, racional e espiritual (cf. I parte, Questão 77-82).
As plantas têm uma alma vegetal, quer dizer que têm um princípio organizador de vida que as leva a realizar a sua finalidade própria que é serem plantas. Tomás distingue nas plantas três faculdades: a nutrição, o crescimento e a reprodução, que são três operações que compreendemos facilmente.
De seguida, Tomás distingue a alma animal com as três faculdades: a cognição sensitiva (com os cinco sentidos exteriores, juntamente com os quatro sentidos interiores, do senso comum, da memória, da estimativa e da imaginação), o sentido do apetite (com a potência concupiscível – sede do amor, do desejo e do prazer, e dos seus contrários, o pesar, ao aversão e o ódio –, e a potência irascível – sede da esperança e da ousadia, e dos seus contrários, a ira, o medo e o desespero) e o sentido da locomoção, que é o sentido do mexer-se, articular-se e mover-se!
Depois, Tomás
distingue na alma humana a faculdade do intelecto (sede da inteligibilidade) e
a faculdade da vontade (sede da liberdade). O intelecto e a vontade são
faculdades muito complexas na sua operação, porque têm uma relação recíproca - agem
e reagem, uma sobre a outra, num movimento sem fim, de modo que a primeira
verdade imediatamente apreendida pelo intelecto, é apresentada à vontade e
simultaneamente desejada, de modo que ao primeiro desejo corresponderá uma
segunda apreensão do intelecto, e assim sucessivamente.
A tabela ajuda-nos a compreender
as faculdades da alma humana que funciona na interação de todos estes
elementos; não pode haver nenhum elemento anterior que fique para trás, para
que não se produzam operações imperfeitas (a exceção é feita aos anjos por
serem de natureza espiritual). Assim, como os animais interagem com as
faculdades mais básicas da nutrição, crescimento e reprodução, assim o homem
interage com todas as outras faculdades antecedentes. Ser homem é realizar
perfeitamente todas as faculdades inerentes à natureza humana em ordem ao fim
último que é Deus.
"Alma" espiritual |
Intelecto |
Dileção |
|
Alma racional |
Intelecto |
Vontade |
|
Alma sensorial |
Sentido sensorial 5 sentidos externos 4 sentidos internos (senso comum, memória, estimativa e
imaginação) |
Sentido do Apetite Potência concupiscível (amor, desejo, prazer, pesar, aversão, ódio) Potênciai |
Locomoção |
Alma vegetal |
Nutrição |
Crescimento |
Reprodução |
O princípio vital e racional da alma realiza o seu dinamismo inerente a partir da interação de todas aquelas dimensões que vimos em cima, por meio de atos, hábitos, virtudes e graças, até ao bem maior que é Deus. É na interligação de todas as nossas faculdades, sem diminuição de umas e excesso de outras que avançamos para o bem maior que é a felicidade. Nesse sentido, os atos humanos são a atividade do homem que o transcendem no seguimento do fim. É claro que para o alcançarmos o fim último precisamos de buscar fins pequenos, de dar pequenos passos. De modo particular, realiza-o a partir dos atos humanos que são a atividade por meio da qual buscamos o bem maior.
O princípio dinâmico da formação do
ato humano foi muito detalhado por S. Tomás de Aquino, nas Questões 6 a 22 da
I-II parte da Suma Teológica. O ato humano acontece nos seres compósitos, nas
realidades compostas de forma e de matéria, como vimos anteriormente, e
procedem do intelecto e da vontade, para um bem maior. O intelecto e a vontade
são conjuntamente a sede do ato humano; o primeiro ato do intelecto é o de conhecer
e o primeiro ato da vontade é o de amar. Os atos humanos são atos voluntários e
livres, diferentemente dos atos dos animais que não procedem do intelecto e da
vontade mas dos sentidos e dos apetites, portanto, do instinto.
O dinamismo do ato humano é também muito complexo por ser um processo de interação e diálogo entre as várias dimensões do intelecto e da vontade. De acordo com o quadro que apresentamos, podemos dizer que o ato humano é composto de três grandes partes: a intenção, a volição e a fruição. Vejamos, em primeiro lugar, como o intelecto move a vontade, e não o contrário. De facto, assim como o conhecimento de uma determinada cidade move a vontade de conhecê-la, assim o conhecimento de um objeto move a vontade de possuí-lo. Assim, não existe um ato da vontade que não seja precedido por um ato do intelecto (mas pode existir um sentido de apetite que não seja moderado pela vontade, como vimos em cima).
|
INTELECTO |
VONTADE |
|
FASE AFECTIVA |
1.Primeira apreensão do objeto |
2. Volição; Primeiro querer do objeto |
FIM |
|
3. Julgamento da verdade do objeto |
4. Intenção de alcançar o objeto |
|
|
5. Conselho sobre circunstâncias, limites e comparações do objeto |
6. Consentimento; aceitação do objeto |
|
|
7. Julgamento prático; Decisão sobre os meios para alcançar o fim |
8. Eleição de um meio para alcançar o fim |
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FASE EFECTIVA |
9. Imperium; Comando |
10 Uso voluntário |
|
|
11. Execução |
12. Fruição |
|
A partir do quadro, compreendemos
também que a formação do ato humano é para S. Tomás complexa, e exige sempre a
participação das duas faculdades racionais, o intelecto e a vontade. É do
exercício das duas faculdades que resulta o livre arbítrio.
A partir do quadro, percebemos em
primeiro lugar que o primeiro ato se forma a partir da primeira apreensão e conclui-se
na fruição do seu primeiro fim; a esse processo de formação do primeiro ato
segue o processo de formação do segundo e assim sucessivamente.
De modo particular, percebemos no
quadro que a cada primeira operação de apreensão imediata corresponde simultaneamente
um primeiro ato de volição (que curiosamente não pode negar a evidência proposta
anteriormente, mas apenas aderir ou contradizer); da primeira apreensão do
intelecto e da primeira volição, aproximamo-nos para fazer o julgamento, a
verificação, da verdade desse primeiro objeto e à formulação de uma intenção de
querer, etc.
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