terça-feira, 9 de janeiro de 2024

III. A distinção entre Graça santificante e Carácter

Resumo: A graça santificante opera a remissão, a santificação e a participação das pessoas divinas na alma humana. Se por um lado o Espírito toma a iniciativa de comunicar-se na graça, por outro, Cristo toma também a iniciativa de conformar a si a alma humana. Parece-me possível distinguir graça e carácter desta maneira.

1. No texto sobre A Graça e as missões invisíveis do Espírito e do Verbo procurámos mostrar como o movimento da graça é um movimento de reciprocidade entre o Espírito e o Verbo que agem na vontade e na inteligência humanas. Trata-se de um movimento circular cuja ação de uma pessoa divina empenha a outra e assim 'sucessivamente'. Esse movimento de reciprocidade na alma humana - a que S. Tomás chama de 'regiratio' - é replicado do movimento do cogito e do assentimento. Existe por conseguinte um movimento de reciprocidade - de regiratio - entre o intelecto e a vontade. Na verdade, o cogito não procura e não indaga sozinho; o cogito é uma inquietação da potência intelectiva, que procura assentindo, consentido. Não se conhece sem também não se querer conhecer. Não há razão sem vontade, nem verdade sem bondade. È nesta circularidade humana que entram as pessoas divinas, a do Espírito que chama o Verbo, e a do Verbo que volta a mandar o Espírito.

Na teologia católica - no seguimento de S. Tomás que afirma “o efeito principal dos sacramentos é a graça santificante e o efeito secundário é o carácter” - alguns sacramentos produzem a graça e o carácter. Entendemos como a graça santificante - o movimento de remissão, santificação e participação - e o carácter entendemo-lo como o desenvolvimento da noção de participação (diria até como matiz ou subtileza da noção de participação). Vimos no texto acima identificado que a participação significa tomar parte da natureza divina; que a essa participação pode também chamar-se de semelhança sobrenatural, de representação sobrenatural, por indicarem a presença das pessoas divinas na alma humana. No fundo, no batismo, recebemos o Espírito Santo que nos une a Jesus Cristo, e, por meio da presença das divinas pessoas na alma humana, participamos da divindade do Espírito e da divindade do Verbo. 

Se, por um lado, o Espírito toma a iniciativa de nos santificar, por outro, o Cristo toma a iniciativa de nos conformar. Parece-me que podemos desta forma distinguir a noção de graça santificante e a noção de carácter. Por uma opera-se a a remissão, a santificação e a participação, por outra opera-se a conformação. De facto, neste entendimento, podemos dizer que há um processo ativo de impressão, de conformação, ou configuração, realizados pela iniciativa de Cristo.  Neste entendimento, podemos ainda dizer que o carácter é uma comunicação do próprio Cristo, e uma configuração a uma das dimensões de Cristo, especificamente dadas nalguns sacramentos - o batismo, o crisma e a ordem. Pelo batismo, somos configurados a Cristo, profeta, sacerdote e rei; pelo crisma, a Cristo, que é doador de Espírito; pela ordem, a Cristo pastor (ou a Cristo servo, no caso do grau do diaconado). 

(Note-se que este entendimento é um entendimento particular. Enquanto no meu entendimento o carácter se liga à configuração, à conformação, vejo alguma dificuldade nalguns autores, por exemplo, Guilhaume de Menthière, que afirma “o carácter é res et sacramentum no batismo: sacramentum tantum (a ablução da água); res et sacramentum (o caracter); res tantum (a graça do Espírito Santo).” (Le penchant de la grâce, Artège, Paris, 2023, p. 210).

2. O Selo –sphragis - em S. Paulo

S. Paulo utiliza a palavra selo – sphragis, sigillum – algumas vezes. Por exemplo, em 2Cor 1,21-22: É Deus quem nos confirma convosco em Cristo, e quem nos ungiu, Ele que assim nos marcou com um selo e depositou nos nossos corações o penhor do Espírito. Em Ef 1,13-14: Foi também nele que vós escutastes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação. E foi também nele que, ao acreditardes, fostes marcados com o selo do Espírito Santo prometido.

