segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

«A catequese como etapa privilegiada do processo de evangelização» (56)

A imagem que segue, de Isabelle Morelle, é extraordinária, e ilustra bem o caminho que a catequese está a fazer neste século XXI. O processo catequético é como a subida a uma grande montanha feita por um grupo de rapazes e de raparigas, acompanhados pelo seu guia. Ele e os quinze exploradores delinearam o percurso - o itinerário - e as fases de escalada do monte. À medida que forem subindo, cada qual vai manifestar um interesse diferente. Um que tenha apetência por animais, vai estar atento aos bichos; outro que tenha gosto de árvores, vai classificá-las por espécie; e, sucessivamente, os quinze mostrarão interesses distintos, e expressões diferentes do que pensam e sentem. 

Se o grupo tiver  um potencial pintor, fotógrafo, alpinista, agricultor, produtor, operador de turismo, biólogo, geólogo ou veterinário, poderá antever-se a diversidade de experiências e de opiniões. De fcato, cada um vai subir com os seus próprios interesses, parando em lugares que não lembrariam a ninguém, distinguindo coisas que vão escapar aos outros, dando-lhes sentido segundo as próprias motivações. Estamos a falar de um grupo que vai fazer um caminho, que, no fundo, acabarão por ser quinze caminhos diferentes, ainda que sincronizados e integrados uns nos outros. Ao guia - ao acompanhador - competirá o labor de acompanhá-los a todos, promovendo as suas motivações e fazendo integrar elementos que façam sentido!

O caminho da catequese no século XXI tem sido o de colocar 'a catequese dentro do processo de evangelização' (419). Ou seja, se toda a Igreja deseja ser missionária, e renovar-se de forma permanente, então a catequese contribui nesse processo como catequese missionária. Se a Igreja é toda ela um grande processo de evangelização, então a catequese contribui para o processo de evangelização. Para ilustrar essa mudança de paradigma eclesial e catequético, procurei no novo Diretório para a Catequese, de 2020, a palavra 'processo', num total de 129 localizações, e a palavra 'acompanhar', num total de 83 localizações; descobri - só no fim! - que existe a entrada 'Processo' e "Acompanhamento" no Léxico do Diretório (estas entradas são muito úteis para compreendermos os temas importantes no novo Diretório). 

Seguem-se as ideias que as contextualizam.

1. O grande processo de evangelização da Igreja; a catequese no grande processo de evangelização da Igreja











a) Processo de evangelização: toda a Igreja está em processo de evangelização. Toda a Igreja está em 'processo de renovação' (1), em 'processo de nova evangelização' (6), que é um 'processo eclesial sustentado e inspirado pelo Espírito' (31, 39), um processo que abrange dimensões e não apenas fases sucessivas (32). A Igreja precisa 'manter-se num processo de conversão espiritual e missionária' (244), 'é preciso dar início a um processo de conversão missionária que não se limita a manter o que já existe, mas que avança em direção evangelizadora' (300);

b) Processo de fazer discípulos missionários: a Igreja existe como Igreja missionária e existe para formar discípulos missionários. A Igreja pretende criar nas pessoas um 'processo permanente de conversão de vida' (35), suscitar 'processos espirituais' (43),  iniciar 'um processo de conversão a Jesus ajudado pela catequese' (78); deve procurar realizar um 'processo educativo de amadurecimento cristão integral' (80),  dar origem a 'um processo interior de reflexão' (198), a 'um processo de interiorização da fé' (220, 396);

c) Processo da catequese: a catequese insere-se no processo global de evangelização. Numa Igreja missionária, a catequese tem por finalidade ser 'uma etapa privilegiada de evangelização' das pessoas (56). Com efeito, 'no centro de cada processo de catequese está o encontro com Cristo vivo' (75), sendo, por isso, preciso 'fazer do processo de iniciação cristã uma autêntica introdução experiencial à globalidade da vida de fé' (242);

d) Processo pessoal: o processo catequético respeita o itinerário pessoal. Numa Igreja de nova evangelização e permanente formação, a catequese - como o catecumenado - pretende contribuir com  um 'processo dinâmico' e progressivo, correspondente com a biografia de cada pessoa (63), 'num processo que permite a maturidade da fé através do respeito pelo itinerário de cada crente' (166). De facto, 'a fé não é um processo linear e participa no desenvolvimento de cada homem', real,  concreto, histórico (224); a fé participa no 'processo lento e laborioso de personalização do indivíduo' (146), mesmo no 'processo contínuo de restruturação' do indivíduo (257) - 'o acto de fé é um processo interior intimamente ligado à sua personalidade' (257). Por isso, 'é importante que a catequese tome a peito o processo de receção pessoal da fé' (396);

e) O carácter comunitário do processo catequético. Numa Igreja fraterna, toda a comunidade se envolve na catequese, de modo que seja um 'processo que se realiza numa comunidade concreta' (64). Neste sentido, 'o catequista leva a cabo este processo educativo não individualmente, mas juntamente com a comunidade e em seu nome (150); a catequese envolve comunidade e família 'dando lugar a processos de evangelização recíproca entre os diversos sujeitos eclesiais envolvidos' (242);

f) Distinção entre processo, conteúdos e métodos. A pedagogia da fé requer um 'processo educativo' enriquecido com as ciências humanas, sobretudo a pedagogia e a didática (180), a experiência humana é constitutiva do processo catequético, do seu conteúdo e do seu método (197), 'outros elementos do processo catequético são a relação, o diálogo, a reflexão, o silêncio e o acompanhamento (203). 

g) O processo de evangelização interiorizado pelo próprio catequista. Este processo é 'um processo que toca o íntimo do catequista' (131), que faz com que todo o processo formativo seja uma experiência espiritual lida em perspetiva testemunhal e missionária (135).

