1. Renè-Jacques, aluno do ISPC, em Paris, em 1975, de uma forma muito prática reuniu um conjunto de jovens – uma equipa de trabalho -, que tentasse responder à pergunta “há uma nova maneira de falar de ‘graça’ aos nossos contemporâneos? É preciso continuar a falar-lhes a partir de uma síntese teológica da graça, da definição, da natureza e dos seus efeitos?” O trabalho de “teologia prática” deu origem à tese de mestrado La grace de Dieu et son actualitè pastorale[1], em 1975.
No seu todo, a tese é como
todas as teses, muito imperfeita e muito datada, contém certas descontinuidades
da Tradição que me parecem próprias das circunstâncias, tais como aquela de
preferir a nova linguagem à linguagem tradicional. No entanto, a proposta como
aplicação da ‘teologia prática’, como provocação da experiência espiritual dos
membros e a procura de verbalização e de sistematização, no quadro do tratado
da graça tem muito valor. O grande valor é a tentativa de sincronização da
teologia sistemática com a teologia prática!
O autor segue a ordem de
perguntas sobre a natureza da graça, as distinções da graça e os efeitos da
graça[2] que a equipa de trabalho
possa identificar. O tratado tradicional da graça pode desenvolver-se a partir desses três argumentos numa linguagem muito classificada, mas pouco percetível. Nós vamos seguir a ordem da conversação para ver até que ponto os jovens conseguem compreender e 'classificar' a graça.
2. O grupo começou por
tentar definir a natureza da ‘graça’ e chegou às asserções comuns. Todos
reconheceram que:
a) a ‘graça’ é o amor de
Deus revelado em Jesus Cristo; a ‘graça’ é o dom que Deus faz no seu Filho; a
‘graça’ é uma iniciativa e uma comunicação de Deus;
b) a ‘graça’ é o amor de
Deus derramado nos corações, o dom sobrenatural dado pelo Espírito santo, no
Batismo; é o dom que torna filhos de Deus, quer dizer, que permite entrar em
relação com Deus, e participar da sua vida divina;
c) a ‘graça’ é o dom
sobrenatural que posso aceitar livremente ou rejeitar livremente; (neste ponto,
refere o autor, começaram a surgir muitas dúvidas tais como se a graça é
‘apenas proposta’ ou é ‘mesmo dada’ aos homens, ou se a resposta é ‘apenas um
reconhecimento exterior e consequente a adesão externa’; alguns pensam na
‘graça’ como uma energia humana, uma profundidade humana, que deve vir ao de
cima como espiritualidade);
d) a graça pode ser distinta
nos seus diversos efeitos; que há a “graça” de Deus no dom de Jesus Cristo, e
as “graças” por meio das quais entramos na relação com Deus.
3. O grupo procurou, de
seguida, responder à pergunta sobre os efeitos da graça nas suas vidas. Os
efeitos da graça são:
a) os frutos da vida cristã
na vida de cada qual;
b) os sinais do amor de Deus
manifestos na vida de cada qual;
c) a coerência interna de
intenções, pensamentos, palavras e ações;
d) a maior integração e a
maior participação na vida da Igreja;
e) a capacidade de levar o
amor de Deus aos homens que Ele ama e quer salvar.
O autor conclui: “chegamos a
um semi-sucesso. Nós utilizamos palavras que não traduzem corretamente àquilo
que é o nosso pensamento sobre a graça, palavras que sublinham as nossas
divisões conceptuais e que nos impedem de comunicar plenamente (…) Parecia que
as palavras da nossa linguagem eram um obstáculo à expressão desta realidade
vivificante da graça de Deus”.[3] Parece ter havido uma
enorme dificuldade para encontrar palavras e um discurso fluente que pudesse
descrever a experiência da graça e as suas convicções profundas.
O autor, curiosamente, nota
que as distinções entre ‘graça actual’ e ‘graça habitual’ não colheram
compreensão, mas percebeu que há necessidade de utilizar uma linguagem que
possa minimamente verbalizar uma experiência e que possa ser universalmente
compreendida.
Os comentários dos jovens
salientam essa necessidade da seguinte forma: “’Fazemos a experiência da
diversidade de opiniões e de expressões concernantes à graça, mas chegaremos
alguma vez a um discurso ‘totalizante’ sobre o essencial da nossa fé que é a
graça de Deus?’ Que resposta dar?”[4] E ainda: “Como nós não
encontramos hoje palavras que traduzam a nossa experiência, sentimos a
necessidade de utilizar as palavras antigas”[5].
O autor perguntou, por fim,
qual seria a linguagem a adotar: se uma linguagem mais ontológica, sistemática,
teórica e dedutiva, ou uma linguagem mais bíblica, existencial, concreta e indutiva. O grupo mostrou-se reticente a
uma linguagem sistematizada, preferindo a adaptação da vida: “ a vida exprime
melhor as realidades da graça do que o saber por mais perfeito que ele seja”[6]; o grupo prefere “ a
linguagem do testemunho”[7].
II
O autor sente a necessidade
de procurar nos documentos da Igreja uma nova linguagem sobre a graça, e
recolhe no texto da Gaudium et Spes[8] elementos que sugiram a
origem da graça, as distinções da graça, o sujeito da graça.
Assim, genericamente e a título de exemplo,
desenho um esquema da sua reflexão.
1. A origem da graça
a) Deus é criador, autor e
fim de todas as coisas; Deus é a fonte de todos os dons (GS 20);
b) Deus enviou o seu Filho
que restaura a semelhança divina alterada pelo pecado (GS 22);
c) Jesus enviou o Seu
Espírito que numa providência admirável, conduz o curso dos tempos, renova a
face da terra, e permanece presente nesta evolução (GS 26);
2. O sujeito da graça
a) Deus vem comunicar-se ao
homem, que tem uma alma espiritual e imortal onde habita um gérmen de
eternidade (GS 18);
b) O homem fazendo uso da
sua semelhança com Deus faz uso da sua liberdade, obedecendo à lei da
consciência (GS 16);
c) A partir da inteligência
humana, o homem pode chegar a penetrar os segredos do mundo, a desenvolver as
técnicas e a sondar os mistérios do seu criador (GS 33);
3. Os efeitos da graça
a) A graça de Deus transforma
o homem, purificando-o do pecado, reconciliando-o com Deus e com os irmãos, e
transformando-o interiormente; esta transformação interior da graça divina faz
sentir a sua influência indiretamente sobre toda a família humana (GS 42);
O autor nota que o texto
conciliar, como todos os outros “evitam a palavra ‘sobrenatural’ e orientam-se
para uma linguagem de unidade tendente a eliminar todo o dualismo”[9];
e ainda que “o uso da palavra graça tende a
desaparecer do ensino catequético e pastoral e mesmo dos escritos teológicos
recentes. Em teologia, por exemplo, não se publicam mais tratados específicos
concernante à graça divina”[10];
para terminar dizendo “é sem
dúvida para respeitar esta sensibilidade do homem contemporâneo que, dentro dos
livros de catequese substituímos a palavra ‘graça’ por expressões que descrevem
melhor esta experiencia muito pessoal de uma vida de união e de relação com
Deus”[11].
Por fim, o autor termina
dizendo que prefere a aproximação bíblica e existencial, feita pela Gaudium et
Spes[12], do que propriamente a
abordagem tradicional e escolástica. É claro que teremos de situar esta posição
no contexto de 1975.
[1] Cf.
Renè-Jacques, La Grâce de Dieu et son actualite pastorale”, Paris, 1975
[2] Cf.
Renè-Jacques, p.7-29.
[3]
Renè-Jacques, p. 27.
[4]
Renè-Jacques, p. 27.
[5]
Renè-Jacques, p. 28.
[6]
Renè-Jacques, p. 26.
[7]
Renè-Jacques, p. 28.
[8]
Renè-Jacques, p. 54-69.
[9]
Renè-Jacques, p. 75.
[10]
Renè-Jacques, p. 75.
[11]
Renè-Jacques, p. 76.
[12]
Renè-Jacques, p. 79.
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