“Em S. Paulo, a marca do selo relaciona-se à iniciação cristã em geral, englobando com o nome de batismo aquilo que hoje entendemos por batismo e confirmação”[1]. A marca do selo, a impressão do selo, é símbolo de aquisição, de distinção e de proteção. Para S. Paulo, não é propriamente um efeito do batismo tal como o entendemos hoje, mas antes um sinal de santificação para esta vida e para a vida futura. S. Paulo não distingue o selo da graça ainda que faça a distinção entre os “santos” e os que são culpados de pecados graves (I Cor 1,2; 2,17). Esta distinção pressupõe uma santidade objetiva do carácter e uma santidade subjetiva da graça[2]. Podemos dizer que a noção de selo, de impressão, ou de carácter, está presente nos escritos do Novo Testamento e nos Padres da Igreja mas existe uma dificuldade em distinguir graça e carácter, e em perceber qual é a sua natureza.

Na primeira escolástica, a dificuldade em compreender a natureza do carácter torna-se argumento de debate: é uma relação, é uma graça ou é apenas uma figura? É uma qualidade, uma disposição ou uma potência? É uma primeira graça do sacramento ou é um efeito do sacramento? Uma vez que a primeira escolástica define a graça como ação do Espírito Santo na obra da justificação interior, torna-se difícil integrar a noção de caracter como qualquer coisa de distinto da graça. Desta forma, no princípio, “o carácter situa-se como uma realidade intermédia entre o rito e a graça sacramental, entre o “sacramento” e a “coisa do sacramento”[3]. Essa perspetiva do carácter como “prelúdio da graça”[4] é figurada, por exemplo, na ideia do primeiro S. Tomás de Aquino ao afirmar que a impressão da cruz na fronte dos catecúmenos os prepara para receber graças maiores e cultuar a Deus.

Mais tarde, e no seguimento de outros autores, S. Tomás abrirá uma outra via ao carácter, qual efeito secundário dos sacramentos – a da configuração ao sacerdócio de Cristo – “pela qual se o separa do domínio da graça”[5]. Tomás mostrará que à santificação procede o culto e que “a santificação e o culto estão unidos, e eles constituem o movimento relacional para Deus (…). O benefício para a sacramentalidade é incomparável: os sacramentos que dão aos homens a santificação do Christus passus são ao mesmo tempo acções cultuais do homem participante à cultualidade radical do Christus sacerdos”[6].

Os autores da primeira escolástica procuram uma classificação para o caracter: hábito, disposição, potência ou figura? Enquanto S. Alberto e S. Boaventura desenvolvem o carácter a partir do hábito e da disposição, S. Tomás desenvolverá a partir da potência espiritual na inteligência humana. Mas os três doutores da Igreja vão chegar à conclusão de que o carácter é a configuração a Cristo. Cristo é o carácter do Pai (Heb), o “caracter incriado” (expressão de Alexandre de Hales[7]), que é impresso na alma, pelos três sacramentos do batismo, da confirmação e da ordem.

3. S. Alberto e S. Boaventura[8]: hábito, disposição e configuração. As três configurações.

S. Alberto Magno começa por pensar que o carácter não é uma qualidade mas uma relação, como a paternidade[9]. No seguimento de outros autores, compara o carácter na alma à consagração das igrejas: assim como a consagração das basílicas ordena as igrejas à celebração do culto divino, assim o carácter na alma ordena a alma à habitação divina. Mais tarde, abandona a ideia do carácter como relação para o pensar, como S. Boaventura, como hábito, como qualidade, como uma disposição, para receber a luz da graça. Para os seguidores de Boaventura, o carácter poderia ser uma espécie de qualidade infusa- uma graça - paralela às outras qualidades infusas, e às outras qualidades adquiridas. S. Alberto e S. Boaventura concluem que se trata de uma primeira qualidade, de um hábito infuso, que é permanente, e que tem qualquer coisa de dispositivo, porquanto dispõe e não aperfeiçoa. Neste sentido, para S. Alberto, trata-se de um hábito habilitante[10], de um “sinal demonstrativo e causativo de graça”, de uma “gratia gratis data” (por diferença à gratia gratum faciens própria dos efeitos dos sacramentos), da habilitação à graça. Também para S. Boaventura, trata-se de um sinal sacramental que “significa” e “prepara” para a graça e “configura” a Deus (por ser uma semelhança divina) e “distingue”. Trata-se da graça impressa na alma que imprime uma semelhança divina e que dispõe a receber mais graça. Sendo uma semelhança divina, o caracter assimila ou configura a alma a Deus. No entanto, para estes dois autores o grau de semelhança é distinto entre carácter e graça. Na verdade, a assimilação da criatura a Deus comporta três degraus: para S. Boaventura, esses três degraus são a assimilação perfeita da glória, a assimilação suficiente da graça, e a assimilação que dispõe à graça, e que é compatível com o estado de dissemelhança; para S. Alberto, a assimilação pode ser por completa indivisão, por participação ou por imitação. Para S. Boaventura, a terceira assimilação eu dispõe à graça é aquela que produz o carácter, da mesma forma que para S. Alberto, a assimilação por imitação é a semelhança que produz carácter. Estamos, portanto, no campo de uma graça intermédia que dispõe à graça.