2. 'O catequista é um perito na arte do acompanhamento' (113). Também a palavra acompanhar é muito utilizada no Diretório para a Catequese de 2020. Conseguimos localizar 83 palavras relacionadas com a ação de acompanhamento que surgem nos contextos que seguem.

a) A Igreja acompanhadora. A comunidade é o primeiro sujeito do acompanhamento e o serviço do catequista 'é vivido dentro de uma comunidade que é o sujeito primeiro do acompanhamento na fé' (111). O acompanhamento da Igreja é sinal do 'zelo da Igreja que acompanha os seus filhos ao longo do arco da sua existência' (232);

b) A Igreja acompanha todas as situações. O acompanhamento é sinal da abertura da Igreja; 'com zelo, respeito e solicitude pastoral, a Igreja acompanha aqueles filhos que estão marcados por um amor ferido' (234); as comunidades cristãs acompanham com realismo todas as realidades com luzes e sombras 'para as acompanhar de modo adequado e discernir a complexidade das situações' (234), 'acompanhar na fé e introduzir na vida da Igreja as situações irregulares implica tomar muito a sério cada pessoa' (35);

c) A catequese acompanha o amadurecimento da fé. 'O Diretório reitera a importância de a catequese acompanhar o amadurecimento de uma mentalidade de fé numa dinâmica de transformação' (3); 'a catequese forma para a missão acompanhando os cristãos no amadurecimento de fé' (50, 53, 55, 116); 

d) A catequese acompanha com paciência. O acompanhamento é feito de forma gradual e progressiva, 'acompanhando com paciência e respeitando os tempos reais de amadurecimento' (64), de modo 'a acompanhar no discernimento da vocação específica' (85), 'o acompanhamento de uma pessoa no crescimento e conversão é marcado necessariamente pela progressividade' (179, 420);

e) O catequista como acompanhador. O catequista é testemunha da fé, mestre e mistagogo, 'acompanhador e educador daqueles que lhe são confiados pela Igreja; o catequista é um perito na arte do acompanhamento' (113). Na verdade, 'são verdadeiros discípulos missionários enquanto sujeitos ativos da evangelização e habilitados pela Igreja a acompanhar e a educar na fé' (132); 'a figura do catequista se concretiza como alguém que acompanha e como um educador capaz de os apoiar nos processos de crescimento pessoal' (263), 'aquele que acompanha mantém conscientemente em relação a eles uma função educativa' (263), 'quem acompanha é capaz de colocar-se de parte, favorecendo nos sujeitos a assunção da responsabilidade' (263), 'o desafio pastoral é de acompanhar o jovem na busca da sua autonomia' (370), por isso, são necessárias figuras com autoridade (370);

f) A formação para o acompanhamento. É necessária a formação permanente para ajudar no acompanhamento dos irmãos (132); 'a Igreja sente o dever de formar os seus catequistas para a arte do acompanhamento pessoal, propondo-lhes a experiência de serem acompanhados, habilitando-os a acompanhar os irmãos. Este estilo requer uma disponibilidade humilde' (135); 'requer um certo acompanhamento no tempo, porque intervém no núcleo que fundamenta o agir da pessoa' (139.

3. A formação permanente. 

Note-se que a palavra 'formação' aparece sobretudo num 'formação permanente' (dos cristãos, dos padres, dos catequistas), e, como tal, é vista no contexto de 'formação de toda a vida cristã' (Intro); trata-se sobretudo de uma formação para o ser antes de ser uma formação para o estar (136). Assim, por exemplo, 'o catecumenado é uma verdadeira formação de toda a vida cristã' (63); 'a formação é um processo permanente' (131); a formação ajuda a reconsiderar e a repensar a ação, alimenta a espiritualidade, sustenta a consciência missionária (135).

Note-se ainda que a palavra 'formação' também aparece num contexto de formação dos grupos e dos catequizandos. A formação dos jovens é uma formação que abrange todas as dimensões da vida que permita 'a formação da identidade pessoal' (259), 'a formação e o amadurecimento na vida do Espírito' (260), 'a formação de consciências cristãs maduras' (261), 'a formação das características típicas do cristão adulto' (261), 'formação global' e 'formação integral' (314). 

Pormenor do deambulatório da catedral de Chartres



domingo, 21 de janeiro de 2024

Cristo, Cristo, e outra vez Cristo!

O Senhor no Evangelho volta a passar para chamar os que quer. É como a cruz processional que avança, do fundo da igreja, para chegar perto das pessoas da assembleia. As igrejas também são uma espécie de beira mar, por onde Cristo se passeia, e começa, do fundo, a chamar os homens para a pesca...

Visivelmente, o Senhor vem ter connosco na comunhão da eucaristia, mas só vem para se passear na alma, e voltar a chamá-la. O Senhor chama dentro da alma - 'eihhhhhhhh' -, como parece que o mar chama dentro dos búzios; penso verdadeiramente nunca ter feito a experiência dos dois...  

Ela - esta alma! - é outra beira mar, de fina areia, por onde Cristo avança, minúsculo e quase impercetível. “Há tantos anos que Cristo aqui habita, e que está na mesma praia que tu, que é espantoso como não formas a imagem do teu mestre e amigo...”

Há muitos anos - desde o seminário - que penso na habitação de Cristo na alma. Sempre tive a ideia de que as coisas da alma, como as coisas do mundo, se resumem na mesma pessoa - Cristo! Tudo é de Cristo, a palavra, o batismo, a eucaristia, a alegria e a tristeza, a vida e a morte, tudo é para Cristo... 

A praia, o barco, as redes, o peixe, o oceano, até o sol e o vento Lhe pertencem! Nós pescamos e tentamos só porque Ele continua a querer e a gritar lá do fundo - 'heihhhhhhh'; «Senhor,  mesmo que o mar esteja bravo, e não seja época, e não haja peixe?!» 

- «Sim!» 

- «Oh Senhor, mas o Simão diz que o barco é dele! E o André, agarrou as redes com os dentes!»

- «Diz-lhes que são tontos! E tu também és!»

- «Somos todos tontos, estão a ouvir?!»

