quinta-feira, 23 de novembro de 2023

RATZINGER SERÁ UM CLÁSSICO MESMO QUE NÃO SEJA DOUTOR

 

1. Joseph Ratzinger faleceu há quase um ano e a sua obra continua a acompanhar e a iluminar o fio da Tradição e do ensino da Igreja. Tenho dúvida de que alguma vez possa ser proclamado Doutor da Igreja – não me parece sequer haver necessidade disso - mas sinto que se tornará um ‘clássico’, com sabedoria e valor para as gerações futuras. Arrisco a dizer que acontecerá com Ratzinger aquilo que sucedeu com Newman: uma disciplina sobre o seu pensamento, terá a garantia da sala cheia, daqui a cem anos, como acontece com John Henry Newman, 130 anos depois da sua morte.

Os textos de Joseph Ratzinger são habitualmente difíceis por serem muito densos e por terem muitas ideias, mas também por terem argumentos de natureza teológica e filosófica, que habitualmente estão longe do foco e do interesse imediato das pessoas. As ideias sobre a pessoa, a família, o homem, a mulher, o corpo e a vida, passaram com muita facilidade no pontificado de João Paulo II; mas as ideias sobre a razão, a verdade, a palavra, a abertura, a fé, o amor, o valor e a ética, são argumentos muito especulativos para o nosso interesse comum, e muito difíceis de passar no pontificado de Bento XVI. O papa Francisco é mestre na arte de comunicar e de passar ideias muito simples em frases muito curtas. Peter Seewald - penso que autor da biografia mais considerada, reconhece que “a Ratzinger faltava habitualmente a capacidade de fazer passar as suas ideias. Ele tinha qualquer coisa de imperioso dentro da sua argumentação e não apenas dentro da forma”[1]. Penso que genericamente todos conseguimos reconhecer isso.

O presente texto pretende retirar algumas ideias-chave das quatro grandes e badaladas conferências proferidas em Paris, na qualidade de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1983-2005) e de papa Bento XVI (2005-2022). Confesso ter ficado surpreendido com duas descrições na biografia de J. Ratzinger que coloco antes das conferências de Paris, de modo a darem uma luz à grande missão - pesada carga que lhe foi dada, e ao combate que lhe foi exigido. A história de uma pessoa ajuda-nos a perceber as suas ideias, particularmente as descritas nestas quatro conferências.

- A primeira conferência ocorreu em 16 de janeiro de 1983, na Catedral de Notre Dame, com o título “Transmissão da Fé e Fontes da Fé”, (e que foi muito mal recebida nos meios eclesiásticos e nos jornais[2], mas decisiva no debate sobre a transmissão da fé na Igreja);

- A segunda conferência teve lugar a 19 de novembro de 1999, na Sorbonne, com o título “A fé cristã baseia-se no conhecimento, “onde pela primeira vez, depois de tempos imemoriais, um cardeal intervinha em público”[3];

- A terceira, a 8 de abril de 2001, outra vez na Catedral de Notre Dame, no contexto das Catequeses Quaresmais, sob o título “ Que futuro para a Igreja?”; 

- A quarta, e última, a 12 de setembro de 2008, no Collège des Bernardins, num Discurso ao Mundo da Cultura, aquando da sua Visita Apostólica a França, por ocasião dos 150 anos das aparições de Lurdes.

2. Gostaria de dar duas pistas sobre a história pessoal de J. Ratzinger que achei muito interessantes e que, sendo muito descritivas, ajudam a entrever as motivações, os desafios e as opções do autor ao longo da sua vida. O primeiro momento é o dia da defesa da tese de doutoramento, em teologia fundamental[4], a 21 de fevereiro de 1957, quinta-feira; e o segundo é a publicação a 3 de janeiro de 2023, do Testamento espiritual, escrito a 29 de agosto de 2006.

Peter Seewald conta o primeiro momento da seguinte maneira:

