sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Fiducia Supplicans. Sobre o sentido pastoral das bênçãos

1. Comentários pessoais em 18.12.2023, em 19.12.2023 e em 23-12.2023

2. Recolha de comentários de diversas fontes

2.1 O argumento de que a bênção se dirige às pessoas que queiram mudar de vida

2.2 O argumento de que a bênção se dirige às pessoas e não ao casal

2.3 O argumento de que a bênção se destina ao casal e não à união 


1. Comentários pessoais 

Em 6-1-2024
Resumo: Depois da Declaração Fiducia Supplicans, que transformava a bênção num sinal eficaz da graça atual, o Comunicado vem dizer que afinal é bênção é apenas um sacramental.
O comunicado do Dicastério para a Doutrina da Fé do passado 4 de janeiro de 2024 seria muitíssimo claro e justo, se tivesse sido o primeiro comunicado. Este segundo comunicado vem mostrar que a Sé apostólica não teve o cuidado universal pelos ‘numerosos países’ em que a homossexualidade é punida com o preconceito, a prisão ou a pena de morte, da mesma forma que não teve o cuidado de colocar colegialmente a problemática. A verdade é que o segundo comunicado vem ridicularizar o primeiro ao afirmar que ‘em 10 ou 15 segundos’ - tempo proposto pelo 2o comunicado - pode realizar-se ‘um simples gesto que fornece um meio eficaz para aumentar a confiança em Deus da parte das pessoas que o pedem’ (FS, 31). O problema é que a Fiducia Supplicans transformou a simples benção num sinal eficaz da graça atual que produziria fenómenos espantosos, expressos nos verbos então utilizados; tratar-se-ia de uma graça atual dirigida ao livre arbítrio em ordem ao fortalecimento e ao amadurecimento de uma pessoa. Agora o segundo comunicado vem dizer que a bênção é um sacramental dirigido à memória, à imaginação e à aspiração humana, e que produz aquilo que pode produzir um ‘bom dia’ ou um ‘olá’. O teor dos dois textos é muito diferente e nós não temos culpa disso. A vitimização nas boas intenções do papa e a classificação de todos os outros como estúpidos não ficou nada bem nem ao papa nem ao dicasterio. Para alguém que tenha dúvidas do que digo compare-se o teor do texto de 4 de janeiro de 2024 ao terceiro capítulo do 18 de dezembro de 2023.


Em 23.12.2023
Resumo: Numa Igreja-perita-em-humanidade temos uma eclesiologia e uma prática pastoral muito mais ricas do que uma bênção.
Começam a surgir as reações à Fiducia Supplicans. As Conferências episcopais do Cazaquistão, do Malawi, da Zâmbia, da Nigéria, do Togo, do Gana, dos Camarões, da Costa do Marfim, da Polónia, da Suíça, da Ucrânia, da Hungria, já se pronunciaram desfavoravelmente (Vou atualizando!). Noto ainda assim que alguns tentam salvar o que pode ser salvo, dizendo, no fundo, que pode ser dada uma bênção quando um casal reconhecer a situação pecaminosa e desejar encontrar orientação e luz para dela sair. Por exemplo, em Richard Declue, “Clarity in confusion: an approach to Fiducia Supplicans, in Word on fire, de 21-12-2023, pode ler-se “essencialmente, isso significa que a Igreja responde aos pedidos de pessoas que estão em situações objetivamente pecaminosas e desordenadas com uma oração para que Deus possa ajudá-las a superar o pecado, viver vidas mais santas e até mesmo ‘a serem guiadas para uma maior compreensão de seu plano de amor e verdade’. As pessoas nessas situações podem muitas vezes saber que seu relacionamento é pecaminoso, mas têm dificuldade em entendê-lo ou lutar para encontrar a força para corrigir a situação.” Além desta perspetiva, existe um grande debate sobre se a bênção é destinada às pessoas ou ao casal. Numa eclesiologia-da-Igreja-perita-em-humanidade, ainda não consegui perceber a pertinência desta coisa da bênção, nem, sinceramente, o que ela possa trazer de novo. A eclesiologia católica e a prática dos pastores e dos fiéis têm sido muito mais ricas do que uma bênção! Temos o pensamento de Cristo (1Cor 2,16), temos a Igreja, os irmãos, a experiência pastoral, o acompanhamento espiritual; temos o Pai nosso, a Ave Maria, a liturgia, os sacramentos, as leituras, os cânticos, as orações. Temos a Igreja toda, em todas as partes do mundo, junto das pessoas de todas as idades, que vivem dramas sérios, e de quem não arredamos pé. Temos casais recasados que vivem tudo isto, na comunhão da Igreja, sem a comunhão sacramental, e cuja comunhão eclesial vale muito mais que uma bênção! Tenho a intuição de que o “santo povo fiel” sabe e acredita nisso, e de que começa a desconfiar dos excessos.

Em 19.12.20. Resumo: o constante envio de impulsos não resulta numa mudança interior estável como pretende a Declaração.