O Senhor avança quando nos encontra pequenos. Os irmãos da comunidade Emanuel escutaram muitas vezes o Pierre Goursat a murmurar na oração 'petit, petit, petit...!' ou 'vermezito...!'. O Senhor avança quando nos encontra sem nada. Cristo, Cristo, e outra vez Cristo, avança como uma cruz processional, ou como uma hóstia da eucaristia, para morar em nós, mesmo que nos encontre pequenos, pelas perdas, pelos desgostos e pelas doenças, outra vez Cristo! 

sábado, 20 de janeiro de 2024

“Obrigado por ter fundado o Emanuel’, JPII, 1986

Pierre Goursat (1914-1991) é um nome que ninguém conhece. É o fundador da comunidade Emanuel. Os fundadores dos movimentos eclesiais do século XX são normalmente conhecidos. Kiko Arguello é o fundador do Caminho Neo catecumenal, Chiara Lubich do Movimento dos Focolares, Monsenhor Giussani da Comunhão e Libertação, Monsenhor Escrivá do Opus Dei, etc. A estes ‘pais’ dos grandes movimentos pós conciliares juntaram-se outros nomes que fundaram novas congregações ou novas comunidades de vida. 

Pierre Goursat foi um desses criadores e um dos primeiros tradutores do Renovamento Carismático em França, com a fundação da Comunidade do Emanuel. 

Pierre era um típico parisiense - urbano, bem relacionado, boémio, culto. Estudou na École do Louvre e seguia a Escola prática de altos estudos para poder ser Conservador no Museu de antiguidades nacionais em Saint-germain-en-Laye. Mas a vida tinha outros planos para ele. 

A morte do irmão mais novo, Bernard, de apenas dez anos, em 1926, foi arrasadora para Pierre; mais tarde, a tuberculose levá-lo-ia ao sanatório por cinco meses, e ao desespero de vida. 

No ano de 1933, um ‘acontecimento sobrenatural’ seria decisivo na sua vida: ‘isso foi de tal modo simples que não o posso contar. Tudo de um golpe, senti a presença do meu irmão com uma intensidade extraordinária. Foi como se me dissesse: ‘tu pensas demasiado em mim. Isso é porque estás preso pelo orgulho’. Foi como se ele estivesse presente. Eu dei por mim de joelhos aos pés da minha cama e, quando me levantei, estava completamente transformado. Eu não era mais o mesmo. Era como se tivesse recebido uma efusão do Espírito’(p. 20). Pierre tinha 19 anos. 

A sua mãe e a sua irmã que trabalhavam na hospedaria da família e na cozinha desse pequeno hotel achavam que Pierre se tinha tornado ‘muito cristão’. Na verdade, Pierre Goursat transformava-se num apóstolo leigo, sobretudo dos jovens. 

Em junho de 1944, um outro ‘acontecimento sobrenatural’ surpreenderia Pierre. Em plena Paris ocupada, e nervosa com o desembarque americanos, Pierre é sinalizado por soldados alemães e, num incidente de rua, foi por eles perseguido. Escondido, escutou interiormente ‘alguém que me dizia ‘não te inquietes. Tu estás salvo. Era muito claro. Eu não podia duvidar. Eu não podia duvidar que era Maria que falava e que ela me tinha salvo’ (p. 27). 

Nesse período 1933-44, Pierre cria um grupo de jovens para a leitura e partilha do Evangelho, entra na Legião de Maria, participa na adoração permanente de Montmartre, é dirigido pelo cardeal Suhard, arcebispo de Paris. Pierre sente que a sua vocação é ser ‘um adorador da Eucaristia no meio do mundo’.

Pessoalmente, Pierre ocupa-se da edição da Revue Internationale du cinema, monta uma livraria, a Société de diffusion du livre, e uma editora, o Centre du livre français. A edição da revista internacional de cinema, durante dez anos, dá-lhe notoriedade no meio cinematográfico. As suas críticas são consideradas e reproduzidas em todos os jornais e televisões franceses; torna-se responsável da Centrale catholique du cinema; organiza festivais, galas, encontros: ‘nesse momento eu seguia todas as galas, como Cannes ou Veneza. Estava um pouco por toda a Europa. I@ também ao Canadá … fui convidado pelos russos para ir a Moscovo’ (p. 34). Retirar-se-ia em 1970. 

Pierre Goursat encontra, por indicação do padre Caffarel, Martina Laffitte, médica cirurgiã, e responsável por um grupo de oração, em 1971. Ambos criam uma École d’oraison e, juntos, convidam e ajudam os jovens a descobrir a oração. 

Em 12 e 13 de fevereiro de 1972, o padre Caffarel convida-os para um week-end de oração, em Troussures, e convida também Xavier e Brigitte Le Pichon, respetivamente geofísico e pianista. O casal tinha feito a experiência de efusão do Espírito Santo nos Estados Unidos. O seu testemunho, a explicação do que fazia o Espírito Santo por meio do Renovamento, e o próprio exercício da oração, foram ‘um mundo novo que começava’ (p. 46). 

Esta experiência de oração continua num pequeno grupo de Martine e de Pierre, e torna Pierre Goursat num companheiro mais próximo, mais simples e mais fraterno. Ambos, Martine e Pierre, decidem em maio de 1972, propor ao grupo a experiência de efusão do Espírito. Dizia Pierre que ‘uma vez que as coisas se passam assim nos Estados Unidos, será que não podemos pedir ao Espírito Santo que isso se passe entre nós, em França’ (p. 49). 

E assim, foram-se juntando cada mais jovens, em cada semana, em casa de Martine; depois formaram-se dois grupos, o de S. Sulpício e o da Anunciação, um que funcionava no Centre catholique, e depois na cripta da Igreja de S. Sulpicio, e outro no ginásio da Escola nacional. Em Setembro de 1973, abriu-se o terceiro grupo de oração, na capela de S. Bernardo, em Montparnase, que transitou, depois, para Notre Dame des Champs. 