- “Nós estamos no grande anfiteatro da Universidade Ludwig-Maximilian (hoje anfiteatro A140). A sala está a estourar. Duzentos estudantes, professores, espectadores, estão presentes. As pessoas trazem trazem trajes e gravatas negras. ‘Circulava um burburinho de que a situação estava tensa’, reportou o historiador da Igreja Georg Schwaiger, presente nesse dia. A tensão sobe assim que o deão da faculdade de teologia entra dentro da sala, seguido dos professores Söhngen e Schmaus, um grande e magro, o outro pequeno e gordo, dois deuses de negro, segundo a sua própria percepção (…) Contrariamente à prática habitual, o assunto da conferência não foi escolhido pelo candidato, mas pelo corpo docente. ‘Eu tinha escolhido um assunto histórico. Normalmente, a faculdade aceita sempre o assunto que foi proposto. Disseram-me então que não seria possível, e que eles gostariam de falar sobre ‘teologia sistemática’. Tinha alguns dias para me preparar e também algumas conferências suplementares a dar em Freising’. A tensão chegou ao cume. ‘Eu sabia que alguns membros da faculdade me escutariam com desconfiança e era no fundo já hostis’ (…), lembra Ratzinger. Reinava um silêncio de morte, logo que o candidato começou a sua exposição de meia-hora (…). Mas uma controvérsia despoleta muito rapidamente, quase a fazer lembrar as disputas medievais. Enquanto director da tese Söhgen põe perguntas normais ao candidato, mas Schmaus interpõe-se imediatamente. Ele quer saber se, para jovem padre, a verdade da revelação é imutável, ou se pode evoluir com a história. Antes mesmo que o candidato abra a boca, o próprio Schmaus dá a resposta: ‘A vossa maneira sujectivista de interpretar a Revelação, gritava ele à maneira de um procurador, não é verdadeiramente católica’. O mentor de Joseph Ratzinger, Söhgen, levantou-se, indignado. O público murmura e aplaude, o candidato mantém-se entre eles, silencioso. É Sohgen contra Schmaus. Joseph não teve mais tempo de intervir. O tempo de exame esgotou-se. A reunião do conselho da faculdade, composto por 15 professores, parece interminável. (…) ‘Eu esperava o pior’ (…). Nós ficámos à janela, conversámos e trememos juntos’, conta Georg. (…) A porta abriu-se com o professor Adolf Ziegler, um historiador da Igreja. Rostos tensos, resposta redentora: consegui.”[5]

A ideia de que a revelação não é um conteúdo, mas uma pessoa, mais a ideia de que a revelação é a ‘fonte’ primeira, e não a bíblia; a ideia de que a revelação é ação divina, e não imobilismo, e de que essa ação se adequa ao sujeito recetor; e a ideia de que Deus, em si e fora de si, é abertura, diálogo e amor, parecia poesia a Schmaus, mas não a J. Ratzinger! (Veremos essa influência direta em textos como a constituição Dei Verbum e o Catecismo da Igreja Católica, em encíclicas como Fides et Ratio e Verbum Domini, e, parece-me, em quase todos os documentos do pontificado de João Paulo II!)

O segundo momento de que gostaria de falar é o da publicação do Testamento espiritual de Bento XVI, a 3-1-2023, depois da sua morte, a 31-12-2022. O pequeno texto espiritual, de apenas duas páginas, dá um estranho destaque à não conformação com os mal entendidos pós conciliares, com o que parecia novidade, e com as ideologias emergentes. Ratzinger, agora Bento XVI, mostra-se lúcido, ágil e combativo:

- “Aquilo que eu disse antes aos meus compatriotas, digo-o agora a todos aqueles que, na Igreja, foram confiados ao meu serviço: permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir! Muitas vezes parece que a ciência — por um lado, as ciências naturais, e por outro a investigação histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) — é capaz de oferecer resultados irrefutáveis, em oposição à fé católica. Vivi as transformações das ciências naturais desde há muito tempo, e pude constatar que, ao contrário, as certezas aparentes contra a fé desapareceram, demonstrando que não eram ciência, mas interpretações filosóficas só aparentemente imputáveis à ciência; assim como, de resto, é no diálogo com as ciências naturais que também a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance das suas afirmações e, portanto, a sua especificidade. Há já sessenta anos que acompanho o caminho da Teologia, em particular das Ciências bíblicas, e com a sucessão das várias gerações vi desabar teses que pareciam inabaláveis, demonstrando que eram simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher, etc.), a geração existencialista (Bultmann, etc.), a geração marxista. Vi e vejo que do emaranhado de hipóteses surgiu e sobressai novamente a sensatez da fé. Jesus Cristo é verdadeiramente o caminho, a verdade e a vida — e a Igreja, com todas as suas insuficiências, é verdadeiramente o seu corpo.”[6]

Do confronto destes dois momentos sobressai a ideia da missão de J. Ratzinger: ‘A verdade é uma pessoa, é pelo amor que chegamos a ela’. E Ratzinger foi ‘Cooperador da Verdade’.