Essa graça dispositiva está ordenada a Cristo e a configurar-se a Cristo. Para ambos os autores, S. Alberto e S. Boaventura, o caracter dispõe à configuração ao Filho. Para S. Boaventura, o sacramento configura a um dos ministérios do Filho: ao Filho morrente e redentor (batismo), ao Filho sofrente e combatente (confirmação), ao Filho atuante como ministro (ordem). Para S. Alberto, as três configurações a Cristo têm que ver com os três estados da fé e de ligação a Cristo: os iniciantes, os progressivos e os perfeitos. Ainda que seja uma proposta muito artificial - da configuração a Cristo que dá a fé, a Cristo que a robustece, e a Cristo que exerce um ministério – podemos concluir que, tanto para Boaventura como para Alberto, “é na pessoa e na obra do Filho de Deus que se funda a natureza dos três caracteres sacramentais”[11].

Concluímos que o carácter é uma disposição à configuração; não é a própria configuração. Precede a graça santificante, como uma espécie de primeiro efeito, ao passo que em S. Tomás é um efeito secundário e último do sacramento.

4. S. Tomás de Aquino: configuração ao sacerdócio de Cristo e deputação para o culto divino.

Para S. Tomás de Aquino o carácter não é um hábito nem uma disposição, mas uma potência instrumental[12], que dá determinado poder espiritual, análogo às potências naturais. Numa primeira fase, S. Tomás, referindo-se a Dionísio, afirma que os candidatos ao batismo são assinalados com uma cruz, e, essa cruz, é uma potência para poder participar às operações divinas, à administração e à receção dos sacramentos[13]. S. Tomás segue outros autores que situam o carácter entre o rito sacramental e a res do sacramento (Guilhaume d’Auxerre, Alexandre de Hales, Alberto Magno, Boaventura). No entanto, mas tarde, Tomás de Aquino, entende o carácter como o efeito secundário dos sacramentos: ele é a condição de possibilidade da cultualidade. O Dotor angélico compreende que a santificação é acompanhada simultaneamente pelo culto. Assim como a santificação de Cristo na cruz foi acompanhada simultaneamente de um ato cultual a Deus se Pai[14], assim a santificação do crente é acompanhada de um ato de culto ao Pai por meio do sacerdócio de Cristo. Os homens tornaram-se recetáculo da graça santificante para poderem ser sujeitos de acção cultual. Esta perspetiva pode ter nascido da leitura da carta aos Hebreus ou da própria noção do carácter ministerial dos sacerdotes que tem Cristo sacerdote como referência. Nesta leitura, o ministro sagrado foi configurado ao sacerdócio do Cristo para ser revestido de um caracter, de um poder espiritual, por meio do qual possa oferecer o sacrifício de Cristo. Assim também os fiéis são santificados de modo a serem habilitados com uma potência espiritual para o culto de Deus. Enquanto potência espiritual, o carácter é conferido por três sacramentos que operam a consagração, a destinação de uma pessoa a uma função espiritual; os restantes sacramentos operam a santificação por meio da purificação, como por exemplo a penitência.