O Dicasterio da Doutrina da Fé publicou a declaração Fiducia Supplicans assinada pelo Cardeal Víctor Manuel Fernández, no dia 18 de dezembro de 2023. A parte mais difícil do texto diz respeito ao 3o capítulo “As bênçãos dos casais em situação irregular e dos casais do mesmo sexo”, sobretudo onde se afirma “essas formas de bênção expressam um apelo a Deus para que Ele conceda aquelas ajudas provenientes dos impulsos do Seu Espírito – que a teologia clássica chama de «graças atuais» – para que as relações humanas possam amadurecer e crescer na fidelidade à mensagem do Evangelho, libertar-se das suas imperfeições e fragilidades e expressar-se na dimensão cada vez maior do amor divino.”
A ideia principal é que, no contexto eclesial, se pode conceder a bênção ao casal na forma de oração, de intercessão, de fortalecimento. Neste contexto, a bênção concederia uma espécie de ‘impulso’, de ‘ajuda' (n. 31), para iluminar, fazer crescer, ou expressar elementos próprios do amor divino. Sucede que este crescimento ou fortalecimento, na especificidade do tratado da graça - no estrito tratado teológico - não é da ordem da graça atual mas da ordem da graça habitual. Parece-me que a Declaração identifica a graça atual com a graça habitual, como também me parece confusa a ideia de que a continuidade de ‘ajudas’ ou o somatório de ‘impulsos’ resulta na transformação interior, no amadurecimento e no crescimento de uma pessoa. Apresento, de seguida, o argumento, com a salvaguarda de estar no campo teológico, e de que falar da graça é sempre falar por analogia.
A primeira dúvida que o texto levanta relaciona-se como binómio graça-pecado que está omisso neste texto. Parece-me que a primeira ação do Espírito Santo na vida de uma pessoa - a primeira graça atual - é o reconhecimento exterior da glória de Deus e da sua graça, e o consequente reconhecimento e rejeição do pecado. O evangelho de S. João afirma a este propósito que “quando vier o Paraclito, Ele convencerá o mundo quanto ao pecado, quanto à justiça, e quanto ao julgamento” (Jo, 16,8). À primeira moção do Espírito Santo, S. Tomás de Aquino chama de ‘justificação primeira’, que é uma graça em ordem à graça santificante - que é a graça do batismo, a real justificação. Essa primeira graça é a graça atual, uma espécie de inspiração, de iluminação ou de visão, que move o espírito humano para coisas maiores e mais sublimes. É um movimento espiritual para o estado de graça, mas não é o estado de graça; é um movimento para o reconhecimento mas não para o amadurecimento, como respondia Joana d’Arc aos inquisidores “perguntais-me se estou em estado de graça? Se estou, Deus me guarde! Se não estou, Deus me meta!”
A segunda dúvida é relativa à noção de graça atual, vista no texto como um ‘impulso’, uma ‘ajuda’, um ‘auxílio’, que produz um determinado efeito na vida de uma pessoa. Ora, no tratado da graça, não me parece que os impulsos da graça atual produzam os efeitos descritos na Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé. Por si, enquanto moção, a graça atual opera ‘impulsos’, ‘ajudas’, e não pode produzir efeitos estáveis como ‘maturar relações humanas’, ‘crescer na fidelidade ao Evangelho’, ‘libertar das imperfeições’ e ‘exprimir numa maior dimensão do amor divino’ (n. 31). Estes verbos dizem que a graça ‘permanece’, ‘mora’, ‘habita’ em nós de forma estável. São Tomás distingue, neste sentido, a graça-moção da graça-forma. A primeira é o movimento do primeiro impulso, a segunda é a graça que estrutura, constrói e aperfeiçoa. A graça habitual é estável, permanente e duradoura, e produz os três efeitos da remissão, da iluminação e da participação, onde se vêm assentar as virtudes da fé, da esperança e da caridade, e os dons do conhecimento, da ciência e da sabedoria, e das graças do perdão, do carisma e do crescimento, etc...
Desta forma, os efeitos da estabilidade, ou ao menos do crescimento e da purificação, não podem ser vistos como a soma ou o resultado de muitas graças atuais - de muitos impulsos seguidos uns aos outros - sem a coerência da minha liberdade e de todo o processo de conformação ao evangelho. Num contexto externo à vida da Igreja, a graça atual é dada em vista da graça habitual; e num contexto da graça habitual, a graça atual é dada em vista da maior graça habitual. Penso, sinceramente, que ver a graça atual a atirar impulsos e a criar mudanças interiores é mais magia do que relação; é mais extrincecismo do que transformação interior, e mais estatismo existencial do que abertura relacional, ao mais que quero ser, ao mais que posso fazer, e ao mais sublime a que sou chamado.
Em 18.12.2023
"Da graça suficiente livrai-nos , Senhor!”
Santissimo Padre,
Eminentíssimo senhor cardeal Fernandez,
enquanto o Sporting ganha ao Porto permitam-me comentar num instantinho a declaração ‘Fiducia supplicans‘ deste santo Natal. Não está em questão a forma perturbadora com que se ganha num decreto o que não se conseguiu pressionar num sínodo; é a forma retumbante com que o Dicasterio da Doutrina da Fé identifica a graça atual com a graça habitual. A graça atual, Sr. Cardeal, é uma graça-moção, ao passo que a graça habitual é uma graça-forma. Quer isto dizer, que a graça atual é uma graça de princípio, move uma potência para um ato, move uma faculdade para o seu ato natural; ao passo que a graça-forma estrutura, amadurece, santifica uma pessoa. A graça atual é moção antes da operação. Quer dizer, move a pessoa para ir à Igreja, ao santuário, à peregrinação, ao encontro, mas a graça atual não é a bênção da eucaristia, nem é a bênção do santuário, nem a bênção num outro contexto eclesial. A graça atual precede a bênção da Igreja e move para ela! É por essa razão que a graça atual não serve para ‘amadurecer’, ‘crescer’, ‘libertar’, ‘expressar’, como vossa eminência escreve, etc… essa é a graça santificante do batismo onde se vêm depois fundar as virtudes da fé, da esperança e da caridade, e dos sete dons do Espírito, e dos dons carismáticos, e das graças dos outros sacramentos, etc, e neste etc, meta-se a graça operante e cooperante numa coerente sincronia de operações, etc… A graça habitual é que é estável e permanente, e purifica, ilumina e conforma.
É técnica de aprendiz de teologia, eu sei, é muito complicado, também acho... e também não era preciso!
‘Oh chefe da casa de Israel’, ‘oh valha-nos Deus’, dessa graça atual de que os senhores escrevem, comoó’s jansenistas ‘livrai-nos Senhor’!
Da Fiducia supplicans
III As bênçãos de casais em situações irregulares e de casais do mesmo sexo
“Essas formas de bênção expressam um apelo a Deus para que Ele conceda aquelas ajudas provenientes dos impulsos do Seu Espírito – que a teologia clássica chama de «graças atuais» – para que as relações humanas possam amadurecer e crescer na fidelidade à mensagem do Evangelho, libertar-se das suas imperfeições e fragilidades e expressar-se na dimensão cada vez maior do amor divino.”

2. Recolha de comentários 

2.1 O argumento da bênção para as pessoas que queiram mudar de vida 

a) Richard Declue, “Clarity in confusion: an approach to Fiducia Supplicans, 21-12-2023 

“Então, de que tipo de bênção estamos falando, então? Qual é o propósito? O documento descreve o tipo de bênção que tem em mente (… citação do n. 31). O termo graça atual é definido no Catecismo: “Graças atuais... referem-se às intervenções de Deus, seja no início da conversão ou no Curso do trabalho de santificação” (§2000). A graça atual, distinta da graça santificante (que é habitual), é a assistência divina dada para ajudar alguém a fazer a coisa certa. Tal bênção, então, é concedida àqueles que reconhecem que estão lutando para fazer a coisa certa e estão pedindo a Deus a graça de fazer a coisa certa. Assim, a declaração sugere que, “em uma breve oração antes desta bênção espontânea, o ministro ordenado poderia pedir que os indivíduos tenham... a luz e a força de Deus para ser capaz de cumprir completamente sua vontade.”[xi] Tal bênção pede a “ajuda de Deus para viver melhor, e também para invocar o Espírito Santo para que os valores do Evangelho possam ser vividos com maior fidelidade.”[xii] Então, o que tudo isso significa, no final? Essencialmente, isso significa que a Igreja responde aos pedidos de pessoas que estão em situações objetivamente pecaminosas e desordenadas (relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo ou outras situações irregulares, como aquelas que são divorciadas e inválidamente "recasadas") com uma oração para que Deus possa ajudá-las a superar o pecado, viver vidas mais santas e até mesmo "a serem guiadas para uma maior compreensão de seu plano de amor e verdade". [xiii] As pessoas nessas situações podem muitas vezes saber que seu relacionamento é pecaminoso, mas têm dificuldade em entendê-lo ou lutar para encontrar a força para corrigir a situação. O documento menciona repetidamente que o pedido é para aqueles que se aproximam com humildade e que reconhecem sua necessidade de assistência divina diante de seu pecado e não é para aqueles que buscam a legitimação de seu comportamento pecaminoso. Bênçãos semelhantes são dadas àqueles que lutam com o vício que estão buscando ajuda para superar seu vício e não àqueles que procuram justificá-lo.”

b) Robert Barron, em 21.12.2023, in US Conference of Catholic Bishops 

Na minha qualidade de presidente do Comitê de Leigos, Casamento, Vida Familiar e Juventude da USCCB, gostaria de responder a algumas das perguntas e preocupações que surgiram após a publicação do documento do Vaticano, Fiducia Supplicans. A declaração de forma não pede uma mudança nos ensinamentos da Igreja sobre casamento e sexualidade. Na verdade, faz um grande esforço para insistir que, de acordo com a doutrina imutável, o casamento é uma união de um homem e uma mulher em fidelidade e abertura ao longo da vida às crianças. As bênçãos que permite para aqueles em relacionamentos irregulares não são de natureza litúrgica e, portanto, não implicam qualquer aprovação de tais relacionamentos. Em vez disso, essas bênçãos são informais e espontâneas, projetadas para chamar a misericórdia de Deus para curar, guiar e fortalecer. Apesar de alguma cobertura enganosa na imprensa, a declaração não constitui um "passo" para a ratificação do casamento entre pessoas do mesmo sexo nem um comprometimento dos ensinamentos da Igreja sobre aqueles em relacionamentos irregulares.”