3. Finalmente, as quatro conferências. Delas retiro algumas ideias – separação, método, razão, revelação e pretensão – muito seguidas por Ratzinger. Poderia ter-se optado, por outras também são recorrentes como palavra, abertura, criação, liberdade, Igreja, comunhão, transmissão, fé. Começamos pelas primeiras. 

a) A Separação. Para o cardeal J. Ratzinger, a primeira grande novidade do judaísmo e do cristianismo é a separação entre a natureza de Deus e a natureza do mundo (Cf. Sorbonne, 19.11.2001). Trata-se de uma verdadeira novidade face à identificação de Deus com o mundo, por exemplo, no paganismo e na mitologia. O Judaísmo e o Cristianismo trouxeram um Criador, um ser criado, autónomo, livre. Sucede que a distinção entre Deus e o mundo, e, consequentemente, a distinção entre Deus e o homem, possibilitaram a ‘desobediência’ do homem, como lemos no Génesis. O homem pode tornar-se verdadeiramente ‘independente’ e separado de Deus. Assim,

- “A primazia do reino significa que agora, ultrapassando as fronteiras das religiões e ideologias, todos podem trabalhar por valores do reino como a paz, a justiça, a preservação da criação. Esta tríade de valores é hoje como o ersatz (um sucedâneo) do conceito do deus desaparecido e ao mesmo tempo a fórmula unificadora, (…) Isto parece tentador. Quem não se sentiria obrigado a seguir o objetivo da paz na terra? Quem não precisaria de lutar para que a justiça chegasse (…)? E quem não veria hoje a necessidade de defender a criação contra a destruição moderna? Deus ter-se-ia tornado supérfluo? (…) Mas donde sabemos o que serve à paz? Donde trazemos a medida da justiça? (…) Quem adere a esses valores não pode esconder que eles rapidamente se tornam teatro de ideologias. Os valores não podem substituir a verdade, não podem substituir Deus de quem são uma pálida figura e sem a luz do qual estão mal definidos” (8.4.2001);

- “No mundo da técnica, que é uma criação do homem, já não é o Criador que se pode encontrar, mas o homem que se encontra apenas a ele mesmo. A sua estrutura fundamental de ser ‘fazível’, o modo das suas certezas, é o calculável” (Notre Dame, 8.4.2001);

b) O Método. O sinal mais evidente do homem técnico ‘fazível’ é a aplicação do método científico a todas as realidades humanas. Para J. Ratzinger, o método científico é bom e últil, mas não é um fim em si mesmo, é um meio. Ratzinger é muito sensível, por exemplo, à aplicação unívoca do método histórico-crítico à Sagrada Escritura, não porque ele não seja necessário, mas porque a retira simplesmente do seu contexto narrativo, interpretativo, religioso. Foi isso que veio dizer a 12 de fevereiro de 1983, à Notre Dame:

- Os métodos tornam-se critérios de conteúdo e já não são o seu veículo. (…) O que corresponde à tendência atual de subordinar a verdade à práxis (…). Todos esses fatos contribuíram para estreitar consideravelmente a antropologia: a precedência do método sobre o conteúdo significa predominância da antropologia sobre a teologia (…); declínio da antropologia, por sua vez, trouxe à tona novos centros de gravidade: o reinado da sociologia, ou mesmo o primado da experiência, como novos critérios para a compreensão da fé tradicional. (...) Uma exegese que não vive e não entende mais a Bíblia com o organismo vivo da Igreja torna-se arqueologia: um museu de coisas passadas.”[7] (Notre Dame, 16.01.1983);

c) A Razão. A Revelação. A novidade de J. Ratzinger é a de mostrar a revelação como uma ação e não como uma ideia. O autor pensa a revelação como um dinamismo objectivo que nasce do dinamismo interno de Deus, Pai e Filho e Espírito Santo. Para Ratzinger, Deus é diálogo em si mesmo, e as Pessoas divinas dizem Eu, Tu, Nós. Deus fala e, por isso, revela-se na gramática da criação, da experiência de Israel e da consciência dos homens. Por essa razão, uma das palavras mais repetidas nestes textos do Prefeito da Congregação será a “palavra”. Deus diz-se e nós podemos encontrá-lo na língua que Ele criou[8];

- “Que na origem de todas as coisas deve estar não a irracionalidade, mas a Razão criativa; não o ocaso cego, mas a liberdade. No entanto, apesar de todos os homens saberem de algum modo isto (…), este conhecimento permanece irreal: um Deus só pensado e inventado não é um Deus. Se Ele não se mostra, não chegamos a Ele de forma alguma. A novidade do anúncio cristão é a possibilidade de dizer agora a todos os povos: Ele mostrou-se. Ele em pessoa” (Bernardins, 12.09.2008);

- “A fé cristã apela à inteligência, à transparência da criação para encontrar o seu criador. A religião cristã é uma religião do logos: «No início era o Verbo»” (Notre Dame 8.4.2001);

- “No cristianismo, a racionalidade tornou-se religião e já não o seu adversário. (…)O Cristianismo se entendeu como a vitória da desmitologização, a vitória do conhecimento e com ele da verdade” (Sorbonne, 19.11.1999);

d) A revelação.