Tomás não dirá claramente que o carácter seja uma graça dispositiva para receber maior graça; prefere distinguir a graça do carácter e dizer que o carácter é uma potência espiritual, um poder de participar nos sacramentos[15], uma configuração a Cristo para o culto divino[16]. Tomás de Aquino estende a configuração do sacerdócio de Cristo a todos os fiéis: assim como Cristo se oferece continuamente ao Pai, assim os fiéis se oferecem continuamente ao Pai por meio de Cristo. Tomás de Aquino desenvolve a tripla perspetiva do carácter como tripla configuração a Cristo: a configuração a Cristo como filhos por meio do batismo, a configuração a Cristo como soldados por meio da confirmação, a configuração ao sacerdócio de Cristo por meio da ordem. O carácter para S. Tomás de Aquino não se encontra na essência da alma mas na faculdade da inteligência onde se encontra a Imagem[17]. Por causa desta configuração a Cristo, o caracter do sujeito é incorruptível e imutável; a alma recebe uma participação a Cristo que é causa exemplar, instrumental e final.

Note-se forma muito particular que S. Tomás de Aquino além de associar o carácter ao culto que procede da santificação, ao efeito segundo da configuração ao sacerdócio de Cristo no sacramento, indica que o carácter é uma participação em Cristo. Na verdade, se os sacramentos produzem na alma humana uma participata similitudo divinae naturae, o sinal que trazemos em nós – signaculum etiam non sit sensible - é uma impressão do próprio Deus. “Tomás sabe que tratar da noção de sinal comporta uma precisão necessária, porque a definição augustiniana utilizada para sacramento não pode ser estendida ao carácter sem o recurso à similitudo”[18]. A dificuldade de S. tomás foi relacionar a graça e o carácter. S. Tomás de Aquino não relaciona a graça e o carácter, da mesma forma que não relaciona o Espírito e Cristo; é por essa razão que prefere guardar para o Espírito a obra da justificação e para Cristo a configuração/participação. Ainda que as Escrituras dizem, como Paulo, que os cristãos foram marcados pelo Espírito Santo, S. Tomás afirma que o carácter vem de Cristo.

 

Q.63,a1

São destinados aos atos convenientes à Igreja presente por um certo sinal espiritual que lhes é impresso e que se chama caráter.

Também pode chamar-se caráter ou sinal, por uma certa semelhança, tudo o que torna um ser semelhante a outro (…). Assim Cristo é chamado figura ou caráter da substância paterna, pelo Apóstolo.

A.2

Os sacramentos da lei nova imprimem caráter, porque por eles se destinam os homens ao culto de Deus segun­do o rito da religião cristã.

O caráter implica uma certa po­tência espiritual ordenada às cousas do culto divino. - Mas, devemos saber que essa potência espiritual é instrumental

A.3

Ora, o caráter eterno é Cristo mesmo, segundo aquilo do Apóstolo: O qual, sendo o resplendor da glória e a figura, ou o caráter, da sua substância. Logo, parece que o caráter se deve propriamente atribuir a Cristo.

or onde, é manifesto que o caráter sacramental e especialmente o caráter de Cristo, a cujo sacerdócio se assemelham os fiéis pelos caracteres sacramentais, que outra causa não são senão umas participações do sacerdório de Cristo, derivadas do próprio Cristo.

 

 



[1] J. Galot, La nature du caractère sacramentel, Desclée de Brouwer, Bruxelles, 1956, p. 25

[2] Galot, p. 27.

[3] Galot, p. 225.

[4] Galot, p. 229.

[5] Galot, p.229.

[6] Mauro Turrini, L’anthropologie sacramentelle de S. Thomas d’Aquin dans ST, III, q. 60-65, Paris, 1996, p. 446.

[7] Galot, p. 228.

[8] Galot, p. 146-170.

[9] Galot,p.147.

[10] Galot, p. 154.

[11] Galot, p. 171.

[12] Galot, p. 174.

[13] Galot, p. 175.

[14] Turrini, p. 449.

[15] Galot, p. 186.

[16] Galot, p. 184.

[17] Galot, p. 190.

[18] Turrini, p. 457.

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