segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A FALTA DE EXERCÍCIO DISSOLVE MUITAS AMIZADES

São Tomas de Aquino, citando Aristóteles, diz que ‘a falta de exercício dissolve muitas amizades’ (Q.53,a.3). Não temos dúvida de que assim é, e de que a falta de encontro diminui a relação, como a falta de trabalho diminui o empenho, ou a falta de estudo tira a capacidade. A falta de exercício do bem leva, de facto, à diminuição e à perda do bem. 

A esta falta, S. Tomás chama de ‘privação’. A privação não existe, não tem realidade; ‘não tem natureza nem essência’, ‘nem forma, nem matéria’, no dizer de Aquino. É ausência, é derrota, é falta de alcance.

Note-se que São Tomás, quando fala de bem e de bondade, não aponta apenas para o que concebemos como bem; o bem é o movimento para a perfeição a que somos chamados e, por isso, é o fim último para que tendemos. ‘O bem é aquilo que leva à perfeição’. 

Deus criou um ecossistema de bem, onde todos os seres tendem para a sua perfeição. Criou seres que não têm conhecimento e apenas tendência natural, como as plantas; com conhecimento sensitivo e apetite natural, como os animais; com conhecimento racional e vontade racional - os seres humanos; com conhecimento espiritual e dileção, como os anjos! 

No universo ordenado, todos os seres tendem para qualquer coisa. A erva tende a crescer, o cordeiro a comer a erva, o leão a caçar o cordeiro, o homem a guardar o leão, o anjo a guardar o homem! Tudo está ordenado convenientemente, conforme o seu bem e a sua finalidade!

O ser humano distingue-se pelo seu intelecto e pela sua vontade, orientados para o conhecimento e para o amor. Maximamente, para o conhecimento e amor de Deus. Somos seres dotados de liberdade, e como tal, de abertura e amplitude, ou do seu contrário, de diminuição e perda do alcance. 

Às vezes, por incapacidade, má formação ou ignorância, não acertamos no bem, e escolhemos um bem aparente, ou errado, que nos leva a agir não conforme àquilo que gostaríamos de ser. Assim, ‘a deficiência do agente produz uma ação deficiente’; e ‘um agente corrompido, deficiente de bem e privado de felicidade produz uma ação corrompida, deficiente de bem e privada de felicidade’. 

A falta de bem é uma privação. ‘O mal é a falta do bem natural’ (Q. 49, a.1).


Segundo São Tomás, o mal é o efeito da ‘desconsideração’ do homem pela sua própria razão, é o efeito da redução do homem às paixões da concupiscência (o desejo, o prazer, o ódio, a aversão) e da irascibilidade (o desespero, a ousadia, o medo, a raiva).  

O mal é a incapacidade de fazer o bem; é incapacidade de estar à altura da condição humana, de realizar-se como tal e de ser feliz. O mal é uma baixeza, uma bestialidade, que faz com que as nossas faculdades humanas se apaguem e se reduzam às faculdades sensitivas. O mal tende à sua própria destruição.

Quando Hanna Arendt falava da ‘banalidade do mal’, e dizia que ‘não eram monstros, mas sujeitos medíocres, que tinham renunciado a pensar’, queria dizer que os oficiais alemães tinham renunciado à sua capacidade de conhecer e à sua vontade de amar. Tinham descido baixo na sua condição humana, a ponto de quererem que os judeus se reconhecessem desprovidos de natureza humana. 

Para todos os casos de guerra, somos seres humanos e seres-capazes-de-sentido. Não brutos. 

Em todos as circunstâncias, precisamos de fazer pequenos movimentos de bem. A falta de exercício torna-nos como os brutos.


quinta-feira, 26 de outubro de 2023

In the Name of God, the Most Merciful, the Most Compassionate


A ideia do texto é mostrar, em primeiro lugar, que já não há dois blocos, e, que, por isso, não pode haver um choque de civilizações; em segundo lugar, mostrar que não podemos tomar o subproduto da facção pelo todo étnico ou religioso; em terceiro, que está em início um movimento de diálogo e de familiaridade entre líderes que se pode estender por vários sectores da sociedade.

Em quarto, escutar alguns discursos do “lado de lá”.

Tive a oportunidade de rezar e de conversar com muçulmanos num grupo chamado Ensemble avec Marie. Foi a primeira vez que aconteceu e fez-me muito bem. 

Fez bem porque permitiu trazer luz ao medo do islamismo crescente, do islamismo político e do choque de civilizações. 

O Hamas, o Hezbollah, a Al-Qaeda, o Daesh, o Boko Haram, e os outros movimentos fundamentalistas, no Médio Oriente, na Península Arábica, no Centro de África e no Paquistão, causam-nos medo, e o recente massacre e brutalidade em Israel, terror. Temos medo, um medo colectivo, de que chegue à Europa, e à nossa terra. 

E é possível que já tenha chegado e que, de qualquer forma, ja nos tenha atingido a todos: ‘antes, a guerra era feita no campo de batalha, entre províncias; depois, passou a ser nacional; posteriormente, em dois grandes blocos (leste/oeste). Hoje, num paradigma global, a guerra é global, aparece inesperada e atinge-nos a todos’. 

Esta parte do discurso do Grande Iman de Al-Azhar, ao papa Francisco, no Bahrein, a 4 de novembro de 2022, mostra-nos que o paradigma da guerra já não é o confronto entre dois blocos oponentes, por exemplo, o mundo cristão versus o mundo islâmico, mas, num paradigma global a guerra global.

Na realidade, assistimos a essa guerra global, por todo o lado, com milícias dentro dos estados e constituições dentro doutras constituições, num movimento global, que é interno ao próprio mundo árabe, tanto como o Hamas, dentro da Autoridade Palestiniana, contra o seu próprio presidente Mahmud Abbas. É por já não haver dois blocos, que não se fala de choque de civilizações. Tudo é global, até a guerra.

E esse paradigma global da guerra chegou até nós. Não é só para evitar a escalada militar que Biden, Macron, e outros, se empenham atualmente em múltiplos esforços de contenção. É também por terem um problema nas suas casas, como vimos nas manifestações pro Palestina. O novo paradigma está perto de nós, pela geografia e pela estimativa de 50 mil fundamentalistas islâmicos residentes na Europa (1), e ainda pela história de atentados em Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Londres. Temos razão para esse medo colectivo.

Se metermos no mesmo saco - coisa que não podemos fazer, e os exemplos servem apenas para ilustrar a preocupação colectiva -, a triplicação de mesquitas e de lugares de culto, de barcos do Mediterrâneo, e de refugiados de todo o lado, a preocupação cresce por as coisas serem muito diferentes de há 20, 40 ou 60 anos.

Se acrescentarmos - para ilustrar ainda a nossa preocupação, que 65% dos estudantes franceses muçulmanos afirmam que as leis da religião são mais importantes do que as leis da Républica (2), e que mais de 40% de adolescentes já se manifestaram no seu estabelecimento de ensino contra alguma forma de descriminação, mais o número de conversões de franceses ao Islamismo, cerca de 4 mil/ano (3), parece haver razões fundamentadas para a desconfiança.

O que se passa é que vivemos num mundo global, com asiáticos, árabes, africanos, sul americanos, europeus, e judeus, por todo o lado, e como nos conhecemos pouco, acabamos por tomar o sub produto ideológico de qualquer facção pelo todo da etnia ou da religião. 

Foi por esta razão que procurei saber quem são os responsáveis do “lado de lá “ e o que dizem os seus interlocutores. Notei, em primeiro lugar, que o terrorismo despontou um conjunto de conexões, congressos e cartas comuns, por todo o mundo árabe, assinadas pelos mais altos responsáveis, sobretudo do mundo sunita. 

São a Mensagem de Amman, de 2004, o Appel e Parole Commune, de 2007, o Centro de Doha, de 2008, o Apelo de Meca, de 2008, o Centro internacional do Rei Aballah, de 2012, os documentos comuns de al Azhar de 2011, 2012 e 2014, a Declaração de Marraquexe, de 2016 (4), a Carta da Fraternidade, de 2019, etc. 

Sobressaiem das cartas e das figuras deste movimento de diálogo inter-religioso, o Papa Francisco e Ahmed al-Tayyed (5), o Grande Iman de al-Azhar e Presidente do Grande Conselho dos Sábios, e a Carta da Fraternidade, assinada por ambos e que faz um caminho de diálogo que já passou pelo Egipto, Emirados e Bahrein.

O Papa e o Brande Iman são responsáveis de um novo passo no diálogo inter-religioso, que é a passagem da diplomacia entre as lideranças à familiaridade dos líderes religiosos. Hoje, a amizade entre os líderes religiosos é tida e desejada como o movimento prévio à familiaridade alargada entre as duas culturas. 

(Seguem-se algumas frases dos discursos do Grand Iman de al-Azhar).



1 https://lesalonbeige.fr/le-nombre-dislamistes-capables-de-passer-a-lacte-est-evalue-dans-lunion-europeenne-a-50-000/

2 Le Figaro, em 17-12-2021

3 Estima-se a conversão de 4 mil franceses ao islamismo e a conversão 400 muçulmanos ao Catolicismo, por ano ( a ‘apostasia’ não é crime em França, mas os convertidos podem ficar interditos de entrarem nos seus países, por exemplo, na Argélia)

4 Os sítios de internet: www.ammanmessage.com; www.acommonworld.com;

5 Ahmed Mohamed el-Tayeb é o imã da Mesquita de al-Azhar e Reitor da Universidade com o mesmo nome , do Cairo, Egito, desde 2010. Possui um doutoramento em filiosofia islâmica pela Universidade Paris-Sorbonne e expressou o seu apoio para uma liga sufista global. Al-Tayeb, que em seu cargo de Grande Ima de al-Azhar é amplamente considerado como a autoridade máxima no mundo muçulmano sunita.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

A REDE 2.0 - O OURO NEGRO E AS MUDANÇAS CULTURAIS DO SÉCULO. XXI

O texto de Renaud Laby afirma o seguinte:

“Os gigantes digitais inscreveram a semelhança social nas estruturas técnicas da máquina para manter o usuário da web online o maior tempo possível para que ele deposite o máximo de dados. Relacionámo-nos, de facto, mais livremente e por mais tempo com aqueles que se parecem connosco. Essa massa de informações rentabilizadas é o combustível, o ouro negro do século XXI. Essa é a economia da web! Graças ao modelo de captação de dados, os grupos que fornecem os serviços mais utilizados online encontram-se no coração da rede e erguem-se em monopólios. GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), mas também NATU (Netflix, Airbnb, Tesla e Uber) são os paradigmáticos.”

Segundo o autor mencionado em cima, que é um padre católico, estudioso dos media e, sobretudo, dos media utilizados pela Igreja católica, a ‘ferramenta’ da internet passou por várias fórmulas de cálculo, parâmetros, de forma a medir, a avaliar, a propor e a induzir. O primeiro parâmetro foi a ‘medida de audiência’ que avaliava a popularidade por meio da contagem de clics; depois, veio a ‘medida da reputação’ que avaliava pela contagem de likes e tweets; hoje, diz R. Laby estamos num


novo paradigma, a que chama a ‘medida preditiva do comportamento’. 

Com a designação ‘medida preditiva do comportamento’, o autor descreve aquilo que hoje todos sentimos, a internet parece conhecer-nos, aos nossos gostos, comportamentos, e vem ao nosso encontro com aquilo de que precisamos. De facto, os traços de comportamento que deixamos em linha - clics, likes, visualização, navegação, localização -, são calculados para probabilizar, recomendar, propor… E assim ficamos mais focados nos nossos interesses e mais tempo nas plataformas.

Isto não é novo, e conhecemos o que está a acontecer. Mas será que traz alguma alteração na recomposição da sociedade e alguma mudança na nossa antropologia? A resposta é afirmativa. Na verdade, ‘as operações informáticas afectam as nossas estratégias cognitivas de pensamento’, na medida em que cada um de nós, na sua singularidade, procura entidades e realidades mais parecidas consigo. Assim, a internet traz-nos

- um mundo mais horizontal, sem instituições de poder ou sequer intermediários, em que tudo, ao estar em pé de igualdade, será hierarquizado segundo a nossa própria escala de valores;

- um mundo mais segmentado, sem percepção da globalidade de pessoas, pensamentos e culturas, que será standardizado de acordo com o próprio interesse;

- um mundo mais agregado num colectivo, numa associação, sem centro, de acordo com a forma de apreciação.

Para o autor, está nova realidade de recomposição da sociedade e do indivíduo, é um novo realismo, um ‘metarealismo’, em que se alterou a 

- a relação com o saber - todas as informações estão disponíveis (mas não existe a capacidade de fazer conexões ou investigação, ou dar significação);

-  a relação com a verdade - todas as notícias podem ser verdadeiras ( tudo aquilo que se encontra na internet, na ‘hyperesfera’’, é acreditado, mais que noutras fontes); 

- a relação com o tempo - tudo é instantâneo (propor processos faseados, processos de aprendizagem, processos de reflexão é um enorme desafio);

- a relacionámo-nos a autoridade - todos os centros de associação não têm um centro comum ( não existe um princípio de referência central; quem tem o poder já não é o responsável político, económico, científico, ou religioso, mas quem tem popularidade, quem cria ‘followers’).

A máxima “medium is message” de Marshall McLuhan, com a qual o autor pretende afirmar que o instrumento acaba torna-se mais performativo e transformador do que a própria mensagem, faz todo o sentido. 

Se o alfabeto, que é uma sucessão linear de letras, palavras e frases, transformou o nosso pensamento nómada num pensamento discursivo, semântico e linear; se a mecânica tipográfica moldou-o num pensamento mecânico, analítico e objectivo… muito mais os utensílios da hyperesfera mudarão a nossa estrutura de pensamento, de coexistência e de visão do mundo.

 ( em formulação)


sábado, 21 de outubro de 2023

A ORDENAÇÃO DE HOMENS

A ORDENAÇÃO DE HOMENS 

Resumo: como a masculinidade de Cristo - impressa como carácter no ministro ordenado, pelo sacramento da ordem - é o meio pelo qual o Senhor fecunda o seio virginal da Igreja, e continua a gerar e alimentar os filhos da Igreja. 

INTRODUÇÃO 

Com este escrito, pretendo tratar da possibilidade ou não da Igreja católica conferir a ordenação sacerdotal às mulheres. É um tema muito debatido fora da Igreja, entre os seus amigos e no seu próprio seio.

Não queria começar sem dar alguns contextos, sem os quais o argumento ficaria mais pobre. É o contexto da revelação e da fé, o do amor de Jesus e dos apóstolos para com as mulheres, e o da legitimidade da diferença.

O primeiro contexto é o contexto da revelação e o da fé. O ministério ordenado reservado aos homens e a possibilidade ou não de ser conferido às mulheres não podem ser vistos sem o contexto da revelação. Deus revela o seu desígnio e as suas palavras de muitas formas e modos, a começar na criação, no homem e na sua consciência , nos profetas e nas circunstâncias da história, sobretudo em Jesus. Não podemos avaliar o ministério ordenado a partir da sua contingência histórica, isolado do plano de Deus e do mistério de Cristo e da Igreja.

O segundo contexto é o de que Jesus e os apóstolos amavam muito as mulheres! Aliás, Jesus chama os ‘discípulos’ e constitui-os em ‘apóstolos’, rodeado de mulheres, como a Maria Madalena, a Marta e a Maria, a Joana, a Susana, e ‘muitas outras’, a Samaritana, a Cananeia, a Hemorroíssa, a Mulher adúltera. O grupo dos apóstolos, como sabemos, integrou depois Matias e Paulo, o qual escolheu Tito e Timóteo, também rodeados de mulheres, como a Priscila, a Lidia, a Febe, etc. Jesus, Pedro, Francisco, os bispos, têm veneração às mulheres, apreço, não exclusão.

O terceiro contexto é o contexto da legitimidade do diálogo. Nós vivemos, hoje, num contexto plural, em origens, línguas, culturas, religiões e pensamento; neste contexto, preservamos muito a diversidade e, ao mesmo tempo, com contradição, procuramos a uniformidade. É importante reconhecer que a diversidade é o fundamento do diálogo, e que a diferença de tradição é interessante e criativa. Manter a formulação de determinado conteúdo de fé e poder ser reconhecida por isso, faz com que a Igreja não precise de ser igual ao mundo e o mundo igual à Igreja. 

O MAGISTÉRIO PONTIFÍCIO 

Enumero algumas declarações dos papas a este respeito:

- o papa Pio XII declarou na Encíclica “Sacramentum Ordinis”, 5, que ‘a Igreja não tem qualquer poder sobre a substância dos sacramentos’, apenas na forma da administração dos sacramentos. Pio XII não aborda diretamente a questão da ordenação das mulheres porque a questão não se punha.

- o papa Paulo VI declarou, na “Resposta à carta de Sua Graça, o Rev.do Dr. Coggen”, de 30-11-1975, que ‘a Igreja defende que não é admissível ordenar mulheres para o sacerdócio, por razões verdadeiramente fundamentais’, explicitando-as na Sagrada Escritura, na prática constante das Igrejas do Oriente e do Ocidente, e no magistério vivo, como fazendo parte do ‘plano’ de Deus para a história. Na “Alocução sobre o papel da mulher no desígnio da salvação”, de 15-10-1976, explica que ‘a verdadeira razão é que Cristo, ao dar à Igreja a sua fundamental constituição, a sua antropologia teológica, assim o estabeleceu’.

- o papa Paulo VI deu mandato à Comissão teológica internacional para estudar e redigir a Declaração “Inter Insigniores”, sobre “O lugar da mulher na sociedade moderna e na Igreja”, de 1976, onde se afirma que ‘a Igreja por um motivo de fidelidade ao seu Senhor não se considera apta para admitir as mulheres à ordenação sacerdotal’. 

- o papa João Paulo II, na Carta apostólica “Ordinatio sacerdotalis”, de 22-05-1994, no n. 4, escreve: ‘Declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada definitiva por todos os fiéis da Igreja’. 

- o papa Francisco na entrevista de 22-11-2022, à agência America Media disse: ‘acho que amputamos o ser da igreja se considerarmos apenas o caminho da dimensão ministerial (ministerialidade). O caminho não é apenas o ministério [ordenado]. A igreja é mulher. A igreja é uma esposa. O princípio petrino é o do ministério. Mas há outro princípio ainda mais importante, sobre o qual não falamos, que é o princípio mariano, que é o princípio da feminilidade na igreja, da mulher na igreja, onde a igreja vê um espelho de si mesma porque ela é uma mulher e uma esposa. Há uma terceira maneira: a maneira administrativa. O caminho ministerial, o caminho eclesial, digamos, Maria, e o caminho administrativo, que não é uma coisa teológica, é algo de administração normal. Portanto, existem três princípios, dois teológicos e um administrativo. O princípio de Petrino, que é a dimensão ministerial, mas a igreja não pode funcionar apenas com essa. O princípio mariano, que é o da igreja conjugal, a igreja como cônjuge, a igreja como mulher. E o princípio administrativo, que não é teológico, mas sim o da administração, sobre o que se faz’.

RAZÕES FUNDAMENTAIS  

Do magistério pontifício, podemos retirar algumas razões que sustentam as declarações relativas à ordenação de homens:

- em primeiro lugar, a da Sagrada Escritura, que revela o chamamento que Jesus faz aos ‘discípulos’ e a constituição dos mesmos como ‘apóstolos’; 

- em segundo lugar, a prática dos apóstolos e a ‘prática constante’ bimilenar da Igreja do Ocidente e das Igrejas do Oriente, como grande testemunho da igreja universal;

- em terceiro lugar, o magistério ‘vivo’, a interpretação dinâmica e contínua, que, na Igreja, é feito pelo colégio episcopal;

- em quarto lugar, a natureza sacramental, que nos mostra que a economia sacramental está baseada em sinais naturais e em símbolos inscritos na nossa psicologia, precisando o sacerdócio de Cristo de se desempenhar na semelhança natural (Cf. Inter Insigniores):

- em quinto lugar, o ‘plano’, o desígnio ou o ‘mistério’ de Deus, desvelado na criação, na história, em Jesus e na Igreja. Esse plano é o princípio original, que no Génesis se apresenta na forma de um diálogo - e ‘Deus disse, façamos o homem’ -, e que se tornou, na Escritura, um ‘princípio permanente de diálogo’, entre Deus e a Palavra, o Criador e a criação, Adão e Eva, o esposo e a esposa, o rei e a cidade, entre Cristo e a Igreja. Este diálogo dá forma à criação, à economia da salvação e à ‘economia do mistério de Cristo e da Igreja’ (Inter Insigniores). Esta dinâmica da antropologia teológica, de que falava Paulo VI, é a dinâmica de que é feita a Igreja, donde nasce o ministério ordenado e a comunidade dos crentes;

- por último, e na continuidade da dinâmica interna da comunicação na economia da salvação, podemos articular o ‘princípio original da Igreja’ com o ‘princípio profético da Igreja’, que o papa Francisco  chama de ‘princípio petrino’ - o principio institucional, mais objectivo, que engloba o contacto directo com Cristo, a compreensão da Sua pessoa e do Seu ministério, e o entendimento da vocação e da missão do grupo dos doze; e de ‘principio mariano’ - que é o ‘princípio profético e carismático’, a dimensão maternal, carismática e criativa da Igreja (1)

         QUAL É O MELHOR ARGUMENTO?

Não sei se conseguimos responder a esta pergunta, uma vez que cada um poderia seguir um filão. 

Hoje, na mentalidade dos nossos contemporâneos, torna-se mais complexa a dimensão ‘representativa’ - no sentido, de tornar presente Cristo.

No âmbito sacramental, a dúvida dirige-se à forma natural, imagética, iconográfica, do Senhor Jesus se tornar presente à Igreja, e poderia formular-se no raciocínio de que, ‘uma vez que o Senhor se une a todos, pode falar através de todos, poderia também ser representado por todos’. 
 
No fundo, resume-se na expressão de que ‘se todos os crentes agem de alguma forma in persona Christi poderiam também representá-Lo no ministério ordenado’. O raciocínio colhe com facilidade na nossa mentalidade. 

No âmbito funcional, a dúvida dirige-se à função desempenhada, e formula-se na afirmação de que ‘as mulheres podem fazer tudo aquilo os homens fazem’. Esta dúvida é legítima, porque ‘objectivamente’ uma mulher pode fazer aquilo que um padre ‘faz’. 

Parece-me que integrar a representação sacramental de Cristo na entrega de si à Igreja, na unção do Espírito Santo, na continuidade das outras dinâmicas dialógicas e relacionais, da criação, da antropologia, da revelação e da Igreja, ajudam-nos muito a fundamentar a administração da ordem a homens. 

Na verdade, Cristo conforma-se, canaliza-se, por meio do carácter sacramental, à pessoa do ministro, e serve-se dela para continuar a fecundar a esposa, e gerar e alimentar os filhos nascidos do seu ventre virginal. Quero dizer, que a masculinidade de Cristo é eficiente, criativa e dinâmica, e tem de canalizar-se por meio da masculinidade dos seus ministros. 

Desta forma, uma perspectiva teológica da ordenação de homens pode começar por considerar a masculinidade de Cristo - continuada na noção do carácter do sacramento da ordem - e, por isso, masculinidade impressa, decalcada, no ministro. 

(1) V. Balthasar e J. Ratzinger também elaboram estes dois princípios petrino e mariano, ou petrino e paulino. A relação destes dois princípios - dos dons hierárquicos e dos dons carismáticos, conforme a Lumen Gentium -, visam determinado fim, que é o Corpo eclesial, e operam-se em vista desse fim. 

(2) Representativa, mesmo no sentido de ‘tornar presente’.

        A 4a RESPOSTA ÀS DUBIA 

O papa Francisco respondeu no passado dia 2 de outubro de 2023 às questões - dubia - de cinco cardeais, levantadas no contexto de abertura do Sínodo sobre a comunhão, participação e missão. A 4a questão perguntava diretamente se a teologia da Igreja católica tinha mudado e se poderia conferir a ordenação sacerdotal às  mulheres. Elaborava-se da seguinte forma: ‘Também pergunta se o ensino da carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis de São João Paulo II, que ensina, como verdade a ser considerada definitiva, a impossibilidade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, ainda é válido, de modo que esse ensinamento não esteja sujeito a mudanças ou à livre discussão de pastores ou teólogos’

O papa respondeu, ou alguém por ele, de uma forma insólita à 4a questão nos pontos b e c que seguem:

B) Quando São João Paulo II ensinou que se deve afirmar «de forma definitiva» que é impossível conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, ele de forma alguma denegriu as mulheres e conferiu o poder supremo aos homens. São João Paulo II também afirmou outras coisas. Por exemplo, que quando falamos de poder sacerdotal, «estamos no conceito de função, não de dignidade e santidade». (São João Paulo II, Christifideles Laici, 51). Estas são palavras que ainda não recebemos o suficiente. Ele também afirmou claramente que, embora apenas o padre presida à Eucaristia, as tarefas «não dão origem à superioridade de alguns sobre outros» (São João Paulo II, Christifideles laici, nota 190; Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Inter Insigniores, VI). Ele também afirmou que se a função sacerdotal é «hierárquica», não deve ser entendida como uma forma de dominação, mas como «totalmente ordenada à santidade dos membros de Cristo» (São João Paulo II, Mulieris dignitatem, 27). Se não entendermos isso e não tirarmos as consequências práticas dessas distinções, será difícil aceitar que o sacerdócio seja reservado apenas aos homens e não poderemos reconhecer os direitos das mulheres ou a necessidade de elas participarem, de várias maneiras, na conduta da Igreja.

C) Por outro lado, para ser rigoroso, reconhecemos que uma doutrina clara e autoritária sobre a natureza exata de uma «declaração definitiva» ainda não foi elaborada de forma exaustiva. Esta não é uma definição dogmática, no entanto, deve ser aceite por todos. Ninguém pode contradizê-la publicamente e, no entanto, pode ser estudada, como no caso da validade das ordenações na Comunhão Anglicana. 

Parece-me uma resposta que não vai de encontro àquilo que foi dito em muitas outras ocasiões pelo papa Francisco. 


 

 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

O DISCURSO DE MARSELHA


O DISCURSO DE MARSELHA 

Escrito a 25-09-2023


O Papa Francisco habituou-nos a determinados slogans, simples e fáceis, que, no fundo, são enumerações de princípios humanos, sociais e eclesiais. Esses slogans são uma espécie de instruções de pilotagem, para abrir caminho à tripulação e dar-lhe andamento. Outros terão de dar contexto, fundamento e desenvolvimento. Essa não é a preocupação do Papa. Ele lidera, outros gerem! 

Por exemplo, com a trinómio ‘Vergonha, Vergonha, Vergonha’, o Papa enumerou o princípio de tolerância 0, acrescentando mais tarde, na conferência de imprensa pós JMJ, que é preciso atenção à especulação dos números. Com o ‘Todos, Todos, Todos’, enumerou o princípio da integração, para dizer, no Bairro da Serafina, que é preciso ver com óculos aquilo que ficou dito. Por fim, com a ‘Igreja sinodal, Sínodo, Sinodalidade’ enumerou o princípio da participação, para adiantar na Praça de S. Pedro, que a Igreja não é um parlamento. 

É preciso ouvir a voz do comando e compreender o que ela quer dizer! 

Sucede o mesmo com o grande discurso de Marselha, na conclusão do III Rencontres Mediterranées, no passado dia 23 de setembro, em que enuncia os princípios de acolhimento e de integração dos migrantes e refugiados. Na ocasião, disse que Marselha é a capital da integração dos povos, e que o Mediterrâneo, como o Mar da Galileia, é a Nova Galileia dos Gentios, um mar de mares e um mosaico multiétnico e multicultural. 

Do discurso o Papa Francisco relevo os três seguintes pontos:

  1. “É preciso recomeçar daqui: do grito muitas vezes silencioso dos últimos” 
  2. “Os migrantes devem ser acolhidos, protegidos ou acompanhados, promovidos e integrados”
  3. “Empenhemo-nos para que quantos fazem parte da sociedade possam tornar-se cidadãos de pleno direito”

O Papa determina três princípios justos, da solicitude universal, da integração, da cidadania. E. Macron disse no dia seguinte, em entrevista, que “o Papa Francisco tem razão. Nós temos de reconhecer que o Papa tem razão. Ele é o Papa e deve enunciar princípios”. 

As reações foram mais que muitas, com a maioria a perguntar pelo direito do país em proteger a fronteira, a segurança e a economia. Li também que “quem chega não tem qualquer direito”! 

Na continuidade do pensamento do Papa João Paulo II, o Papa Bento XVI, na Mensagem para do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, de 2013, declarou o mesmo de Francisco:

  1. “A viagem migratória muitas vezes inicia-se com o medo, sobretudo quando perseguições e violências obrigam a fugir, com o trauma de abandonar os familiares e os bens”
  2. “A Igreja e as diversas realidades que nela se inspiram são chamadas a evitar o risco do mero assistencialismo, procurando favorecer a autêntica integração numa sociedade”
  3. “Os migrantes e refugiados podem experimentar também relações novas e hospitaleiras que os encorajem a contribuir para o bem-estar dos países com suas competências profissionais, o seu património sociocultural e também com o seu testemunho de fé
  4. “É verdade que cada Estado tem o direito de regular os fluxos migratórios e implementar políticas ditadas pelas exigências gerais do bem comum, mas assegurando sempre o respeito pela dignidade de cada pessoa”

O Papa Bento XVI acrescenta a necessidade de regulamentar os fluxos migratórios que não se reduza ao encerramento das fronteiras e ao agravamento das sanções, e declarou também existir a necessidade de intervenções orgânicas e multilaterais nos países de origem. Sobre este ponto da regulação, Francisco parece omisso, silencioso. 

Com certeza sabe, mais do que nós, que estão, atualmente, 2 milhões de deslocados subsaharianos na Líbia, Tunisia, Argélia, Mauritânia, como estão hoje 3 a 4 milhões de sudaneses no Egipto. O Papa já foi a Marrocos, ao Egipto, à Turquia, à Grécia, a Chipre, por isso tem de saber. Com certeza sabe que a França, em 2022, recebeu 320,330 novas entradas de emigrantes e que, em 2021, 273,360 novas entradas (dados do Instituto Nacional de Estatística Francês). O Papa elevou Msr. Aveline como cardeal de Marselha, e, por isso, há-de saber.

O Papa sabe e, no discurso de Marselha, afirma: “Esta situação não é uma novidade dos últimos anos, nem este Papa vindo da outra parte do mundo é o primeiro a senti-la com urgência e preocupação. A Igreja fala disto com tons vivos há mais de cinquenta anos.” E acrescenta: “Tinha terminado há pouco o Concílio Vaticano II, quando São Paulo VI escreveu, na Encíclica Populorum progressio: «Os povos da fome dirigem-se, hoje, de modo dramático aos povos da opulência.» (n. 3).” 

O Papa Francisco enumera o princípio da integração, os políticos fazem as políticas de integração. Francisco dá o exemplo da integração académica: “Dos 35 mil alunos que frequentam cursos, aproximadamente 5 mil são estrangeiros. Donde começar a tecer as relações entre as culturas, senão das universidades?” O Papa enumera princípio da integração académica,  E. Macron, Sánchez e Costa têm de andar para a frente. 

Para os franceses, e para os europeus, o maior medo é o da invasão e o da perda de segurança. O Papa Francisco mostra a alternativa da integração académica e laboral, e da plena cidadania. Para os cristãos, em geral, e não apenas, para os católicos, há o medo do crescimento islâmico, da conversão ao islamismo e da substituição religiosa. Vou tentar falar disso noutra oportunidade.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

OS RECOMMENÇANTS

OS RECOMMENÇANTS

Escrito em 18-10-2023

Uma das coisas que mais me espanta no ministério sacerdotal é a quantidade de pessoas que bate à porta da Igreja para recomeçar. 

São muitos aqueles que entram pelas portas da igreja e que nós não sabemos quem são, para fazerem uma coisa que eles também não sabem o que é. 

Na Igreja francesa chamam-lhes “recommençants”. 

A palavra apareceu no documento Dagens (1), em 1994, e na Carta dos bispos, de 1996 (2), ao lado dos ‘catecumenos’, como um terceiro campo da evangelização, depois do pastoreio das comunidades e da missão ad gentes. 

Os reiniciantes são aqueles que foram batizados e não fizeram a iniciação cristã, e que, por afastamento, esquecimento ou desaculturação, deixaram a Igreja. Chegam vindos do reencontro ou de um incentivo, de uma provação ou de um choque. Não sabem o que querem da Igreja, nem o que podem esperar dela, nem têm palavras que descrevam a vida espiritual. 

Como se não bastasse, trazem representações negativas de Deus, da fé e da moral, incertezas quanto à forma como vão ser recebidos, e o receio de que nada tenha mudado desde a última vez que lá estiveram. (3)

Eles - é claro que já não podemos dizer ‘eles’ - são os recommençants, e nós quem somos? Somos isto tudo que segue: uma comunidade fraterna e um lugar de comunhão; em ‘estado de evangelização’ e em ‘permanente missão’; rosto da Igreja local e centro de constante acolhimento. 

Estes recommençants não vêm pedir um primeiro anúncio, mas um segundo anúncio, e pedem-nos tempo, disponibilidade e acompanhamento. São um elemento surpresa, um novo início, que precisa do reconhecimento de todos nós. Escrito em 18-10-2023


1 Claude Dagens, Proposer la foi dans la societè actuelle, 1994.

2 CEF, Letre aux Catholiques de France, 1996

3 Tudo isto é descrito em Claire Gèrard, La pastoral des recommençants en paroisse: un chemin de conversion missionnaire mutuelle, 2020. Trata-se de uma tese muito incisiva e muito útil, cujo título chamou a atenção e que fica desta forma resumida.