A ORDENAÇÃO DE HOMENS
Resumo: como a masculinidade de Cristo - impressa como carácter no ministro ordenado, pelo sacramento da ordem - é o meio pelo qual o Senhor fecunda o seio virginal da Igreja, e continua a gerar e alimentar os filhos da Igreja.
INTRODUÇÃO
Com este escrito, pretendo tratar da possibilidade ou não da Igreja católica conferir a ordenação sacerdotal às mulheres. É um tema muito debatido fora da Igreja, entre os seus amigos e no seu próprio seio.
Não queria começar sem dar alguns contextos, sem os quais o argumento ficaria mais pobre. É o contexto da revelação e da fé, o do amor de Jesus e dos apóstolos para com as mulheres, e o da legitimidade da diferença.
O primeiro contexto é o contexto da revelação e o da fé. O ministério ordenado reservado aos homens e a possibilidade ou não de ser conferido às mulheres não podem ser vistos sem o contexto da revelação. Deus revela o seu desígnio e as suas palavras de muitas formas e modos, a começar na criação, no homem e na sua consciência , nos profetas e nas circunstâncias da história, sobretudo em Jesus. Não podemos avaliar o ministério ordenado a partir da sua contingência histórica, isolado do plano de Deus e do mistério de Cristo e da Igreja.
O segundo contexto é o de que Jesus e os apóstolos amavam muito as mulheres! Aliás, Jesus chama os ‘discípulos’ e constitui-os em ‘apóstolos’, rodeado de mulheres, como a Maria Madalena, a Marta e a Maria, a Joana, a Susana, e ‘muitas outras’, a Samaritana, a Cananeia, a Hemorroíssa, a Mulher adúltera. O grupo dos apóstolos, como sabemos, integrou depois Matias e Paulo, o qual escolheu Tito e Timóteo, também rodeados de mulheres, como a Priscila, a Lidia, a Febe, etc. Jesus, Pedro, Francisco, os bispos, têm veneração às mulheres, apreço, não exclusão.
O terceiro contexto é o contexto da legitimidade do diálogo. Nós vivemos, hoje, num contexto plural, em origens, línguas, culturas, religiões e pensamento; neste contexto, preservamos muito a diversidade e, ao mesmo tempo, com contradição, procuramos a uniformidade. É importante reconhecer que a diversidade é o fundamento do diálogo, e que a diferença de tradição é interessante e criativa. Manter a formulação de determinado conteúdo de fé e poder ser reconhecida por isso, faz com que a Igreja não precise de ser igual ao mundo e o mundo igual à Igreja.
O MAGISTÉRIO PONTIFÍCIO
Enumero algumas declarações dos papas a este respeito:
- o papa Pio XII declarou na Encíclica “Sacramentum Ordinis”, 5, que ‘a Igreja não tem qualquer poder sobre a substância dos sacramentos’, apenas na forma da administração dos sacramentos. Pio XII não aborda diretamente a questão da ordenação das mulheres porque a questão não se punha.
- o papa Paulo VI declarou, na “Resposta à carta de Sua Graça, o Rev.do Dr. Coggen”, de 30-11-1975, que ‘a Igreja defende que não é admissível ordenar mulheres para o sacerdócio, por razões verdadeiramente fundamentais’, explicitando-as na Sagrada Escritura, na prática constante das Igrejas do Oriente e do Ocidente, e no magistério vivo, como fazendo parte do ‘plano’ de Deus para a história. Na “Alocução sobre o papel da mulher no desígnio da salvação”, de 15-10-1976, explica que ‘a verdadeira razão é que Cristo, ao dar à Igreja a sua fundamental constituição, a sua antropologia teológica, assim o estabeleceu’.
- o papa Paulo VI deu mandato à Comissão teológica internacional para estudar e redigir a Declaração “Inter Insigniores”, sobre “O lugar da mulher na sociedade moderna e na Igreja”, de 1976, onde se afirma que ‘a Igreja por um motivo de fidelidade ao seu Senhor não se considera apta para admitir as mulheres à ordenação sacerdotal’.
- o papa João Paulo II, na Carta apostólica “Ordinatio sacerdotalis”, de 22-05-1994, no n. 4, escreve: ‘Declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada definitiva por todos os fiéis da Igreja’.