2.2 O argumento de que a bênção se dirige às pessoas e não ao casal 

a) Filipe Avilez, In Atualidade religiosa, de 28-12-2023

A declaração Fiducia Supplicans causou bastante polémica na Igreja, com o Dicastério para a Doutrina da Fé a anunciar que pessoas em uniões homossexuais podem receber bênçãos. Sem surpresas, a ideia que passou para o mundo foi de que o Papa acabava de aprovar a bênção de uniões homossexuais, apesar de o texto dizer explicitamente que a bênção é para as pessoas, e em caso algum para a relação em si.

b) A Nota de Mgr Marc Aillet, évêque de Bayonne, Lescar et Oloro, le 27 décembre 2023

N’y a-t-il pas une distinction à faire entre bénir une personne et bénir un « couple » ?

L’Eglise a toujours tenu que « Ces bénédictions s’adressent à tous et que personne ne doit en être exclu » (n. 28). Mais, si l’on se réfère au Livre des Bénédictions et au Directoire sur la piété populaire et la liturgie, on constate qu’ils concernent essentiellement, sinon exclusivement, des personnes individuelles, même réunies en groupes, comme des personnes âgées ou des catéchistes. Mais dans ces cas, ce n’est pas la relation qui les unit, et qui n’est d’ailleurs qu’extrinsèque, qui est l’objet de la bénédiction, mais bien la personne.

Ainsi, nous touchons là à la nouveauté de la déclaration Fiducia supplicans qui ne réside pas dans la possibilité de bénir une personne en situation irrégulière ou homosexuelle, mais d’en bénir deux qui se présentent en tant que « couple ». C’est donc l’entité « couple » qui invoque la bénédiction sur elle. Or, si le texte prend soin de ne pas utiliser les termes d’union, de partenariat ou de relation – utilisés par l’ancienne Congrégation pour son interdiction –, il ne fournit pas pour autant une définition de la notion de « couple », devenu ici un nouvel objet de bénédiction.

Une question sémantique s’impose donc qui n’est pas résolue : la dénomination de « couple » peut-elle raisonnablement être donnée à la relation de deux personnes de même sexe ? N’a-t-on pas intégré un peu hâtivement la sémantique que le monde nous impose mais qui jette la confusion sur la réalité du couple ? Dans son exhortation apostolique Ecclesia in Europa (2003), Jean Paul II écrit : « On observe même des tentatives visant à faire accepter des modèles de couples où la différence sexuelle ne serait plus essentielle » (n. 90). Autrement dit : la différence sexuelle n’est-elle pas essentielle à la constitution même d’un couple ? C’est une question anthropologique qui mériterait d’être précisée pour éviter toute confusion et ambiguïté, car si le monde a élargi cette notion à des réalités qui n’entrent pas dans le Dessein du Créateur, la parole magistérielle ne doit-elle pas assumer une certaine rigueur dans sa terminologie pour correspondre le mieux possible à la vérité révélée, anthropologique et théologique ?

c) Nota dos bispos do Oeste, França, em 01-01-2024

C’est pourquoi, il est opportun de bénir de façon spontanée, individuellement, chacune des deux personnes formant un couple, quelle que soit leur orientation sexuelle, qui demandent la bénédiction de Dieu avec humilité et dans le désir de se conformer de plus en plus à sa sainte volonté.


2.3 O argumento de que a bênção se destina ao casal mas não à união 

a) Tiago Freitas, Facebook, em 27.12.2023

Alguns interpretaram que a benção seria dada às pessoas individualmente e não como casal. Questionado sobre este aspecto, Víctor Fernández respondeu:
Uma interpretação dada à Declaração é que as bênçãos seriam concedidas às pessoas e não especificamente à sua união. No entanto, o documento menciona claramente, na terceira parte, a bênção de "casais". Isso implica que a união irregular dessas pessoas está a ser abençoada?
É crucial distinguir bem, e a Declaração faz esta distinção. Os casais estão a ser abençoados. Não é abençoada a união, pelas razões que a Declaração explica repetidamente sobre o verdadeiro sentido do matrimónio cristão e das relações sexuais.

b) Dicasterio da Doutrina da Fé, Comunicado à imprensa de 04-01-2024 
(este documento vem explicar que o outro documento afinal não acrescentou nada àquilo que é a prática da Igreja; é muito mais cauteloso quanto à ação da benção- não utilizando palavras como graça, auxílio, impulso - e muito mais cauteloso quanto aos efeitos da bênção)

Declaração contém a proposta de breves e simples bênçãos pastorais (não litúrgicas, nem ritualizadas) de casais irregulares (não das uniões), sublinhando que se trata de bênçãos sem forma litúrgica, que não aprovam nem justificam a situação em que se encontram essas pessoas.
Trata-se de bênçãos de poucos segundos, sem uso do Ritual de Bênçãos. Se se aproximam juntas duas pessoas para pedi-la, simplesmente implora-se ao Senhor paz, saúde e outros bens para estas duas pessoas que as pedem.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Espero receber-Te neste Natal / Espero que me convenças do pecado!

 

Espero receber-Te neste Natal

Nesta segunda meditação de advento gostaria de dizer como Deus se revela numa Palavra; gostaria de falar do mistério de Deus que continua a revelar-se na Palavra que nos sustém e nos recria. Todos nós fizemos a experiência de que certas pessoas nos disseram tudo numa palavra; e fazemos também a experiência do poder criador da palavra. Há palavras verdadeiramente transformantes que ficam dentro de nós; ou melhor, que nos trazem a vida, a vida de uma pessoa como entrega e promessa. Um amigo que nos liga não dá apenas informações mas dá-se a ele próprio; um pai que diz “meu filho” manifesta na palavra uma vida totalmente entregue e prometida; um homem que diz “amo-te” entrega-se e promete-se nessa palavra, etc. Poderíamos estender os exemplos a muitas situações que causam o impacto de uma transformação, de uma mudança interior, ou de uma nova relação pessoal. Deus revela-se na palavra da mesma maneira; ao dizer uma palavra no evangelho, no kérigma, nos sacramentos da Igreja, na vida dos irmãos e das circunstâncias da vida, Ele dá-se. Quando Deus fala, Deus diz-se; quando Deus se dá, Deus promete-se, a si próprio. Deus não diz uma palavra que tenha uma mensagem, uma informação, uma orientação; na sua palavra, Deus não vai dizer-te qual o caminho a seguir, se estás bem ou se estás mal, se deves fazer isto ou fazer aquilo. Quer dizer, Deus não vai acrescentar absolutamente nada àquilo que já disse em Seu Filho Jesus Cristo Nosso Senhor. Quando Deus se revelar na palavra deste Natal não vai trazer soluções para nada nem ninguém. Vai dizer uma palavra e isso nos basta. S. João da Cruz diz a este respeito: “fixa os olhos somente nEle, porque foi nEle que restringi todas as coisas: nEle eu disse tudo e revelei tudo. Tu encontrarás nEle mais do que tu possas desejar e pedir. Tu pedes uma palavra, uma revelação, uma visão parcial: se prenderes os olhos nEle, tu encontrarás tudo Nele. Ele é toda a minha palavra, toda a minha resposta, ele é toda a minha visão e toda a minha revelação. Eu tudo vos respondi, tudo disse e tudo manifestei, tudo revelei, dando-vos por irmão, por companheiro, por mestre, por herança, por palavra e por recompensa” (S. João da Cruz, A subida do Carmelo, Livro II, cap, XXII, n.4).

Lembro-me perfeitamente de como Deus se me disse numa palavra. Lembro-me ainda hoje do impacto que criou em mim no primeiro ano do seminário a proclamação da palavra “tu és o meu filho, eu hoje te gerei”; ou o estremecimento de ter chamado a Deus de “Pai” pela primeira vez no segundo ano de seminário; ou o momento em que foi pronunciada a palavra da oração consecratória “constitui este vosso servo na dignidade de presbítero, renovai em seu coração o Espírito de santidade (…)”. Verdadeiramente, uma palavra traz uma pessoa divina que se entrega e se promete; numa palavra a pessoa não fica aquém e a palavra além; pessoa e palavra são o mesmo e ficam o mesmo dentro de nós. Foi essa a experiência do centurião de Cafarnaúm quando disse “Senhor, diz uma só palavra e o meu servo será salvo” (Mt 8,8). Ainda que a vida esteja cheia de contradições entre a existência e a palavra, entre a existência e uma missa, Deus continuar a revelar-se na palavra; faço essa experiência da revelação da palavra na eucaristia, na escritura, nas aulas, na escuta das pessoas; quando me sentei por aqui a ouvir as histórias da JMJ há uma palavra que salta para mim, que me diz respeito e que me toca pessoalmente. Ainda agora um pastor evangélico sentou-se ao meu lado e a palavra foi como que uma revelação. A palavra dos irmãos é como que uma revelação. A palavra fez um caminho extraordinário: ela foi pronunciada, criou impacto, foi interiorizada, convenceu do pecado, fez voltar para Cristo, fez voltar a chamar Pai e reconhecer-me como Filho. Este percurso da palavra é o percurso da graça! É o mesmo percurso da graça! Basta recordar Isaías para perceber o percurso: “tal como a chuva, tal como a neve, desce dos céus e não volta para lá sem ter irrigado a terra, sem a ter fecundado e feito produzir, de modo a dar semente para aquele que semeia e pão para aquele que come, assim é a minha palavra, quando sai da minha boca: não volta para mim em vão sem ter feito aquilo que Eu quis e sem realizar com êxito aquilo para que a enviei” (Is 55,10-11). Nós, os cristãos, leigos, consagrados, padres, somos umas testemunhas privilegiadas de que Deus se continua a revelar na palavra, por ela mudando vidas e situações interiores, de uma forma fundamental. Somos testemunhas da eficácia da palavra, observadores da força da palavra.

Neste Natal vamos ouvir algumas leituras sobre a Palavra, sobretudo na leitura do prólogo do evangelho de S. João – que será o evangelho do dia de Natal - e a leitura do prólogo da primeira carta de S. João – que será a primeira leitura do terceiro dia da oitava do Natal, o dia do apóstolo S. João. S. João é o apóstolo e o evangelista do testemunho de Jesus de Nazaré, o Verbo de Deus encarnado: Jesus veio dar o testemunho da verdade (Jo 3, 11; 3,32; 18,37) veio dar testemunho por meio das obras de que o Pai o enviou, e do que viu e ouviu a seu Pai (Jo 5,36; 7,7; 10,25); Ele é de facto a testemunha fiel (Ap 1,5). O próprio evangelho de S. João descreve por várias vezes João batista como a testemunha da luz que havia de vir (Jo 1,7; 3,26; 5,33). Por fim, falará dos crentes como as testemunhas de verdade.

Escutemos o prólogo do evangelho de S. João (Jo 1,1-18)

“No princípio era a Palavra e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus. Ela estava, no princípio, junto de Deus. Por meio dela todas as coisas surgiram, e sem ela nem uma só coisa do que existe surgiu. Nela estava a vida e a vida era a luz dos homens; a luz brilha nas trevas e as trevas não se apoderaram dela.

Surgiu um homem, enviado por Deus: o seu nome era João. Ele veio para um testemunho: para dar testemunho da luz, para que todos, por meio dele, acreditassem. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.

A Palavra era a luz verdadeira, que ilumina todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo e o mundo por meio dela surgiu; mas o mundo não a conheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram. Mas a todos quantos a receberam deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus: àqueles que acreditam no seu nome. Estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.

E a Palavra fez-se carne: estabeleceu a tenda entre nós e contemplámos a sua glória; glória como unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade"».

Escutemos também o prólogo da primeira carta de S. João (1Jo 1,1-4):

“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós, que vimos e ouvimos é, pois, o que também vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco.

Um dos aspetos que mais chama a minha atenção neste evangelho e nesta carta é que em ambas somos chamados à contemplação do mistério de Deus que se fez homem por amor de nós: “nós contemplámos a sua glória; glória como unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” e “o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram (…)”. Contemplar quer dizer observar fixamente, olhar com muita atenção. A contemplação é o fruto da intimidade, é o efeito da união com Deus; é gustatio, é fruitio… Na experiência prática traduz-se como espanto pelo mistério, admiração pela humildade de Deus, assombro pelo kenose do Verbo. Mas muitas das nossas experiências sensíveis de Natal poderão não ser contemplação verdadeira. Em todos os natais experimentamos uma espécie de espanto, de estupefação, pela grandeza do mistério, e também pela beleza da liturgia, do presépio, do cântico; concebemos a contemplação habitualmente como uma espécie de experiência estética. A mim faz-me lembrar as muitas noites de Natal que entrei na Igreja paroquial às duas ou três da manhã para contemplar o estado de beleza e de esplendor onde acabámos de celebrar os mistérios de Deus... Isso não é contemplação, é admiração; e também não é fruição, é prazer! A contemplação da glória de Deus é a resposta a quem se revelou numa palavra que faz sentido, que mudou qualquer coisa de essencial e que ainda hoje faz sentido! Apresente-vos desta forma o risco do Natal. Trata-se do risco de admirar a estética do natal, do presépio, dos arranjos, dos cantos, da liturgia, sem esperar a revelação de Deus numa palavra. Os nossos sentidos estão orientados para admirar no tempo do natal: admirar o pensamento de Deus e a lógica da encarnação, ver as coisas bonitas que conseguimos fazer, sentir a alegria e a comunhão dos irmãos. Mas a palavra precede o pensamento e os sentidos, a palavra é anterior a todas essas coisas. Não é a Quaresma que é o tempo da palavra; é o Natal que é o tempo da revelação da Palavra.

Mas o mistério do Natal é um mistério de proclamação de uma palavra de vida, é o mistério do pronunciamento da única Palavra de vida: “tu és o meu filho, eu hoje te gerei”. Neste tempo, na liturgia da Igreja, na reunião das famílias, nos encontros que vamos ter, Deus continua a pronunciar, a revelar, a sua palavra única a cada um de nós. O prólogo do evangelho depois de sublinhar o testemunho de João - Ele veio para um testemunho: para dar testemunho da luz (…) – afirma com toda a clareza que Jesus é a Palavra que ilumina todo o homem que vem ao mundo (…). Também a epístola de S. João confessa a revelação da vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós. O prólogo do evangelho de S. João fala também dos crentes como as testemunhas de verdade: todos quantos a receberam deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus; àqueles que acreditam no seu nome deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. E também o prólogo da primeira epístola nos diz que o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos.