Eram grupos de oração ligados à forma do Renovamento Carismático, mas sem estarem realmente  unidos a ele. De modo que surgiu o nome do Emanuel com o objectivo muito específico da adoração, da compaixão e da evangelização.

Pierre Goursat tornou-se o responsável dos grupos. Falava pouco, sondava o coração de cada um e discernia os carismas. Pierre dizia que era o único que não tinha carisma especial: ‘o Senhor deu-me o carisma de diretor, de pastor. Eu era muito pobre. Não tinha carisma nenhum a não ser. O Senhor ajudou-me muito mas eu sentia que não tinha carisma nenhum. Então, o Senhor disse-me: discerne as pessoas que se ocuparão de tudo’ (p. 61). 

De facto, apareciam muitos carismas na nova comunidade - da pregação, da profecia, das línguas, da música. Pierre não se sentia particularmente agraciado; era mesmo um péssimo organizador e pregador. ‘C’est bien claire. Le Seigneur a pris la personne la plus pauvre possible pour manifestar sa action’ (p. 126). Franzino, sempre doente, muito magro, reservado, parecia de tal forma um pobre, que levou alguém a exaltar a comunidade por acolher o pobre que estava ali a um canto. ‘Ah? Mais c’est Pierre. C’est notre fondateur’ ( p. 127).

Na jornada de Pentecostes, de 1973, reunem-se em Paris cerca de quinhentas pessoas; em julho de 1974, em Vézelay, estavam seiscentas; no encontro internacional dos movimentos ligados ao Renovamento Carismático, no Pentecostes de 1975, em Roma, mil. Em Julho desse ano de 1975, o Emanuel volta a reunir-se, desta vez em Paray-le-Moniale, com 1200 pessoas.

Veio depois o encontro em Lurdes, em 1976, Lyon, em 1977. ‘Depois de Roma - a graça da Igreja, com Paray - a graça do Coração de Jesus, com Lurdes - a graça de Maria’ (p. 95). Pierre e Martine fariam uma visita por várias comunidades do Renovamento Carismático católico nós Estados Unidos, e a experiência de um retiro de preparação para a efusão do Espírito Santo, em 1976. 

A comunidade cresceu, dividiu-se em casas, ‘aquilo que os americanos chamavam de casas não residenciais: cada pessoa ou cada família habita nela, mas encontra os irmãos e as irmãs de casa num serão de encontro, de oração e de partilha, cada semana’ (p. 106). 

Esses irmãos começam a comprometer-se no serviço da Igreja por um ano, alguns casais dedicam-se por completo missão, outros consagram-se com votos privados, outros iniciam um processo de discernirão sacerdócio no convento da Anunciação em Paris e depôs no Seminário francês de Roma. 

Pierre diria a um dos padres acompanhador ‘ se tu lhes ensinares a manterem-se pequenos, a se deixarem maravilhar pelo Espírito Santo, com Maria, a viverem como irmãos e a saberem obedecer, não vai haver problemas com o resto’ (p. 170). A comunidade continua a reunir-se para o louvor e para a adoração, e começam a realizar-se fins de semana específicos de ensinamentos para a efusão do Espírito Santo, sobre a vida cristã, sobre a iniciação dos adultos, para os casais, para os jovens, para o mundo operário, para os profissionais de diferentes áreas, etc.

O último capítulo - chapitre IX, Esquisses pour un portrait - trata de alguns traços de personalidade do Servo de Deus Pierre Goursat. Pierre deixava-se conduzir pelo Espírito  Santo em total disponibilidade e escuta. Dizia ‘é suposto eu conduzir, mas estou atado a uma cadeira, um outro tem o volante, isto vai cada vez mais depressa, e eu sou obrigado a abaixar-me nas curvas’ (p. 234). 

Pierre tinha o sentido dos sinais dos tempos e uma grande perspicácia sobre a situação da Igreja; contra conservadorismos e máquinas administrativas, ‘ele acreditava que era preciso fazer girar as coisas, que era preciso avançar e fazer avançar o mundo… Mas era muito atento àquilo que o Espírito podia sugerir ou indicar através da Igreja’ (p. 244). 

Havia em Pierre Goursat uma humildade e uma pobreza desarmantes, porque não queria ser outra coisa que um canal da graça. ‘Isso ia tao longe que havia irmãos que não sabiam que ele era o fundador. Criticava-se o Emanuel por não ter fundador. Por ser uma comunidade sem ter fundador conhecido’ (p. 246). À sua humildade, Pierre Goursat juntava a pobreza - ‘ele vivia num despojamento inacreditável’. ‘Para ele, a palavra pobre tinha uma significação quotidiana muito precisa. Dela vem a sua facilidade em compreender os excluídos, os marginais’ (p. 248). 

Havia também humor e liberdade em Pierre Goursat. ‘O humor era igualmente factor de conversão na linha de são Filipe de Néry’ (p. 250). A sua liberdade interior em relação a tudo e a ele mesmo, não se levando muito a sério, era sinal da docilidade no Espírito. 

Havia pureza em Pierre, sinal da sua consagração pessoal. Zelo pelo casa de Deus. Amor ao coração de Jesus. Das muitas coisas que impressiona na transformação operada no Espírito é a sua infância espiritual - ‘Pierre riait de tout son coeur. Ele tornara-se interiormente - e mesmo exteriormente - mais enfant que nunca. Ele tinha entrado na união habitual com Deus - a união ‘definitiva’ - cujos sinais não enganam: uma grande sabedoria, um hábito de referir a Deus todas as coisas, um abandono à Divina Providencia, uma espécie de doçura divina, um espírito de compaixão fraternal, com a certeza e a paz’ (p. 257).

Em 1986, o papa João Paulo II, em visita à Paray-le-Monial, disse a Pierre Goursat ‘obrigado por ter fundado o Emmanuel’.

Pierre Goursat faleceu a 25 de março de 1991.