- o papa Francisco na entrevista de 22-11-2022, à agência America Media disse: ‘acho que amputamos o ser da igreja se considerarmos apenas o caminho da dimensão ministerial (ministerialidade). O caminho não é apenas o ministério [ordenado]. A igreja é mulher. A igreja é uma esposa. O princípio petrino é o do ministério. Mas há outro princípio ainda mais importante, sobre o qual não falamos, que é o princípio mariano, que é o princípio da feminilidade na igreja, da mulher na igreja, onde a igreja vê um espelho de si mesma porque ela é uma mulher e uma esposa. Há uma terceira maneira: a maneira administrativa. O caminho ministerial, o caminho eclesial, digamos, Maria, e o caminho administrativo, que não é uma coisa teológica, é algo de administração normal. Portanto, existem três princípios, dois teológicos e um administrativo. O princípio de Petrino, que é a dimensão ministerial, mas a igreja não pode funcionar apenas com essa. O princípio mariano, que é o da igreja conjugal, a igreja como cônjuge, a igreja como mulher. E o princípio administrativo, que não é teológico, mas sim o da administração, sobre o que se faz’.
RAZÕES FUNDAMENTAIS
Do magistério pontifício, podemos retirar algumas razões que sustentam as declarações relativas à ordenação de homens:
- em primeiro lugar, a da Sagrada Escritura, que revela o chamamento que Jesus faz aos ‘discípulos’ e a constituição dos mesmos como ‘apóstolos’;
- em segundo lugar, a prática dos apóstolos e a ‘prática constante’ bimilenar da Igreja do Ocidente e das Igrejas do Oriente, como grande testemunho da igreja universal;
- em terceiro lugar, o magistério ‘vivo’, a interpretação dinâmica e contínua, que, na Igreja, é feito pelo colégio episcopal;
- em quarto lugar, a natureza sacramental, que nos mostra que a economia sacramental está baseada em sinais naturais e em símbolos inscritos na nossa psicologia, precisando o sacerdócio de Cristo de se desempenhar na semelhança natural (Cf. Inter Insigniores):
- em quinto lugar, o ‘plano’, o desígnio ou o ‘mistério’ de Deus, desvelado na criação, na história, em Jesus e na Igreja. Esse plano é o princípio original, que no Génesis se apresenta na forma de um diálogo - e ‘Deus disse, façamos o homem’ -, e que se tornou, na Escritura, um ‘princípio permanente de diálogo’, entre Deus e a Palavra, o Criador e a criação, Adão e Eva, o esposo e a esposa, o rei e a cidade, entre Cristo e a Igreja. Este diálogo dá forma à criação, à economia da salvação e à ‘economia do mistério de Cristo e da Igreja’ (Inter Insigniores). Esta dinâmica da antropologia teológica, de que falava Paulo VI, é a dinâmica de que é feita a Igreja, donde nasce o ministério ordenado e a comunidade dos crentes;
- por último, e na continuidade da dinâmica interna da comunicação na economia da salvação, podemos articular o ‘princípio original da Igreja’ com o ‘princípio profético da Igreja’, que o papa Francisco chama de ‘princípio petrino’ - o principio institucional, mais objectivo, que engloba o contacto directo com Cristo, a compreensão da Sua pessoa e do Seu ministério, e o entendimento da vocação e da missão do grupo dos doze; e de ‘principio mariano’ - que é o ‘princípio profético e carismático’, a dimensão maternal, carismática e criativa da Igreja (1)
QUAL É O MELHOR ARGUMENTO?
Não sei se conseguimos responder a esta pergunta, uma vez que cada um poderia seguir um filão.
Hoje, na mentalidade dos nossos contemporâneos, torna-se mais complexa a dimensão ‘representativa’ - no sentido, de tornar presente Cristo.
No âmbito sacramental, a dúvida dirige-se à forma natural, imagética, iconográfica, do Senhor Jesus se tornar presente à Igreja, e poderia formular-se no raciocínio de que, ‘uma vez que o Senhor se une a todos, pode falar através de todos, poderia também ser representado por todos’.
No fundo, resume-se na expressão de que ‘se todos os crentes agem de alguma forma in persona Christi poderiam também representá-Lo no ministério ordenado’. O raciocínio colhe com facilidade na nossa mentalidade.
No âmbito funcional, a dúvida dirige-se à função desempenhada, e formula-se na afirmação de que ‘as mulheres podem fazer tudo aquilo os homens fazem’. Esta dúvida é legítima, porque ‘objectivamente’ uma mulher pode fazer aquilo que um padre ‘faz’.
Parece-me que integrar a representação sacramental de Cristo na entrega de si à Igreja, na unção do Espírito Santo, na continuidade das outras dinâmicas dialógicas e relacionais, da criação, da antropologia, da revelação e da Igreja, ajudam-nos muito a fundamentar a administração da ordem a homens.
Na verdade, Cristo conforma-se, canaliza-se, por meio do carácter sacramental, à pessoa do ministro, e serve-se dela para continuar a fecundar a esposa, e gerar e alimentar os filhos nascidos do seu ventre virginal. Quero dizer, que a masculinidade de Cristo é eficiente, criativa e dinâmica, e tem de canalizar-se por meio da masculinidade dos seus ministros.
Desta forma, uma perspectiva teológica da ordenação de homens pode começar por considerar a masculinidade de Cristo - continuada na noção do carácter do sacramento da ordem - e, por isso, masculinidade impressa, decalcada, no ministro.
(1) V. Balthasar e J. Ratzinger também elaboram estes dois princípios petrino e mariano, ou petrino e paulino. A relação destes dois princípios - dos dons hierárquicos e dos dons carismáticos, conforme a Lumen Gentium -, visam determinado fim, que é o Corpo eclesial, e operam-se em vista desse fim.
(2) Representativa, mesmo no sentido de ‘tornar presente’.
A 4a RESPOSTA ÀS DUBIA
O papa Francisco respondeu no passado dia 2 de outubro de 2023 às questões - dubia - de cinco cardeais, levantadas no contexto de abertura do Sínodo sobre a comunhão, participação e missão. A 4a questão perguntava diretamente se a teologia da Igreja católica tinha mudado e se poderia conferir a ordenação sacerdotal às mulheres. Elaborava-se da seguinte forma: ‘Também pergunta se o ensino da carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis de São João Paulo II, que ensina, como verdade a ser considerada definitiva, a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, ainda é válido, de modo que esse ensinamento não esteja sujeito a mudanças ou à livre discussão de pastores ou teólogos’
O papa respondeu, ou alguém por ele, de uma forma insólita à 4a questão nos pontos b e c que seguem:
B) Quando São João Paulo II ensinou que se deve afirmar «de forma definitiva» que é impossível conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, ele de forma alguma denegriu as mulheres e conferiu o poder supremo aos homens. São João Paulo II também afirmou outras coisas. Por exemplo, que quando falamos de poder sacerdotal, «estamos no conceito de função, não de dignidade e santidade». (São João Paulo II, Christifideles Laici, 51). Estas são palavras que ainda não recebemos o suficiente. Ele também afirmou claramente que, embora apenas o padre presida à Eucaristia, as tarefas «não dão origem à superioridade de alguns sobre outros» (São João Paulo II, Christifideles laici, nota 190; Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Inter Insigniores, VI). Ele também afirmou que se a função sacerdotal é «hierárquica», não deve ser entendida como uma forma de dominação, mas como «totalmente ordenada à santidade dos membros de Cristo» (São João Paulo II, Mulieris dignitatem, 27). Se não entendermos isso e não tirarmos as consequências práticas dessas distinções, será difícil aceitar que o sacerdócio seja reservado apenas aos homens e não poderemos reconhecer os direitos das mulheres ou a necessidade de elas participarem, de várias maneiras, na conduta da Igreja.
C) Por outro lado, para ser rigoroso, reconhecemos que uma doutrina clara e autoritária sobre a natureza exata de uma «declaração definitiva» ainda não foi elaborada de forma exaustiva. Esta não é uma definição dogmática, no entanto, deve ser aceite por todos. Ninguém pode contradizê-la publicamente e, no entanto, pode ser estudada, como no caso da validade das ordenações na Comunhão Anglicana.
Parece-me uma resposta que não vai de encontro àquilo que foi dito em muitas outras ocasiões pelo papa Francisco.
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