Neste Natal não somos apenas convidados a uma experiência estética e sensível de admiração e de espanto pelo nascimento do Verbo de Deus na nossa natureza humana. Somos convidados a esperar a sua vinda numa palavra que nos traz Ele mesmo e a sua promessa. Ele mesmo e a sua promessa não fora mas dentro de nós.

 


Espero que me convenças do pecado!

No início desta pequena recoleção, escolhi, por ser sexta-feira, o tema do pecado, e isso vai dar ideia de que estamos na Quaresma e não no Natal! Fiz essa escolha porque não dá para esperar Jesus com o coração ocupado com muitas coisas; é preciso fazê-las recuar para que a espera e o acolhimento da Palavra eternamente pronunciada possa acontecer. Proponho por isso uma espécie de meditação quaresmal de inverno, e, para a primeira meditação, proponho o texto de Jo, 5,1-10. Jesus, numa das festas dos judeus, sobe a Jerusalém, e perto da porta das ovelhas, entra na piscina de Bethesda, onde jaz uma multidão de enfermos, cegos, coxos, impotentes, que esperavam a ondulação da água. Escutemos o texto: “Estava ali um homem enfermo há trinta e oito anos. Vendo-o estendido e tomando conta de que ele estava naquele estado há tanto tempo, diz-lhe: “queres curar-te?”. O homem responde-lhe: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina quando a água é agitada, e no tempo em que é, um outro avança antes de mim”. A narrativa teológica de S. João liga-nos ao livro do Deuteronómio, no capítulo 1, quando Moisés recebe a instrução do Senhor: “já permanecestes muito tempo nesta montanha. Voltai-vos e parti; e entrai na na Arabá, na montanha e na planície costeira, no Négueb e na beira do mar, a terra dos cananeus e o Líbano e até ao grande rio, o rio Eufrates. (…) Entrai e tomai posse da terra que o SENHOR jurou aos vossos pais, Abraão, Isaac e Jacob” (Dt 1,6-8). Mas eles, sem conhecimento de Deus, reuniram doze homens das 12 tribos de Israel e foram explorar previamente essa terra prometida. Trouxeram os frutos da terra e com eles o pavor dos ‘homens de grande estatura, dos altos dignatários e das cidades bem organizadas’ que estavam do lado de lá. Por não terem escutado a voz de Deus e por terem estabelecido o que deviam fazer, sem o seu Senhor, nenhum deles atravessou da montanha do Horeb: “o SENHOR ouviu o rumor das vossas palavras, encolerizou-se e jurou, dizendo: “Nem sequer um dos homens desta geração perversa verá a terra boa que jurei dar aos vossos pais (…) Foram trinta e oito anos – narra Moisés no Livro do Deuteronómio - aqueles em que caminhámos desde Cadés-Barnea até atravessarmos a torrente de Zéred, até desaparecer toda a geração de homens de guerra do meio do acampamento, conforme o Senhor lhes tinha prometido com juramento” (Dt2,14-16).

Israel ficaria entre Cardés e Arnon trinta e oito anos, na terra estrangeira do Seïn e de Moab, comprando a comida e a bebida ao preço da prata. Israel tinha-se tornado impotente. O meu olhar prende-se com atenção ao estado em que ficou o povo de Israel, privado de Deus e ferido na sua realização como povo. Foram estes os dois bens – o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob e a identidade como povo da aliança – que Israel perdeu. Ficou privado de Deus e agora encontra-se sem o favor do Senhor, sem o seu poder, sem a sua glória, sem a sua presença, a sua luz, os seus dons e os seus carismas. Sem Deus, Israel ficou privado da graça... Mas ficou também ferido na sua própria essência de povo eleito, de povo da promessa, porque encontra-se agora enfraquecido, impotente e bloqueado. Israel deixou de ser uma possibilidade, um projeto de realização. Israel não existe…

O homem que encontramos enfermo na piscina de Bethesda está na mesma situação de Israel. É um enfermo destinado à morte se ninguém lhe pegar. Também ele está privado de Deus e da sua graça; já não tem vocação, nem religião, nem dons nem carisma. E também está ferido na sua realização pessoal de tal forma que é incapaz de fazer alguma coisa por si; não tem beleza nem aspeto de homem, já não pede nada, nem sequer ajuda a Jesus. Ele murmura: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina, e quando tento já outros lá chegaram”. Assim, como a terra da promessa estava à frente do povo de Israel, assim Jesus está mesmo à frente do enfermo. À privação da intimidade com Deus, e à ferida na possibilidade da felicidade, a S. Tomás de Aquino chama de efeitos do pecado mortal[1]. São duas ordens diferentes de afetação – uma é espiritual e a outra humana – que ficam diminuídas na escolha errada que uma pessoa possa fazer; a privação não é infligida por Deus nem a ferida infligida por um outro: eu tomei decisões erradas que trouxeram consequências que podia prever. Mais do que uma coisa ou do que um ato, o pecado é uma não resposta a Deus e ao próximo, é uma interrupção do diálogo, ou melhor, é um ficar a falar sozinho, e que acaba por gerar ruturas muito sérias e muito profundas na vida – a rutura com Deus, com o meu próximo e com a minha humanidade.

S. Tomás de Aquino, ao falar do pecado mortal, toma a passagem de Lucas que diz “um homem descia de Jerusalém para Jericó” (I-II,q.85,a.1). O viajante da parábola deixa o caminho da cidade santa de Jerusalém, a sua mulher e os seus amigos, para ir para a cidade licenciosa de Jericó. “Um homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de salteadores que, depois de o despirem e lhe baterem, se foram embora, deixando-o meio morto (Lc 10,30). Diz S. Tomás que esse homem ficou despido, “privado” da graça, das virtudes da fé, da esperança, da caridade, dons espirituais e dos carismas de Deus; e foi deixado quase morto, que significa, ter sido deixado “ferido” na sua natureza humana, diminuído na sua iniciativa, na sua liberdade, na possibilidade de se levantar. Nós conhecemos uma outra parábola de S. Lucas – a parábola do filho pródigo – que pode ajudar-nos a compreender melhor os efeitos das nossas opções erradas: “o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma região distante e aí esbanjou os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ele gastar tudo, surgiu uma grande fome naquela região, e ele começou a passar privações. Uniu-se, então, a um dos cidadãos daquela região, que o mandou para os seus campos guardar porcos. Desejava saciar-se com as bolotas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava” (Lc 15,13-16). Também nesta passagem se nota como o filho foi “privado” de todos os bens da família e “ferido” na sua condição de filho. Ele auto privou-se da presença do pai e auto excluiu-se da sua casa de família, e ficou auto feriu-se gastando-se e consumindo-se com coisas medíocres.

O enfermo da piscina de Betesda, o viajante da parábola e o filho pródigo têm histórias muito parecidas. Abandonaram a Deus de tal ordem que ficaram impedidos de continuar por eles próprios o caminho de vida. Não fosse o próprio Jesus a curar o enfermo de Betesda, não fosse o bom samaritano a passar pelo caminho, e a memória que o filho ainda tinha da casa, e eles nunca teriam voltado a caminhar. Os três homens estavam impuros, feridos, sujos; tinham-se distanciado muito da casa, dos seus amigos e de Deus. Infelizmente, os evangelhos são unânimes no descrever que ficaram os três no chão: um estendido no catre, outro na estrada de Jericó, outro no lamaçal dos porcos. Mas, diz Jesus, no princípio não era assim, e, portanto, se Israel tivesse entrado na terra da promessa, e se o filho mais novo tivesse permanecido em casa do pai, e se o viajante de Jericó tivesse peregrinado para à cidade santa de Jerusalém, a alma seria límpida e radiante. S. Tomás diz, a este propósito, que o pecado – o pecado mortal - imprime uma mancha ou uma sujidade na alma (I-II,q.86,a.1). De facto, a graça é límpida, é transparente; o pecado é cegueira, é treva. A graça mete-nos na intimidade com Deus, o pecado faz-nos abandoná-la. Quando a luz de Deus brilha na alma, iluminam-se os pensamentos, as escolhas e as ações; tudo ganha luz! Quando a graça ilumina a alma, sentimos que somos chamados a coisas maiores do que nós próprios, destinados à união e à glória de Deus. Quando os inquisidores perguntaram a Joana d’Arc se ela estava em estado de graça, ela respondeu-lhes: “perguntais-me se estou em estado de graça. Bem, se estou, Deus me guarde. Se não estou, Deus me meta![2]”.

Sinto muito que neste advento preciso de ser convencido do pecado! A partir da minha própria experiência, sinto a privação da graça e a ferida da natureza. Quando alguém afirma uma coisa destas pensamos logo no que é que ele andou a fazer, nas ações graves que praticou, sobretudo relacionadas com o sexto mandamento… O papa Francisco diz a respeito desta nossa tendência para sexualizar tudo que “isso é um pecado, mas não é dos pecados mais graves, porque os pecados da carne não são os mais graves. Os mais graves são aqueles que têm mais 'angelicalidade': a soberba, o ódio[3]. A soberba e o ódio auto privam-nos da intimidade com Deus porque Deus é amor. Às vezes também auto privo-me da união a Deus, na falta de fé, de esperança e de caridade; na falta de intimidade e de comunhão com Cristo e com os irmãos; na falta de dom e da generosidade de mim mesmo. Doutras vezes, sinto também a mancha da alma, a ferida na realização da minha humanidade, na falta de luz, de entendimento, de ciência, de sabedoria, de discernimento, de prudência, de justiça, de temperança e de fortaleza. Sinto neste advento as desculpas que arranjo para não rezar, não ler a escritura, não meditar, não estar na missa como deveria, os esquemas de desvio, de fuga, de vitimização, de murmuração de culpabilização, etc. Sinto que a privação de Deus e a diminuição da nossa alegria e da nossa felicidade se devem muito ao pecado que habita na nossa carne e no nosso espírito! Elas devem-se às ruturas, aos abandonos, de agora ou de outrora, de Deus, das pessoas, da nossa vocação pessoal. A partir de S. Tomás, posso dizer, que a razão fica sem luz e entra a ignorância do caminho a seguir; a vontade fica sem justiça e entra a malícia das minhas intenções; o irascível fica sem força e entra a fraqueza; o concupiscível fica sem temperança e entra a luxúria (I-II,q.85,a.3). Não há outro caminho para Belém a não ser o convencimento do nosso pecado.

A leitura de uma passagem de S. João diz neste sentido: “é melhor para vós que Eu parta, pois, se não partir, o Paráclito não virá a vós; mas, se for, enviá-lo-ei a vós. E, quando Ele vier, denunciará o mundo quanto ao pecado, quanto à justiça e quanto ao julgamento: quanto ao pecado, porque não acreditam em mim; quanto à justiça, porque vou para o Pai e já não me vereis; quanto ao julgamento, porque o Príncipe deste mundo está julgado” (Jo 16,7-11). Precisamos muito de ser convencidos contra o pecado, precisamos muito de contemplar a Deus e a sua graça para movermos o nosso espírito contra o pecado. Com a ajuda de Deus, precisamos de recuar os pecados do espírito – o orgulho (que é o primeiro), a inveja, a ira, a avareza, a acédia (preguiça), e os pecados dos sentidos a gula e a luxúria – porque todos eles nos levam a ruturas e a rejeições muito sérias e muito importantes nas nossas vidas[4]. Neste quase-termo do advento peçamos a Jesus que venha ter connosco como foi ter com o enfermo da piscina de Betesda, que faça retirar todo o nosso pecado, e nos permita reencontrá-lo no templo de Jerusalém que este tempo do Natal: “Jesus encontrou-o no templo e disse-lhe: «Eis que ficaste são; não peques mais, para que não te aconteça algo pior” (Jo 5,14). Não é uma ameaça; é uma exortação! Jesus não quer simplesmente que ele fique mais enfermo do que já era. Foi uma bela meditação ‘na quaresma de inverno’… ! Libertos assim do pecado que habita na nossa carne, venha habitar a palavra invisível de Deus!


Les bergers, conduits par l´´etoile, se rendent à Bethléem, Octave Penguilly, 1883. Museu de Orsay.

 



[1] S. Tomás chama certos pecados de ‘mortais’ ou ‘capitais’, não porque provoquem diretamente a morte física ou porque nos levem ao inferno para toda a eternidade… Chama-os de mortais por analogia, porque assim como a enfermidade leva à morte se não for curada a tempo, assim o pecado leva à rutura, com Deus, com o próximo e comigo mesmo se não for sarado a tempo (I-II,q.88,a.1).

[2] Xavier Thevenot, Les péchés, p. 61.

[3] Conferência de imprensa no retorno da viagem à Grécia a 6-12-2021.

[4] S. Tomás fala da rutura das três ordens da nossa vida; Deus, o próximo, o próprio, porque cria aversão a Deus, rejeição do próximo, remorso no próprio.

 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

II. A Graça, na analogia da revelação da palavra

 

O texto anterior - “As missões invisíveis do Filho e do Espírito Santo à alma humana, em S. Tomás” – descrevia, na medida do possível, a presença da graça na liberdade humana, como dom criado, ou presença operante e habitual de Deus na nossa natureza. A tentativa de uma revisitação do tratado da graça na perspetiva escolástica traz-nos sempre um vocabulário claro, bem definido, e sempre analógico[1], mas às vezes rígido e pouco personalista. Com certeza que é um vocabulário válido - e assim há-de permanecer - mas isso não impede que possa ser traduzido noutras analogias. S. Tomás de Aquino desenvolve a questão da graça a partir da operação de amar e de conhecer “como o conhecido dentro do cognoscente, e o amado dentro do amante” (I,q.43,a.3). Esta conceção intencional do amar e do conhecer um semelhante sobrenatural não foi impeditiva da criação de outras analogias como a da amizade. Na verdade, “se se aceita como S. Tomás de Aquino (…) que a amizade comporta uma benevolência mútua e a reciprocidade, ambas fundadas sobre a comunhão de um ‘bem’, então um verso como aquele ‘já não vos chamo servos mas chamo-vos amigos’ (Jo 15,15) pode muito bem constituir uma fonte escriturística da amizade entre Deus e o homem”[2]. Outros autores procuraram desenvolver o processo de interação entre Deus e o homem na perspetiva do personalismo, da paternidade ou da conjugalidade[3]. O autor a que aqui vamos fazer referência – Jean-Louis Lecuit[4] -  procura desenvolver essa interação numa perspetiva dialógica cuja conceção de opera em torno de um argumento criado pelo próprio: “como o locutor no interlocutor”. Trata-se de um conceito que parte da revelação de Deus como Palavra, e da interiorização da Palavra como presença criadora de uma nova situação relacional.

Um exemplo quotidiano ilustra perfeitamente o conceito desenvolvido “como o locutor no interlocutor”[5], como a inabitação de um outro, ou a interiorização de uma presença. As expressões traduzem a nova relação pessoal criada por Deus dentro de mim mesmo e que significa uma mudança na forma de me relacionar e de ver a vida. A chamada de um amigo por exemplo não traz consigo apenas um conjunto de palavras ou de informações com alguma importância para mim, sobretudo carregam nelas a auto entrega de uma pessoa e a promessa de permanência junto de mim; essa chamada é criadora de relação pessoal interior, diz J-B. Lecuit. A palavra pronunciada por um homem que diz “amo-te” traz com ela o significado de toda uma pessoa, de uma vida, que é auto doação e promessa de si mesma a uma outra pessoa; e esse “amo-te” vai causar de tal ordem um impacto transformante que a pessoa que o disse passa a estar-nela, a ser-nela. Um último exemplo pode ser o de um pai que diz “meu filho”, e que nessa palavra se exprime todo como auto comunicador e gerador de vida e de relação; a palavra não é indiferente mas gera um espaço de relação e de sentido que o pai ‘demora’, ‘permanece’ no filho. De facto, há palavras verdadeiramente marcantes e que ficam impressas na alma a ponto de iniciarem processos novos de transformação relacional. São palavras efetivas, verdadeiramente atuantes, no sentido de serem atos da presença estruturante, constituinte, de um sujeito. Há realmente pessoas nas nossas vidas que numa palavra disseram tudo aquilo que são para nós e que com essa palavra nos fizeram como pessoas. De facto, “a doação da palavra tem a densidade da entrega pessoal de si ao outro”[6].

Antecipamos a dificuldade de aplicar a ‘analogia da revelação de nós mesmos na palavra’ à graça de Deus que se entrega ao homem. Como é que Deus numa palavra se pode dar a si mesmo como graça à alma humana? Como é que Deus que é Pai pode pronunciar uma palavra que atravesse todo o meu ser[7]? Encontrei a resposta na própria experiência pessoal de Deus como Pai. A experiência de ter ouvido no primeiro ano de seminário a palavra “tu és meu filho, eu hoje te gerei”, e aquela outra no segundo ano de seminário de ter chamado a Deus de “Pai” pela primeira vez, são revelações de palavra que trazem a auto doação de Deus e a promessa de si próprio, e que fazem recuar o pecado, criando um espaço novo ‘como num templo, para uma presença sobrenatural. Cada um de nós, à sua maneira, pode identificar a forma como Deus se dirigiu numa Palavra que só a si diz respeito, que foi pessoalmente dirigida, e depois acolhida como nova mudança e nova situação. É nessa Palavra “tu és o meu filho”, “eu entrego-me por ti”, “eu amo-te”, “eu compreendo-te”, “eu perdoou-te”, que se efetiva a paternidade divina e a graça da adoção filial. Essa relação filial é a relação que na Escritura melhor expressa a relação de Deus com a criatura. O sumário deste processo da graça na analogia da revelação e da interiorização será de seguida pormenorizado na perspetiva do autor.

1. O conceito da “revelação na palavra” numa perspetiva humana.

Vimos anteriormente como a palavra de um amigo que liga, de um pai que diz “meu filho” ou de um homem que diz “amo-te” traz um conteúdo que é mais importante do que a própria palavra dita: “essa palavra dá a própria pessoa”[8]. Ao dizê-la estou a fazer uma auto entrega de mim mesmo e a prometer-me a mim mesmo ao outro; ao pronunciar uma palavra de vida estou a revelar a minha situação original de subjetividade[9] a mim mesmo e ao outro; por último, estou a fazer uma interpretação da minha existência, uma compreensão de mim mesmo, como existência reportada a alguém, co-implicada, que gera uma pessoa. No fundo, a palavra dita, diz-me[10] ao outro. Se por um lado a palavra dita é uma palavra de vida e uma palavra promitente de mim mesmo ao outro, por outro, é, como vimos em cima, uma palavra geradora de uma nova situação.

A palavra de um homem, de um pai, de um conjugue, de um amigo, que traz consigo a auto comunicação dessa pessoa, cria, no ato de dizer a palavra, uma interiorização – um impacto - de tal ordem que gera um novo tipo de presença da pessoa dentro de nós. Dito doutra forma, essa palavra impactante e transformante gera não apenas uma representação da pessoa por delegação[11] - como se a pessoa fosse interiorizada como um objeto da sensação, da figuração, da imaginação, da memória, etc [12] - mas constitui, enquanto palavra impactante, um ato de nova relação da pessoa. O impacto do ato de palavra como constitutivo de uma pessoa – “como o locutor no interlocutor” – tem um carácter traumático, no sentido de que o outro faz irrupção de tal ordem na minha esfera de consciência, que cria em mim um novo ‘espaço pessoal de linguagem’[13]. Por espaço pessoal de linguagem entende-se o quanto uma nova relação de vida provoca uma nova significação, uma nova definição e uma nova linguagem, que não é apenas uma nova consciencialização de si, mas a própria constituição do sujeito como uma pessoa que sabe dizer-se de uma forma nova[14].

2. O conceito da “revelação na palavra” como analogia para uma teologia da graça.

2.1 Fundamento bíblico.

Procuremos finalmente aplicar o conceito de auto doação do ‘locutor no interlocutor’ ao processo de justificação, santificação e inabitação trinitária. “O coração da analogia é que Deus habita na pessoa justificada como um locutor de um ato de palavra de auto doação no seu interlocutor, e, ainda mais profundamente, que se dá para ser acolhido e respondido”[15] . Na tradição bíblica, Deus revela-se como Palavra para os homens. A Palavra, o Verbo, o Logos, é o Filho eterno de Deus, “o esplendor da sua glória e a expressão da sua substância” (Heb 1,3). Deus expressa-se no Verbo, todo o seu ser é dito no Filho, todo o seu ser é atuado no Filho – como se a mente de Deus se derramasse no pensamento do Filho, ou como se o pensamento de Deus se resumisse no razão do Filho. S. João reflete esta corelação Pai-Filho dizendo no prólogo que o Verbo estava voltado para Deus (Jo 1,1). Depois, S. João afirmará que “o Verbo fez-se carne” (Jo 1,4), querendo assim dizer que Deus diz a Palavra única em Jesus de Nazaré, nEle diz-se a si próprio, interpreta-se a si próprio e manifesta-se a si próprio.

S. João lança a sua primeira carta dizendo que “o que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós” (1Jo 1,1-3). O apóstolo anuncia-nos desta forma que Deus continua a manifestar a sua Palavra ao mundo, a auto doar-se e a prometer-se a si mesmo na Palavra única ao mundo[16]. De facto, Deus disse-se em Jesus e continua a dizer-se ao mundo em Jesus ressuscitado, conforme a passagem da oração sacerdotal no Evangelho de S. João que afirma “agora sabem que tudo quanto me deste vem de ti, porque as palavras que me deste, a eles as dei. E eles receberam-nas, souberam verdadeiramente que saí de ti e acreditaram que Tu me enviaste. (…) Não peço apenas por estes, mas também por aqueles que acreditam em mim, por meio da sua palavra: para que todos sejam um só” (Jo 17,6-8;20-21). Verdadeiramente Deus continua a falar em Cristo.

2.2 Efetivação da paternidade divina

Vimos que o Pai diz para todo o sempre uma Palavra única às pessoas. Ao dizer em Jesus “tu és o meu filho”, “eu entrego-me por ti”, “eu amo-te”, “eu compreendo-te”, “eu perdoou-te”, Ele pode criar uma relação nova com cada pessoa. O Pai diz a Palavra impactante que gera a adoção filial, a maneira relacional que Ele é de ser Pai gerador de filhos; Deus é Pai e nós somos seus filhos porque Ele coloca dentro de nós uma nova Palavra criadora de uma nova situação de vida: “a adoção filial não é outra coisa que a doação do Filho interiorizado em nós pelo Espírito Santo”[17]. Ou seja, numa Palavra que nos diz respeito e que nos seja pessoalmente dirigida, que possa ser pronunciada por meio do evangelho, do kérigma (anúncio), da catequese, dos sacramentos, das pessoas e das circunstâncias da nossa vida, Deus concede-se e promete-se a Ele próprio como dom; de modo particular, Deus concede-se e promete-se a Ele próprio como dom no Espírito Santo. Na verdade, se num primeiro momento o Espírito que procede do Pai é o veículo que transporta a Palavra até nós, num segundo momento, o Espírito é o conteúdo que a Palavra tem para entregar. Assim, a Palavra pronunciada cria no homem a possibilidade de entregar e prometer o seu conteúdo de amor, que é o Espírito Santo. A Palavra anuncia o amor, o Espírito Santo, que vai atuar como preparação, escuta e disponibilidade, num primeiro momento; ou, como dizemos na linguagem tradicional da escolástica, como graça atual, graça operante e cooperante, ou graça da primeira justificação.

Vimos como a Palavra pronunciada pode criar dentro da alma o impacto de uma palavra transformante “tu és o meu filho muito amado” ou “amo-te”. O impacto dessa Palavra interiorizada não cria apenas uma imagem, uma figura, um traço, nem é apenas uma consciencialização ou uma interiorização de algo que é exterior a nós. A Palavra pronunciada é acolhida de tal forma que está em mim, é em mim, a ponto de eu me dizer nela, ou de me expressar nela. Recordemos que o impacto de uma palavra de vida gera uma interiorização de tal ordem que cria uma nova relação pessoal; ou, por outras palavras, mete dentro de nós a pessoa amada, a pessoa que nos constitui, que nos transforma, como “o locutor no interlocutor”. A referência à hora do encontro entre Jesus e os dois discípulos André e João – “era por volta das quatro horas da tarde” (Jo 1,39) – ilustra bem o impacto da receção da Palavra como constituição de um ‘novo espaço de linguagem’, de uma nova significação da vida, caracterizada como transformação interior. Note-se que essa transformação interior é sobrenatural no sentido em que na proclamação da palavra impactante é o próprio Espírito Santo que se entrega e se promete. A este respeito diz o autor que “trata-se da entrega pessoal e interveniente de um ser pessoal no outro, ainda que ele permaneça radicalmente transcendente”[18]. Quer dizer que é de facto o Espírito Santo que está na alma, mas num outro modo de presença invisível, e atuando como reconhecimento do pecado e reconhecimento da filiação. Há claramente nesta expressão analógica uma referência à graça santificante por meio da qual o Espírito Santo, graça incriada, desce às faculdades da alma, e opera com a sua presença no ato de querer e de conhecer, a justificação, a santificação e a inabitação trinitária. Há ainda uma clara referência ao carácter sobrenatural da própria transformação interior. Assim como na escolástica a nova presença do Espírito Santo como Amor imprime na alma uma semelhança sobrenatural, por meio da qual a alma procura amar e conhecer cada vez mais o seu objeto semelhante sobrenatural, assim também a representação da Palavra na alma, palavra transforma a minha vida, possibilita que a procure cada vez mais. Desta forma, o ‘locutor dentro do interlocutor’ torna-se Ele próprio o fundamento das virtudes infusas da fé, da esperança e da caridade, dos outros dons espirituais e dos dons carismáticos.

2.3 A reciprocidade da resposta

Finalmente, Aquele que diz a Palavra é dentro do interlocutor um ser de diálogo. Na realidade, a permanência do Espírito na alma fará com que a resposta do interlocutor seja uma resposta com o Espírito. Com efeito, a presença da Palavra de vida é de tal forma estruturante da nova condição existencial que é nEle que eu digo, que eu me expresso e que eu ajo; a auto doação das pessoas divinas como nova relação possibilita que a resposta seja uma doação recíproca, de tal modo que é na sua palavra, no seu dom e na sua promessa, que diz Abbá, Pai (Rom 8,15).  

 

São João, Matthias Stomer, 1639.



[1] O IV Concílio de Latrão (1215) afirmou que “por maior que seja a semelhança entre Criador e criatura, deve notar-se uma maior dissemelhança entre ela”, definindo o conceito de analogia (p. 156).

[2] p. 154.

[3] Mühlen, Flick, Alszeghy.

[4] Jean-Baptiste Lecuit, Quand Dieu habite en l'homme. Pour une approche dialogale de l'inhabitation trinitaire, Paris, Éditions du Cerf, coll. « Cogitation Fidei », 271, 2010.

[5] O conceito é do próprio autor que significa “uma inabitação do outro em mim” (p. 126). O autor não quer utilizar esta última expressão para guardar o conceito ‘inhabitação’ para a presença de Deus em nós.

[6] p. 104.

[7] Citação de K. Rahner, Jean-Baptiste Lecuit, p. 131. “Père, tu as pronnocé ta parole a travers mon être”.

[8] Jean-Baptiste Lecuit, p. 99.

[9] Jean-Baptiste Lecuit, p. 103. “Situação original de subjetividade transcendental”.

[10] O autor nota que “se a palavra éur reconheço-te como meu filho’ não tiver jamais sido explicitamente declarada , ela diz-se no conjunto dos atos, sem os quais ela não poderia dizer nada” (p. 118).

[11] P. 113.

[12] Nós temos muitas representações das pessoas na mente que são impressões sensoriais, experiências afetivas, lembranças biográficas, mas que são representações por delegação no dizer do autor, ou seja, nunca criaram um impacto transformante, afetivo e constante em nós. No fundo, nunca criaram uma mudança interior.

[13] Jean-Baptiste Lecuit, p. 115.

[14] Jean-Baptiste Lecuit, p. 115-119.

[15] Jean-Baptiste Lecuit, p. 131.

[16] S. João da Cruz dirá a este respeito “fixa os olhos somente nEle, porque foi nEle que restringi todas as coisas: nEle eu disse tudo e reveli tudo. Tu encontrarás nEle mais do que tu possas desejar e pedri. Tu pedes uma palavra, uma revelação, uma visão parcial: se prenderes os olhos nEle, tu encontrarás tudo Nele. Ele é toda a minha palavra, toda a minha resposta, ele é toda a minha visão e toda a minha revelação. Eu tudo vos respondi, tudo disse e tudo manifestei, tudo revelei, dando-vos por irmão, por companheiro, por mestre, por herança, por palavra e por recompensa” S. João da Cruz, A subida do Carmelo, Livro II, cap, XXII, n.4, citado na p. 136.

 

[17] Jean-Baptiste Lecuit, p. 137.

[18] Jean-Baptiste Lecuit, p. 157.