- “Só a própria revelação é, estritamente falando, «fonte», uma fonte da qual também se baseia a Escritura” (Notre Dame, 16.01.1983);

- “É por isso que a palavra «revelação» só se aplicava, por um lado, ao único ato para sempre inexprimível em palavras humanas, pelo qual Deus se torna conhecido à sua criatura, e, por outro lado, à recepção pela qual a condescendência divina se torna perceptível ao homem na forma de revelação” (16.01.1983);

- “Mediante a crescente percepção das distintas dimensões do sentido, a Palavra não fica desvalorizada, antes aparece em toda a sua grandeza e dignidade. (...) O cristianismo percebe nas palavras a Palavra, o mesmo Logos, que explica o seu mistério através de tal multiplicidade” (Bernardins, 12.09.2001);

d) A pretensão. A consciência e a clareza da missão da Igreja de anunciar ao mundo a Razão e a Revelação, fazem com que J. Ratzinger reconheça no Cristianismo e, concretamente, na Igreja, a responsabilidade e o encargo de anunciar, propor e não se conformar com nada deste mundo, a que ele dá o nome de “pretensão”. Com a palavra, Ratzinger não quer ser “pretensioso”, no sentido se “sobranceiro”, mas “audacioso”, “desejoso”, no máximo “reivindicativo”!

- “A pretensão do Cristianismo de ser a religio vera seria, portanto, ultrapassada pelo progresso da racionalidade? É forçado a baixar o nível de sua pretensão e se inserir na visão neoplatônica ou budista ou hindu da verdade e do símbolo. (…) É o que se entende quando o Cristianismo, desde o aerópago de São Paulo, se apresenta com a pretensão de ser a religio vera. Isso significa: a fé cristã não se baseia na poesia e na política, essas duas grandes fontes da religião; baseia-se no conhecimento” (Sorbonne, 19.11.1999);

- “É uma missão da Igreja de hoje, relançar o debate sobre a razão da fé ou da desacredito. (…) Lutar pela nova presença da inteligência da fé é a missão urgente da Igreja que vejo para este nosso século. A fé não deve fechar-se em si mesma, na sua própria concha, por uma decisão que já não pode ser justificada, ela não se deve reduzir a uma espécie de sistema de símbolos, e que, em última análise, permaneceria uma escolha acidental entre outras visões da vida e do mundo. (…)  (A Igreja ainda hoje pode apelar à razão, remeter à transparência da criação para encontrar seu espírito criativo? Existe hoje uma versão materialista da teoria da evolução que se apresenta como a última palavra da ciência e que afirma ter, por meio de suas hipóteses, tornado supérfluo o espírito criativo e até mesmo o ter excluído definitivamente” (Notre Dame, 8.4.2001).

 

Os parabéns a quem acompanhou o estudo! Se alguém chegar ao fim diga!! Ratzinger tem um sistema teológico muito bem estruturado na mente e nos escritos. Mas é muito denso e intenso, e apanhar o fio é difícil mas estimulante. Nunca tinha percebido, a não se agora! 



[1] Peter Seewald, p. 252.

[2] O biógrafo oficial Peter Seewald caracteriza a recepção como uma “tempestade de indignação”, em Peter Seewald, Benoît XVI, Tomo 2, Ed. Chora, 2022, p. 219.

 

[3] Peter Seewald, p. 296.

[4] Com o título “A teologia da História em S. Boaventura”,  sob a direção de Gottlieb Söhngen.

[5] Peter Seewald, Benoît XVI, Tomo 1, Ed. Chora, 2022, p. 363-365.

[6] https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/elezione/documents/testamento-spirituale-bxvi.html

[7] Foi “uma tempestade de indignação”, cf. Peter Seewald, Benoît XVI, Tomo 2, Ed. Chora, 2022, p. 219. J. Ratzinger é acusado de propor o Catecismo de Trento como catecismo ideal. Obviamente não era isso que tinha isso mente. 

[8] Uma outra palavra, também muito utilizada nestas conferências, é “abertura”. Em si mesmo, Deus é abertura, é centrífugo, é êxodo e êxtase. A expressão dessa saída é a criação, a redenção e a santificação. O próprio homem tem em si essa abertura à universalidade da razão e de Deus.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário