Espero
receber-Te neste Natal
Nesta
segunda meditação de advento gostaria de dizer como Deus se revela numa Palavra;
gostaria de falar do mistério de Deus que continua a revelar-se na Palavra que nos
sustém e nos recria. Todos nós fizemos a experiência de que certas pessoas nos
disseram tudo numa palavra; e fazemos também a experiência do poder criador da palavra.
Há palavras verdadeiramente transformantes que ficam dentro de nós; ou melhor,
que nos trazem a vida, a vida de uma pessoa como entrega e promessa. Um amigo
que nos liga não dá apenas informações mas dá-se a ele próprio; um pai que diz
“meu filho” manifesta na palavra uma vida totalmente entregue e prometida; um
homem que diz “amo-te” entrega-se e promete-se nessa palavra, etc. Poderíamos
estender os exemplos a muitas situações que causam o impacto de uma
transformação, de uma mudança interior, ou de uma nova relação pessoal. Deus
revela-se na palavra da mesma maneira; ao dizer uma palavra no evangelho, no
kérigma, nos sacramentos da Igreja, na vida dos irmãos e das circunstâncias da
vida, Ele dá-se. Quando Deus fala, Deus diz-se; quando Deus se dá, Deus promete-se,
a si próprio. Deus não diz uma palavra que tenha uma mensagem, uma informação,
uma orientação; na sua palavra, Deus não vai dizer-te qual o caminho a seguir,
se estás bem ou se estás mal, se deves fazer isto ou fazer aquilo. Quer dizer,
Deus não vai acrescentar absolutamente nada àquilo que já disse em Seu Filho
Jesus Cristo Nosso Senhor. Quando Deus se revelar na palavra deste Natal não
vai trazer soluções para nada nem ninguém. Vai dizer uma palavra e isso nos
basta. S. João da Cruz diz a este respeito: “fixa
os olhos somente nEle, porque foi nEle que restringi todas as coisas: nEle eu
disse tudo e revelei tudo. Tu encontrarás nEle mais do que tu possas desejar e
pedir. Tu pedes uma palavra, uma revelação, uma visão parcial: se prenderes os
olhos nEle, tu encontrarás tudo Nele. Ele é toda a minha palavra, toda a minha
resposta, ele é toda a minha visão e toda a minha revelação. Eu tudo vos
respondi, tudo disse e tudo manifestei, tudo revelei, dando-vos por irmão, por
companheiro, por mestre, por herança, por palavra e por recompensa” (S. João da
Cruz, A subida do Carmelo, Livro II, cap, XXII, n.4).
Lembro-me perfeitamente de como Deus se me disse numa
palavra. Lembro-me ainda hoje do impacto que criou em mim no primeiro ano do
seminário a proclamação da palavra “tu és o meu filho, eu hoje te gerei”; ou o
estremecimento de ter chamado a Deus de “Pai” pela primeira vez no segundo ano
de seminário; ou o momento em que foi pronunciada a palavra da oração consecratória
“constitui este vosso servo na dignidade de presbítero, renovai em seu coração
o Espírito de santidade (…)”. Verdadeiramente, uma palavra traz uma pessoa
divina que se entrega e se promete; numa palavra a pessoa não fica aquém e a
palavra além; pessoa e palavra são o mesmo e ficam o mesmo dentro de nós. Foi
essa a experiência do centurião de Cafarnaúm quando disse “Senhor, diz uma só
palavra e o meu servo será salvo” (Mt 8,8). Ainda que a vida esteja cheia de
contradições entre a existência e a palavra, entre a existência e uma missa,
Deus continuar a revelar-se na palavra; faço essa experiência da revelação da
palavra na eucaristia, na escritura, nas aulas, na escuta das pessoas; quando
me sentei por aqui a ouvir as histórias da JMJ há uma palavra que salta para
mim, que me diz respeito e que me toca pessoalmente. Ainda agora um pastor
evangélico sentou-se ao meu lado e a palavra foi como que uma revelação. A
palavra dos irmãos é como que uma revelação. A palavra fez um caminho
extraordinário: ela foi pronunciada, criou impacto, foi interiorizada,
convenceu do pecado, fez voltar para Cristo, fez voltar a chamar Pai e
reconhecer-me como Filho. Este percurso da palavra é o percurso da graça! É o
mesmo percurso da graça! Basta recordar Isaías para perceber o percurso: “tal como
a chuva, tal como a neve, desce dos céus e não volta para lá sem ter irrigado a
terra, sem a ter fecundado e feito produzir, de modo a dar semente para aquele
que semeia e pão para aquele que come, assim é a minha palavra, quando sai da
minha boca: não volta para mim em vão sem ter feito aquilo que Eu quis e sem
realizar com êxito aquilo para que a enviei” (Is 55,10-11). Nós, os cristãos,
leigos, consagrados, padres, somos umas testemunhas privilegiadas de que Deus
se continua a revelar na palavra, por ela mudando vidas e situações interiores,
de uma forma fundamental. Somos testemunhas da eficácia da palavra,
observadores da força da palavra.
Neste Natal vamos ouvir algumas leituras sobre a Palavra,
sobretudo na leitura do prólogo do evangelho de S. João – que será o evangelho
do dia de Natal - e a leitura do prólogo da primeira carta de S. João – que
será a primeira leitura do terceiro dia da oitava do Natal, o dia do apóstolo
S. João. S. João é o apóstolo e o evangelista do testemunho de Jesus de Nazaré,
o Verbo de Deus encarnado: Jesus
veio dar o testemunho da verdade (Jo 3, 11; 3,32; 18,37) veio dar testemunho
por meio das obras de que o Pai o enviou, e do que viu e ouviu a seu Pai (Jo
5,36; 7,7; 10,25); Ele é de facto a testemunha fiel (Ap 1,5). O próprio
evangelho de S. João descreve por várias vezes João batista como a testemunha
da luz que havia de vir (Jo 1,7; 3,26; 5,33). Por fim, falará dos crentes como as
testemunhas de verdade.
Escutemos o prólogo do evangelho de S. João (Jo 1,1-18)
“No
princípio era a Palavra e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era
Deus. Ela estava, no princípio, junto de Deus. Por meio dela todas as
coisas surgiram, e sem ela nem uma só coisa do que existe surgiu. Nela
estava a vida e a vida era a luz dos homens; a luz brilha nas trevas e as
trevas não se apoderaram dela.
Surgiu
um homem, enviado por Deus: o seu nome era João. Ele veio para um
testemunho: para dar testemunho da luz, para que todos, por meio dele,
acreditassem. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.
A
Palavra era a luz verdadeira, que ilumina todo o homem que vem ao
mundo. Estava no mundo e o mundo por meio dela surgiu; mas o
mundo não a conheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não a
acolheram. Mas a todos quantos a receberam deu-lhes poder de se tornarem
filhos de Deus: àqueles que acreditam no seu nome. Estes não nasceram do
sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
E
a Palavra fez-se carne: estabeleceu a tenda entre nós e contemplámos
a sua glória; glória como unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade"».
Escutemos também o prólogo da primeira carta de S. João (1Jo
1,1-4):
“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o
que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram, no
que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos. Pois a vida
manifestou-se, nós vimo-la e disso damos testemunho: anunciamos-vos a vida
eterna, que estava junto do Pai e que se manifestou a nós, que vimos e ouvimos
é, pois, o que também vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão
connosco.”
Um dos aspetos que mais chama a minha atenção neste evangelho
e nesta carta é que em ambas somos chamados à contemplação do mistério de Deus
que se fez homem por amor de nós: “nós contemplámos a sua glória; glória como unigénito do Pai, cheio de
graça e de verdade” e “o que vimos com os nossos
olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram (…)”. Contemplar quer dizer observar fixamente, olhar
com muita atenção. A contemplação é o fruto da intimidade, é o efeito da união com
Deus; é gustatio, é fruitio… Na experiência prática traduz-se como espanto pelo
mistério, admiração pela humildade de Deus, assombro pelo kenose do Verbo. Mas
muitas das nossas experiências sensíveis de Natal poderão não ser contemplação
verdadeira. Em todos os natais experimentamos uma espécie de espanto, de
estupefação, pela grandeza do mistério, e também pela beleza da liturgia, do
presépio, do cântico; concebemos a contemplação habitualmente como uma espécie
de experiência estética. A mim faz-me lembrar as muitas noites de Natal que
entrei na Igreja paroquial às duas ou três da manhã para contemplar o estado de
beleza e de esplendor onde acabámos de celebrar os mistérios de Deus... Isso
não é contemplação, é admiração; e também não é fruição, é prazer! A contemplação
da glória de Deus é a resposta a quem se revelou numa palavra que faz sentido,
que mudou qualquer coisa de essencial e que ainda hoje faz sentido! Apresente-vos
desta forma o risco do Natal. Trata-se do risco de admirar a estética do natal,
do presépio, dos arranjos, dos cantos, da liturgia, sem esperar a revelação de
Deus numa palavra. Os nossos sentidos estão orientados para admirar no tempo do
natal: admirar o pensamento de Deus e a lógica da encarnação, ver as coisas
bonitas que conseguimos fazer, sentir a alegria e a comunhão dos irmãos. Mas a
palavra precede o pensamento e os sentidos, a palavra é anterior a todas essas
coisas. Não é a Quaresma que é o tempo da palavra; é o Natal que é o tempo da
revelação da Palavra.
Mas o mistério do Natal é um mistério de proclamação de uma
palavra de vida, é o mistério do pronunciamento da única Palavra de vida: “tu
és o meu filho, eu hoje te gerei”. Neste tempo, na liturgia da Igreja, na
reunião das famílias, nos encontros que vamos ter, Deus continua a pronunciar,
a revelar, a sua palavra única a cada um de nós. O prólogo do evangelho depois
de sublinhar o testemunho de João - Ele veio para um testemunho: para dar testemunho da luz (…) – afirma com toda a clareza que Jesus é a Palavra que ilumina todo o homem que vem ao mundo
(…). Também a epístola de S. João confessa a revelação da vida eterna,
que estava junto do Pai e que se manifestou a nós. O prólogo do
evangelho de S. João fala também dos crentes como as testemunhas de verdade: todos quantos a receberam deu-lhes poder de
se tornarem filhos de Deus; àqueles que acreditam no seu nome deu-lhes o poder
de se tornarem filhos de Deus. E também o prólogo da primeira epístola nos
diz que o
que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas
mãos tocaram, no que respeita à Palavra da vida: é isso que vos anunciamos.
Neste Natal não somos apenas convidados a uma experiência
estética e sensível de admiração e de espanto pelo nascimento do Verbo de Deus
na nossa natureza humana. Somos convidados a esperar a sua vinda numa palavra
que nos traz Ele mesmo e a sua promessa. Ele mesmo e a sua promessa não fora
mas dentro de nós.
Espero
que me convenças do pecado!
No
início desta pequena recoleção, escolhi, por ser sexta-feira, o tema do pecado,
e isso vai dar ideia de que estamos na Quaresma e não no Natal! Fiz essa
escolha porque não dá para esperar Jesus com o coração ocupado com muitas
coisas; é preciso fazê-las recuar para que a espera e o acolhimento da Palavra
eternamente pronunciada possa acontecer. Proponho por isso uma espécie de
meditação quaresmal de inverno, e, para a primeira meditação, proponho o texto
de Jo, 5,1-10. Jesus, numa das festas dos judeus, sobe a Jerusalém, e perto da
porta das ovelhas, entra na piscina de Bethesda, onde jaz uma multidão de
enfermos, cegos, coxos, impotentes, que esperavam a ondulação da água.
Escutemos o texto: “Estava ali um homem
enfermo há trinta e oito anos. Vendo-o estendido e tomando conta de que ele
estava naquele estado há tanto tempo, diz-lhe: “queres curar-te?”. O homem
responde-lhe: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina quando a água é
agitada, e no tempo em que é, um outro avança antes de mim”. A narrativa
teológica de S. João liga-nos ao livro do Deuteronómio, no capítulo 1, quando
Moisés recebe a instrução do Senhor: “já
permanecestes muito tempo nesta montanha. Voltai-vos e parti; e entrai na na
Arabá, na montanha e na planície costeira, no Négueb e na beira do mar, a terra
dos cananeus e o Líbano e até ao grande rio, o rio Eufrates. (…) Entrai e tomai
posse da terra que o SENHOR jurou aos vossos pais, Abraão, Isaac e Jacob”
(Dt 1,6-8). Mas eles, sem conhecimento de Deus, reuniram doze homens das 12
tribos de Israel e foram explorar previamente essa terra prometida. Trouxeram
os frutos da terra e com eles o pavor dos ‘homens de grande estatura, dos altos
dignatários e das cidades bem organizadas’ que estavam do lado de lá. Por não
terem escutado a voz de Deus e por terem estabelecido o que deviam fazer, sem o
seu Senhor, nenhum deles atravessou da montanha do Horeb: “o SENHOR ouviu o rumor das vossas palavras, encolerizou-se e jurou,
dizendo: “Nem sequer um dos homens desta geração perversa verá a terra boa que
jurei dar aos vossos pais (…) Foram trinta e oito anos – narra Moisés no
Livro do Deuteronómio - aqueles em que
caminhámos desde Cadés-Barnea até atravessarmos a torrente de Zéred, até
desaparecer toda a geração de homens de guerra do meio do acampamento, conforme
o Senhor lhes tinha prometido com juramento” (Dt2,14-16).
Israel
ficaria entre Cardés e Arnon trinta e oito anos, na terra estrangeira do Seïn e
de Moab, comprando a comida e a bebida ao preço da prata. Israel tinha-se
tornado impotente. O meu olhar prende-se com atenção ao estado em que ficou o
povo de Israel, privado de Deus e ferido na sua realização como povo. Foram
estes os dois bens – o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob e a identidade como
povo da aliança – que Israel perdeu. Ficou privado de Deus e agora encontra-se
sem o favor do Senhor, sem o seu poder, sem a sua glória, sem a sua presença, a
sua luz, os seus dons e os seus carismas. Sem Deus, Israel ficou privado da
graça... Mas ficou também ferido na sua própria essência de povo eleito, de
povo da promessa, porque encontra-se agora enfraquecido, impotente e bloqueado.
Israel deixou de ser uma possibilidade, um projeto de realização. Israel não
existe…
O
homem que encontramos enfermo na piscina de Bethesda está na mesma situação de
Israel. É um enfermo destinado à morte se ninguém lhe pegar. Também ele está
privado de Deus e da sua graça; já não tem vocação, nem religião, nem dons nem
carisma. E também está ferido na sua realização pessoal de tal forma que é
incapaz de fazer alguma coisa por si; não tem beleza nem aspeto de homem, já não
pede nada, nem sequer ajuda a Jesus. Ele murmura: “Senhor, não tenho ninguém
que me leve à piscina, e quando tento já outros lá chegaram”. Assim, como a
terra da promessa estava à frente do povo de Israel, assim Jesus está mesmo à
frente do enfermo. À privação da intimidade com Deus, e à ferida na possibilidade
da felicidade, a S. Tomás de Aquino chama de efeitos do pecado mortal.
São duas ordens diferentes de afetação – uma é espiritual e a outra humana –
que ficam diminuídas na escolha errada que uma pessoa possa fazer; a privação
não é infligida por Deus nem a ferida infligida por um outro: eu tomei decisões
erradas que trouxeram consequências que podia prever. Mais do que uma coisa ou
do que um ato, o pecado é uma não resposta a Deus e ao próximo, é uma interrupção
do diálogo, ou melhor, é um ficar a falar sozinho, e que acaba por gerar
ruturas muito sérias e muito profundas na vida – a rutura com Deus, com o meu
próximo e com a minha humanidade.
S. Tomás de
Aquino, ao falar do pecado mortal, toma a passagem de Lucas que diz “um homem
descia de Jerusalém para Jericó” (I-II,q.85,a.1). O viajante da parábola deixa
o caminho da cidade santa de Jerusalém, a sua mulher e os seus amigos, para ir
para a cidade licenciosa de Jericó. “Um homem descia de Jerusalém para Jericó e
caiu nas mãos de salteadores que, depois de o despirem e lhe baterem, se foram
embora, deixando-o meio morto”
(Lc 10,30). Diz S. Tomás que esse homem ficou
despido, “privado” da graça, das virtudes da fé, da esperança, da caridade,
dons espirituais e dos carismas de Deus; e foi deixado quase morto, que
significa, ter sido deixado “ferido” na sua natureza humana, diminuído na sua
iniciativa, na sua liberdade, na possibilidade de se levantar. Nós conhecemos
uma outra parábola de S. Lucas – a parábola do filho pródigo – que pode ajudar-nos
a compreender melhor os efeitos das nossas opções erradas: “o filho mais novo, juntando tudo, partiu
para uma região distante e aí esbanjou os seus bens, vivendo
dissolutamente. Depois de ele gastar tudo, surgiu uma grande fome naquela
região, e ele começou a passar privações. Uniu-se, então, a um dos
cidadãos daquela região, que o mandou para os seus campos guardar
porcos. Desejava saciar-se com as bolotas que os porcos comiam, mas
ninguém lhas dava” (Lc 15,13-16). Também nesta passagem se nota como o
filho foi “privado” de todos os bens da família e “ferido” na sua condição de
filho. Ele auto privou-se da presença do pai e auto excluiu-se da sua casa de
família, e ficou auto feriu-se gastando-se e consumindo-se com coisas
medíocres.
O enfermo da
piscina de Betesda, o viajante da parábola e o filho pródigo têm histórias
muito parecidas. Abandonaram a Deus de tal ordem que ficaram impedidos de continuar
por eles próprios o caminho de vida. Não fosse o próprio Jesus a curar o
enfermo de Betesda, não fosse o bom samaritano a passar pelo caminho, e a
memória que o filho ainda tinha da casa, e eles nunca teriam voltado a caminhar.
Os três homens estavam impuros, feridos, sujos; tinham-se distanciado muito da
casa, dos seus amigos e de Deus. Infelizmente, os evangelhos são unânimes no
descrever que ficaram os três no chão: um estendido no catre, outro na estrada
de Jericó, outro no lamaçal dos porcos. Mas, diz Jesus, no princípio não era
assim, e, portanto, se Israel tivesse entrado na terra da promessa, e se o
filho mais novo tivesse permanecido em casa do pai, e se o viajante de Jericó tivesse
peregrinado para à cidade santa de Jerusalém, a alma seria límpida e radiante. S.
Tomás diz, a este propósito, que o pecado – o pecado mortal - imprime uma
mancha ou uma sujidade na alma (I-II,q.86,a.1). De facto, a graça é límpida, é transparente; o pecado é
cegueira, é treva. A graça mete-nos na intimidade com Deus, o pecado faz-nos
abandoná-la. Quando a luz de Deus
brilha na alma, iluminam-se os pensamentos, as escolhas e as ações; tudo ganha
luz! Quando a graça ilumina a alma, sentimos que somos chamados a coisas
maiores do que nós próprios, destinados à união e à glória de Deus. Quando os inquisidores perguntaram a Joana d’Arc
se ela estava em estado de graça, ela respondeu-lhes: “perguntais-me se estou em estado de graça. Bem, se estou, Deus me
guarde. Se não estou, Deus me meta!”.
Sinto muito que neste advento preciso de ser convencido do pecado! A
partir da minha própria experiência, sinto a privação da graça e a ferida da
natureza. Quando alguém afirma uma coisa destas pensamos logo no que é que ele
andou a fazer, nas ações graves que praticou, sobretudo relacionadas com o
sexto mandamento… O papa Francisco diz a respeito desta nossa tendência para
sexualizar tudo que “isso é um pecado, mas não é dos pecados mais graves, porque os pecados da carne não são os mais graves. Os mais graves são aqueles que
têm mais 'angelicalidade': a soberba, o ódio”.
A soberba e o ódio auto privam-nos da intimidade com Deus porque Deus é amor. Às vezes também auto privo-me da união a Deus, na
falta de fé, de esperança e de caridade; na falta de intimidade e de comunhão
com Cristo e com os irmãos; na falta de dom e da generosidade de mim mesmo. Doutras
vezes, sinto também a mancha da alma, a ferida na realização da minha
humanidade, na falta de luz, de entendimento, de ciência, de sabedoria, de
discernimento, de prudência, de justiça, de temperança e de fortaleza. Sinto
neste advento as desculpas que arranjo para não rezar, não ler a escritura, não
meditar, não estar na missa como deveria, os esquemas de desvio, de fuga, de vitimização,
de murmuração de culpabilização, etc. Sinto que a privação de Deus e a
diminuição da nossa alegria e da nossa felicidade se devem muito ao pecado que
habita na nossa carne e no nosso espírito! Elas devem-se às ruturas, aos
abandonos, de agora ou de outrora, de Deus, das pessoas, da nossa vocação
pessoal. A partir de S. Tomás, posso dizer, que a razão fica sem luz e entra a
ignorância do caminho a seguir; a vontade fica sem justiça e entra a malícia
das minhas intenções; o irascível fica sem força e entra a fraqueza; o
concupiscível fica sem temperança e entra a luxúria (I-II,q.85,a.3). Não há
outro caminho para Belém a não ser o convencimento do nosso pecado.
A leitura de uma passagem de S. João diz neste sentido: “é melhor para
vós que Eu parta, pois, se não partir, o Paráclito não virá a vós; mas, se
for, enviá-lo-ei a vós. E, quando Ele vier, denunciará o mundo quanto ao
pecado, quanto à justiça e quanto ao julgamento: quanto ao pecado, porque
não acreditam em mim; quanto à justiça, porque vou para o Pai e já não me
vereis; quanto ao julgamento, porque o Príncipe deste mundo está julgado”
(Jo 16,7-11). Precisamos muito de ser convencidos contra o pecado, precisamos
muito de contemplar a Deus e a sua graça para movermos o nosso espírito contra
o pecado. Com a ajuda de Deus, precisamos de recuar os pecados do espírito – o orgulho (que é o primeiro), a inveja, a ira, a avareza, a acédia
(preguiça), e os pecados dos sentidos a gula e a luxúria – porque todos eles
nos levam a ruturas e a rejeições muito sérias e muito importantes nas nossas
vidas.
Neste quase-termo do advento peçamos a Jesus que venha ter connosco como foi
ter com o enfermo da piscina de Betesda, que faça retirar todo o nosso pecado,
e nos permita reencontrá-lo no templo de Jerusalém que este tempo do Natal: “Jesus
encontrou-o no templo e disse-lhe: «Eis que ficaste são; não peques mais, para
que não te aconteça algo pior” (Jo 5,14). Não é uma ameaça; é uma
exortação! Jesus não quer simplesmente que ele fique mais enfermo do que já
era. Foi uma bela meditação ‘na quaresma de inverno’… ! Libertos assim do
pecado que habita na nossa carne, venha habitar a palavra invisível de Deus!
Les bergers, conduits par l´´etoile, se rendent à Bethléem, Octave Penguilly, 1883. Museu de Orsay.
S. Tomás fala da
rutura das três ordens da nossa vida; Deus, o próximo, o próprio, porque cria aversão a Deus,
rejeição do próximo, remorso no próprio.