terça-feira, 9 de janeiro de 2024

IV A Graça na Teologia prática


1. Renè-Jacques, aluno do ISPC, em Paris, em 1975, de uma forma muito prática reuniu um conjunto de jovens – uma equipa de trabalho -, que tentasse responder à pergunta “há uma nova maneira de falar de ‘graça’ aos nossos contemporâneos? É preciso continuar a falar-lhes a partir de uma síntese teológica da graça, da definição, da natureza e dos seus efeitos?” O trabalho de “teologia prática” deu origem à tese de mestrado La grace de Dieu et son actualitè pastorale[1], em 1975.

No seu todo, a tese é como todas as teses, muito imperfeita e muito datada, contém certas descontinuidades da Tradição que me parecem próprias das circunstâncias, tais como aquela de preferir a nova linguagem à linguagem tradicional. No entanto, a proposta como aplicação da ‘teologia prática’, como provocação da experiência espiritual dos membros e a procura de verbalização e de sistematização, no quadro do tratado da graça tem muito valor. O grande valor é a tentativa de sincronização da teologia sistemática com a teologia prática!

O autor segue a ordem de perguntas sobre a natureza da graça, as distinções da graça e os efeitos da graça[2] que a equipa de trabalho possa identificar. O tratado tradicional da graça pode desenvolver-se a partir desses três argumentos numa linguagem muito classificada, mas pouco percetível. Nós vamos seguir a ordem da conversação para ver até que ponto os jovens conseguem compreender e 'classificar' a graça.

2. O grupo começou por tentar definir a natureza da ‘graça’ e chegou às asserções comuns. Todos reconheceram que:

a) a ‘graça’ é o amor de Deus revelado em Jesus Cristo; a ‘graça’ é o dom que Deus faz no seu Filho; a ‘graça’ é uma iniciativa e uma comunicação de Deus;

b) a ‘graça’ é o amor de Deus derramado nos corações, o dom sobrenatural dado pelo Espírito santo, no Batismo; é o dom que torna filhos de Deus, quer dizer, que permite entrar em relação com Deus, e participar da sua vida divina;

c) a ‘graça’ é o dom sobrenatural que posso aceitar livremente ou rejeitar livremente; (neste ponto, refere o autor, começaram a surgir muitas dúvidas tais como se a graça é ‘apenas proposta’ ou é ‘mesmo dada’ aos homens, ou se a resposta é ‘apenas um reconhecimento exterior e consequente a adesão externa’; alguns pensam na ‘graça’ como uma energia humana, uma profundidade humana, que deve vir ao de cima como espiritualidade);

d) a graça pode ser distinta nos seus diversos efeitos; que há a “graça” de Deus no dom de Jesus Cristo, e as “graças” por meio das quais entramos na relação com Deus.

3. O grupo procurou, de seguida, responder à pergunta sobre os efeitos da graça nas suas vidas. Os efeitos da graça são:

a) os frutos da vida cristã na vida de cada qual;

b) os sinais do amor de Deus manifestos na vida de cada qual;

c) a coerência interna de intenções, pensamentos, palavras e ações;

d) a maior integração e a maior participação na vida da Igreja;

e) a capacidade de levar o amor de Deus aos homens que Ele ama e quer salvar.

O autor conclui: “chegamos a um semi-sucesso. Nós utilizamos palavras que não traduzem corretamente àquilo que é o nosso pensamento sobre a graça, palavras que sublinham as nossas divisões conceptuais e que nos impedem de comunicar plenamente (…) Parecia que as palavras da nossa linguagem eram um obstáculo à expressão desta realidade vivificante da graça de Deus”.[3] Parece ter havido uma enorme dificuldade para encontrar palavras e um discurso fluente que pudesse descrever a experiência da graça e as suas convicções profundas.

O autor, curiosamente, nota que as distinções entre ‘graça actual’ e ‘graça habitual’ não colheram compreensão, mas percebeu que há necessidade de utilizar uma linguagem que possa minimamente verbalizar uma experiência e que possa ser universalmente compreendida.

Os comentários dos jovens salientam essa necessidade da seguinte forma: “’Fazemos a experiência da diversidade de opiniões e de expressões concernantes à graça, mas chegaremos alguma vez a um discurso ‘totalizante’ sobre o essencial da nossa fé que é a graça de Deus?’ Que resposta dar?”[4] E ainda: “Como nós não encontramos hoje palavras que traduzam a nossa experiência, sentimos a necessidade de utilizar as palavras antigas”[5].

O autor perguntou, por fim, qual seria a linguagem a adotar: se uma linguagem mais ontológica, sistemática, teórica e dedutiva, ou uma linguagem mais bíblica, existencial, concreta  e indutiva. O grupo mostrou-se reticente a uma linguagem sistematizada, preferindo a adaptação da vida: “ a vida exprime melhor as realidades da graça do que o saber por mais perfeito que ele seja”[6]; o grupo prefere “ a linguagem do testemunho”[7].

II

O autor sente a necessidade de procurar nos documentos da Igreja uma nova linguagem sobre a graça, e recolhe no texto da Gaudium et Spes[8] elementos que sugiram a origem da graça, as distinções da graça, o sujeito da graça.

 Assim, genericamente e a título de exemplo, desenho um esquema da sua reflexão.

1. A origem da graça

a) Deus é criador, autor e fim de todas as coisas; Deus é a fonte de todos os dons (GS 20);

b) Deus enviou o seu Filho que restaura a semelhança divina alterada pelo pecado (GS 22);

c) Jesus enviou o Seu Espírito que numa providência admirável, conduz o curso dos tempos, renova a face da terra, e permanece presente nesta evolução (GS 26);

2. O sujeito da graça

a) Deus vem comunicar-se ao homem, que tem uma alma espiritual e imortal onde habita um gérmen de eternidade (GS  18);

b) O homem fazendo uso da sua semelhança com Deus faz uso da sua liberdade, obedecendo à lei da consciência (GS 16);

c) A partir da inteligência humana, o homem pode chegar a penetrar os segredos do mundo, a desenvolver as técnicas e a sondar os mistérios do seu criador (GS 33);

3. Os efeitos da graça

a) A graça de Deus transforma o homem, purificando-o do pecado, reconciliando-o com Deus e com os irmãos, e transformando-o interiormente; esta transformação interior da graça divina faz sentir a sua influência indiretamente sobre toda a família humana (GS 42);

O autor nota que o texto conciliar, como todos os outros “evitam a palavra ‘sobrenatural’ e orientam-se para uma linguagem de unidade tendente a eliminar todo o dualismo”[9];

 e ainda que “o uso da palavra graça tende a desaparecer do ensino catequético e pastoral e mesmo dos escritos teológicos recentes. Em teologia, por exemplo, não se publicam mais tratados específicos concernante à graça divina”[10];

para terminar dizendo “é sem dúvida para respeitar esta sensibilidade do homem contemporâneo que, dentro dos livros de catequese substituímos a palavra ‘graça’ por expressões que descrevem melhor esta experiencia muito pessoal de uma vida de união e de relação com Deus”[11].

Por fim, o autor termina dizendo que prefere a aproximação bíblica e existencial, feita pela Gaudium et Spes[12], do que propriamente a abordagem tradicional e escolástica. É claro que teremos de situar esta posição no contexto de 1975.

 

 



[1] Cf. Renè-Jacques, La Grâce de Dieu et son actualite pastorale”, Paris, 1975

[2] Cf. Renè-Jacques, p.7-29.

[3] Renè-Jacques, p. 27.

[4] Renè-Jacques, p. 27.

[5] Renè-Jacques, p. 28.

[6] Renè-Jacques, p. 26.

[7] Renè-Jacques, p. 28.

[8] Renè-Jacques, p. 54-69.

[9] Renè-Jacques, p. 75.

[10] Renè-Jacques, p. 75.

[11] Renè-Jacques, p. 76.

[12] Renè-Jacques, p. 79.

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