In Bernard Peyrous/Hervé-Marie Catta, Le feu et l’ esperance,  Editions du Emmanuel, 1995.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A 'maternidade' e o 'mistério' da Igreja

«De Sião, porém, se dirá: "Um e outro, todos ali nasceram; e o próprio Altíssimo a estabeleceu". O Senhor apontará no registo dos povos: "Este nasceu ali". (Sl 87,5-6)

Em Paradoxo e Mistério da Igreja, de 1967, Henri de Lubac resume a Igreja na palavra mãe: 'l'Eglise, c'est ma mère' (p.14). A palavra mãe não quer dizer maternalismo mas sim geração do Cristo. Mãe é a 'Igreja viva' - ''l'Eglise vivante' - a Igreja toda, do céu e da terra, de todos os séculos e do presente, dos crentes e dos santos, da liturgia e da missão, que gera Cristo e gera Cristo em nós: 'elle enfante le Christ en nous' (p. 20).

Num outro texto, A Maternidade da Igreja, de 1971, De Lubac afirma que 'a maternidade da Igreja é tão real como a presença de Cristo' (p. 160) ou 'tão real como a paternidade Paulo'. Depois, mostra que a Igreja é mãe de todos os que nascem do Espírito, a partir de muitas citações dos Evangelhos - 'Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes te quis reunir' (Mt 23,37) -, de S. Paulo (Gl, 4,19; 1Cor 4,14; 1Tes 2,10), de S. João (2 Jo 1,4), do Apocalipse (Ap 12).

A maternidade da Igreja não se reduz a uma expressão afetuosa, a uma analogia natural, ou uma espiritualidade, da mesma forma que não se reduz a uma perspetiva educadora e disciplinadora da Igreja. Também não respeita à Igreja hierárquica ou paternal que nos leva à reverência e obediência (p. 168). De Lubac diz que a maternidade da Igreja é real, porque, fecundada pelo Espírito Santo, gera todos os dias novos filhos. De facto, basta ver quantas vezes aparece o verbo 'nascer' no evangelho.

A Igreja é uma mãe, e 'nós não seríamos cristãos se não reconhecêssemos o seu carácter essencial' (p. 167). A maternidade da Igreja realiza-se na geração e na formação do Cristo, por meio da Palavra e dos Sacramentos, na alma das pessoas. Com efeito, 'a Igreja, nossa casa, na qual o batismo nos introduziu, guarda a consciência da nossa identidade pessoal. Ela fornece-nos o ambiente onde esta consciência se pode expandir. Ela mantém no meio de nós estas coisas tão ameaçadas: o respeito pla vida e pela morte, a fidelidade ao amor familiar, (...). Por ela, uma abertura vertiginosa, obscura mas infalível, nos eleva ao nosso Pai que está nos céus.  Nesta comunidade de vida nós, fomos postos num canal, (...) nele respiramos e existimos' (p. 215). 

É a geração como filhos de Deus. Trata-se, porém, de uma geração que nunca está acabada e que se renova de dia para dia. 'Jamais se pode dizer que Cristo tenha sido alcançado em algum de nós. Jamais, por conseguinte, a ação maternal da Igreja cessa a nosso respeito' (p. 168). Antes, pelo contrário, esta geração conclui-se na união de mãe e filho: 'na nossa vida natural, cada passo para a idade adulta é um afastamento da infância, que anuncia uma perda do paraíso, um passo para a velhice e para a decrepitude. Mas, ao contrário, na vida espiritual, todo o progresso é uma renovação' (p. 165). 

A este propósito, De Lubac, cita S. Agostinho: 'no casamento carnal, a mãe e a criança são distintos, na Igreja, a mãe e a criança são um' (p. 168). 

Depois, Henri de Lubac afirma que a Igreja é mãe na sua totalidade, enquanto é unidade orgânica. Na atuação desta unidade, o Verbo de Deus nasce e cresce no cristão (p. 169). Na realidade, é a Igreja toda que realiza o nascimento de Cristo na alma, por meio do batismo. 'É, por assim dizer, uma maternidade de todos, indivisivelmente, em relação a cada um, e de cada um, em relação a todos' (p. 171). De Lubac cita a este propósito H. Newman quando afirma 'nesta Igreja dos Padres eu reconheço a minha mãe espiritual. (...). A renúncia dos ascetas, a paciência dos mártires, a determinação dos seus bispos, o elo alegre do nosso caminho em frente...' (p. 172).

Por fim, De Lubac cita K. Rahner: 'muitos cristãos, diz-me ele, qualquer que seja a sua obediência religiosa, têm tendência a fazer do cristianismo uma ideologia, uma abstração. e as abstrações não têm necessidade de mãe. (...) A maternidade da Igreja não sentido para os nossos sistemas ideológicos, mas nós - para nos livrarmos da sua abstração, temos necessidade de voltar à uma mãe' (p. 219).   

Em Meditação sobre a Igreja, um compêndio de conferências pronunciaras entre 1946-1949, Henri de Lubac, seguindo a frase de P. Claudel - ‘louvada seja para sempre está grande Mãe, aos joelhos de quem tudo de facto aprendemos” - compõe o seu hino de gratidão à Mãe Igreja: ‘louvada seja a Igreja pelo mistério divino que ela nos comunica… Louvada seja ela pelo perdão que nos assegura… louvada seja ela pelos focos de vida religiosa que ela suscita… Louvada seja ela pelo universo interior que ela nos descobre… louvada seja ela pelo desejo e pela esperança que ela nos dispõe… louvada seja por tudo o que ela desmascar e e dissipa em nós de ilusões… Mãe casta…(p. 236-240). 

Em vista desta Mãe, assaltam-nos muitas tentações cuja expressões ‘clericalismo’, ‘mundanismo’, nos parecem familiares.

A primeira tentação é a ‘passagem dialéctica’ (p. 241) do querer servir a Igreja ao colocá-la ao seu serviço. Ê a tentação de manter eternamente o mesmo universo mental, social e cultural, num cristianismo clerical, defensivo e endurecido; a tentação de chamar de liberalismo ou modernismo tudo o que possa aparecer de novo. ‘Craignons une usurpation sacrilège’ (p. 245). As palavras são de De Lubac. ‘Mas nós sabemos que o milagre se dará de cada vez inédito, de cada vez imprevisto, nós sabemos que ele se renovará’ (p. 243). 

A segunda tentação é a tentação inversa da crítica (p. 245). A boa crítica é um discernimento, uma auto crítica, um esforço de realismo. A boa crítica provoca uma atividade redobrada, um espírito de invenção, uma realização de pesquisas e de experiências. Vêmo-la na palavra de muitos Santos. Mas essa palavra nada tem que ver com ‘la pruderie ou le calcul hypocrite’ (p. 248), ou com a ‘la plainte stérile, perte ou seulement diminuition de la confiança envers l’Église’. Algumas vezes esse mal torna-se ipidemia, neurastenia colectiva, ‘Tudo recebe uma interpretação pejorativa’ (p. 249). ‘Por este movimento farisaico, espécie de secessão interior, …, compromete-se por uma via que pode conduzir à renegação’. 

A terceira tentação é a da ilusão, ou da quimera. É a tentação de ‘mudar de método como faz uma qualquer empresa humana’, sem que a fonte real seja a caridade de Cristo (p. 253). ‘Querendo lutar contra o anquilosamento e a esclerose podemos estar a fazer algumas doenças infantis’. De Lubac pede que trilhe um caminho entre o aprisionamento mesquinho ou morbidez do passado e a suficiência moderna (p. 255). A palavra aparece-nos então conhecida: ‘vigiemos para não acolhermos em nós mesmos a mundaneidade - popular ou burguesa, vulgar ou refinada’ (p. 255). 

A tentação do sucesso, da eficácia, ou de se enganar no objectivo (p. 258). ‘A igreja deve, como Cristo, estar em agonia jusqu’au fin du monde’ (p. 256). A igreja não vive para si mesma - para o quantitativo, o massivo, para a autoridade social, a notoriedade, o prestígio - que nos desviam da realidade central, mas para anunciar o Reino dos céus e levar os homens ao Reino dos céus.

A tentação da sabedoria do mundo - ‘esta é a tentação mais grave’ (p. 260). ‘A Igreja existe aqui em baixo na forma de escravo’ (p. 260). A Igreja deve procurar a sabedoria de espírito e não sabedoria do mundo; não é uma assembleia de sábios mas de medíocres; não uma elite, mas uma grosseria. Esta tentação dos ‘aristocratas’ (p. 262)  da Igreja se assemelharem aos sábios, e competirem com outras associações civis, sem perceber a distância. O conhecimento, a cultura, a arte, a influência, ‘não muda a vulgaridade manifesta do tecido conjuntivo em que toda a existência católica se deve acomodar decida para dia e na qual é preciso se inserir’ (p. 264). 

De Lubac, recordando A. Malroux com ‘estas pobres figuras… respondem mal a esta voz profunda’, bem como recordando Pascal com o extremo contraste da complexio oppositorum ‘grandeza e miséria do homem’. Renata com Newman: ‘nós tínhamos poucas coisas para mostrar’ (p. 269).

  

«Que ele possa permanecer como o Sol[4] e como a Lua, de geração em geração. (Sl 72,3-4)»

Em Paradoxo e Mistério da Igreja, de 1967, Henri de Lubac mostra que a Igreja é um mistério, no sentido de desígnio.

Jesus Cristo é o mistério único, e 'a Igreja é um mistério mas um mistério derivado. Ela é mistério porque vem de Deus' (p. 33). 'Pode-se falar como Dídimo o Cego de uma constituição lunar da Igreja' (p. 36) uma vez que a sua luz não vem dela mesma mas de Cristo.

A imagem da lua remete-nos, por um lado, ao obscurecimento do sol - por exemplo, na paixão de Cristo, o sol obscureceu-se - e às fases da lua, lembrando que 'a Igreja, neste século, é uma Igreja sempre morrente, e que é dessa forma que ela se renova' (p. 37). Por outro lado, a imagem da lua indica-nos a aurora e 'anuncia a absorção definitiva da lua no seu sol' (p. 38).

Em Paradoxo e Mistério da Igreja, de 1967, Henri de Lubac refere que é sempre necessário ajustar o nosso olhar a um ponto focal da Igreja, uma vez que apenas conseguimos ver uma parte - uma perspetiva ou os 'acidentes' da Igreja; depois, é que vamos ajustando a visão para ver o seu enorme 'paradoxo que nos vai introduzir ao seu mistério' (p. 12); por último, vemos o seu mistério como unidade profunda, que De Lubac, citando Teilhard de Chardin, descreve como "eixo priveligiado central', 'eixo de progressão e de assimilação' ou 'corrente axial da vida' (p. 29) - quer dizer, que a Igreja é um vector que leva os homens a Deus.

Neste sentido, segundo o autor, não se compreende o mistério da Igreja sem entrar nele, de modo que o mistério da Igreja não pode ser compreendido de fora, e de forma direta e clara. Esse mistério da Igreja pode ser contemplado quando ele passa através de nós - 'o mistério da anima ecclesiastica' (p. 17) que passa e demora nos membros da Igreja- e que se reflete nas inteligências. A este propósito diz o teólogo que 'o mistério da Igreja como todo o mistério não pode ser apreendido por uma vista directa e simples, mas apenas através da sua refracção nas nossas inteligências' (p. 43).     

Mas a Igreja é feita de homens e não apenas de mistério. Acentuar um lado ou o outro seria cair numa espécie de monofisismo ecclesiale, de unilateralidade, parecido ao monofisismo cristologie (p. 49). “ A Igreja esconde a sua glória numa veste obscura; ela traz a contradição nela mesma’ (p. 51). A Igreja é visível e invisível, a Igreja tem a autoridade e a Igreja tem o espírito. A igreja é nesse sentido sacramento - mistério - porque tem estes dois lados visível e invisível, real e simbólico, lados que estão unidos pela sua eficácia. São aquilo que significam. 

Henri de Lubac, no texto Église et Corps mystique, de , afirma que ‘a Igreja é um misterioso organismo que não será actualizado a não ser no fim dos tempos; não mais como meio para unificar em Deus a humanidade, mas como o próprio fim, a unidade consumada’ (p. 45). ‘A Igreja é como o Tabernáculo no deserto diante do Templo de Salomão’ (p. 47). As figuras mostram que a Igreja não é Corpo de Cristo mas já é o Corpo de Cristo, uma vez que entre o fim e o meio há uma relação de correspondência, não apenas uma relação extrínseca (p. 48). A Igreja vista apenas numa perspectiva espiritual - uma Igreja dos Santos  - é uma pura abstração; a Igreja não ê uma espécie de hipostase transcendental (p. 38); mas ela tambem não apenas uma federação de assembleias locais. A Igreja é de facto um mistério, o sacramento de Cristo, a Imagem de Cristo. A ecclesia precede logicamente os cletoi, da mesma forma que a convocatio precede a congregatio (p. 39). 


 

  


terça-feira, 9 de janeiro de 2024

IV A Graça na Teologia prática


1. Renè-Jacques, aluno do ISPC, em Paris, em 1975, de uma forma muito prática reuniu um conjunto de jovens – uma equipa de trabalho -, que tentasse responder à pergunta “há uma nova maneira de falar de ‘graça’ aos nossos contemporâneos? É preciso continuar a falar-lhes a partir de uma síntese teológica da graça, da definição, da natureza e dos seus efeitos?” O trabalho de “teologia prática” deu origem à tese de mestrado La grace de Dieu et son actualitè pastorale[1], em 1975.

No seu todo, a tese é como todas as teses, muito imperfeita e muito datada, contém certas descontinuidades da Tradição que me parecem próprias das circunstâncias, tais como aquela de preferir a nova linguagem à linguagem tradicional. No entanto, a proposta como aplicação da ‘teologia prática’, como provocação da experiência espiritual dos membros e a procura de verbalização e de sistematização, no quadro do tratado da graça tem muito valor. O grande valor é a tentativa de sincronização da teologia sistemática com a teologia prática!

O autor segue a ordem de perguntas sobre a natureza da graça, as distinções da graça e os efeitos da graça[2] que a equipa de trabalho possa identificar. O tratado tradicional da graça pode desenvolver-se a partir desses três argumentos numa linguagem muito classificada, mas pouco percetível. Nós vamos seguir a ordem da conversação para ver até que ponto os jovens conseguem compreender e 'classificar' a graça.

2. O grupo começou por tentar definir a natureza da ‘graça’ e chegou às asserções comuns. Todos reconheceram que:

a) a ‘graça’ é o amor de Deus revelado em Jesus Cristo; a ‘graça’ é o dom que Deus faz no seu Filho; a ‘graça’ é uma iniciativa e uma comunicação de Deus;

b) a ‘graça’ é o amor de Deus derramado nos corações, o dom sobrenatural dado pelo Espírito santo, no Batismo; é o dom que torna filhos de Deus, quer dizer, que permite entrar em relação com Deus, e participar da sua vida divina;

c) a ‘graça’ é o dom sobrenatural que posso aceitar livremente ou rejeitar livremente; (neste ponto, refere o autor, começaram a surgir muitas dúvidas tais como se a graça é ‘apenas proposta’ ou é ‘mesmo dada’ aos homens, ou se a resposta é ‘apenas um reconhecimento exterior e consequente a adesão externa’; alguns pensam na ‘graça’ como uma energia humana, uma profundidade humana, que deve vir ao de cima como espiritualidade);

d) a graça pode ser distinta nos seus diversos efeitos; que há a “graça” de Deus no dom de Jesus Cristo, e as “graças” por meio das quais entramos na relação com Deus.

3. O grupo procurou, de seguida, responder à pergunta sobre os efeitos da graça nas suas vidas. Os efeitos da graça são:

a) os frutos da vida cristã na vida de cada qual;

b) os sinais do amor de Deus manifestos na vida de cada qual;

c) a coerência interna de intenções, pensamentos, palavras e ações;

d) a maior integração e a maior participação na vida da Igreja;

e) a capacidade de levar o amor de Deus aos homens que Ele ama e quer salvar.

O autor conclui: “chegamos a um semi-sucesso. Nós utilizamos palavras que não traduzem corretamente àquilo que é o nosso pensamento sobre a graça, palavras que sublinham as nossas divisões conceptuais e que nos impedem de comunicar plenamente (…) Parecia que as palavras da nossa linguagem eram um obstáculo à expressão desta realidade vivificante da graça de Deus”.[3] Parece ter havido uma enorme dificuldade para encontrar palavras e um discurso fluente que pudesse descrever a experiência da graça e as suas convicções profundas.

O autor, curiosamente, nota que as distinções entre ‘graça actual’ e ‘graça habitual’ não colheram compreensão, mas percebeu que há necessidade de utilizar uma linguagem que possa minimamente verbalizar uma experiência e que possa ser universalmente compreendida.

Os comentários dos jovens salientam essa necessidade da seguinte forma: “’Fazemos a experiência da diversidade de opiniões e de expressões concernantes à graça, mas chegaremos alguma vez a um discurso ‘totalizante’ sobre o essencial da nossa fé que é a graça de Deus?’ Que resposta dar?”[4] E ainda: “Como nós não encontramos hoje palavras que traduzam a nossa experiência, sentimos a necessidade de utilizar as palavras antigas”[5].

O autor perguntou, por fim, qual seria a linguagem a adotar: se uma linguagem mais ontológica, sistemática, teórica e dedutiva, ou uma linguagem mais bíblica, existencial, concreta  e indutiva. O grupo mostrou-se reticente a uma linguagem sistematizada, preferindo a adaptação da vida: “ a vida exprime melhor as realidades da graça do que o saber por mais perfeito que ele seja”[6]; o grupo prefere “ a linguagem do testemunho”[7].

II

O autor sente a necessidade de procurar nos documentos da Igreja uma nova linguagem sobre a graça, e recolhe no texto da Gaudium et Spes[8] elementos que sugiram a origem da graça, as distinções da graça, o sujeito da graça.

 Assim, genericamente e a título de exemplo, desenho um esquema da sua reflexão.

1. A origem da graça

a) Deus é criador, autor e fim de todas as coisas; Deus é a fonte de todos os dons (GS 20);

b) Deus enviou o seu Filho que restaura a semelhança divina alterada pelo pecado (GS 22);

c) Jesus enviou o Seu Espírito que numa providência admirável, conduz o curso dos tempos, renova a face da terra, e permanece presente nesta evolução (GS 26);

2. O sujeito da graça

a) Deus vem comunicar-se ao homem, que tem uma alma espiritual e imortal onde habita um gérmen de eternidade (GS  18);

b) O homem fazendo uso da sua semelhança com Deus faz uso da sua liberdade, obedecendo à lei da consciência (GS 16);

c) A partir da inteligência humana, o homem pode chegar a penetrar os segredos do mundo, a desenvolver as técnicas e a sondar os mistérios do seu criador (GS 33);

3. Os efeitos da graça

a) A graça de Deus transforma o homem, purificando-o do pecado, reconciliando-o com Deus e com os irmãos, e transformando-o interiormente; esta transformação interior da graça divina faz sentir a sua influência indiretamente sobre toda a família humana (GS 42);

O autor nota que o texto conciliar, como todos os outros “evitam a palavra ‘sobrenatural’ e orientam-se para uma linguagem de unidade tendente a eliminar todo o dualismo”[9];

 e ainda que “o uso da palavra graça tende a desaparecer do ensino catequético e pastoral e mesmo dos escritos teológicos recentes. Em teologia, por exemplo, não se publicam mais tratados específicos concernante à graça divina”[10];

para terminar dizendo “é sem dúvida para respeitar esta sensibilidade do homem contemporâneo que, dentro dos livros de catequese substituímos a palavra ‘graça’ por expressões que descrevem melhor esta experiencia muito pessoal de uma vida de união e de relação com Deus”[11].

Por fim, o autor termina dizendo que prefere a aproximação bíblica e existencial, feita pela Gaudium et Spes[12], do que propriamente a abordagem tradicional e escolástica. É claro que teremos de situar esta posição no contexto de 1975.

 

 



[1] Cf. Renè-Jacques, La Grâce de Dieu et son actualite pastorale”, Paris, 1975

[2] Cf. Renè-Jacques, p.7-29.

[3] Renè-Jacques, p. 27.

[4] Renè-Jacques, p. 27.

[5] Renè-Jacques, p. 28.

[6] Renè-Jacques, p. 26.

[7] Renè-Jacques, p. 28.

[8] Renè-Jacques, p. 54-69.

[9] Renè-Jacques, p. 75.

[10] Renè-Jacques, p. 75.

[11] Renè-Jacques, p. 76.

[12] Renè-Jacques, p. 79.

III. A distinção entre Graça santificante e Carácter

Resumo: A graça santificante opera a remissão, a santificação e a participação das pessoas divinas na alma humana. Se por um lado o Espírito toma a iniciativa de comunicar-se na graça, por outro, Cristo toma também a iniciativa de conformar a si a alma humana. Parece-me possível distinguir graça e carácter desta maneira.

1. No texto sobre A Graça e as missões invisíveis do Espírito e do Verbo procurámos mostrar como o movimento da graça é um movimento de reciprocidade entre o Espírito e o Verbo que agem na vontade e na inteligência humanas. Trata-se de um movimento circular cuja ação de uma pessoa divina empenha a outra e assim 'sucessivamente'. Esse movimento de reciprocidade na alma humana - a que S. Tomás chama de 'regiratio' - é replicado do movimento do cogito e do assentimento. Existe por conseguinte um movimento de reciprocidade - de regiratio - entre o intelecto e a vontade. Na verdade, o cogito não procura e não indaga sozinho; o cogito é uma inquietação da potência intelectiva, que procura assentindo, consentido. Não se conhece sem também não se querer conhecer. Não há razão sem vontade, nem verdade sem bondade. È nesta circularidade humana que entram as pessoas divinas, a do Espírito que chama o Verbo, e a do Verbo que volta a mandar o Espírito.

Na teologia católica - no seguimento de S. Tomás que afirma “o efeito principal dos sacramentos é a graça santificante e o efeito secundário é o carácter” - alguns sacramentos produzem a graça e o carácter. Entendemos como a graça santificante - o movimento de remissão, santificação e participação - e o carácter entendemo-lo como o desenvolvimento da noção de participação (diria até como matiz ou subtileza da noção de participação). Vimos no texto acima identificado que a participação significa tomar parte da natureza divina; que a essa participação pode também chamar-se de semelhança sobrenatural, de representação sobrenatural, por indicarem a presença das pessoas divinas na alma humana. No fundo, no batismo, recebemos o Espírito Santo que nos une a Jesus Cristo, e, por meio da presença das divinas pessoas na alma humana, participamos da divindade do Espírito e da divindade do Verbo. 

Se, por um lado, o Espírito toma a iniciativa de nos santificar, por outro, o Cristo toma a iniciativa de nos conformar. Parece-me que podemos desta forma distinguir a noção de graça santificante e a noção de carácter. Por uma opera-se a a remissão, a santificação e a participação, por outra opera-se a conformação. De facto, neste entendimento, podemos dizer que há um processo ativo de impressão, de conformação, ou configuração, realizados pela iniciativa de Cristo.  Neste entendimento, podemos ainda dizer que o carácter é uma comunicação do próprio Cristo, e uma configuração a uma das dimensões de Cristo, especificamente dadas nalguns sacramentos - o batismo, o crisma e a ordem. Pelo batismo, somos configurados a Cristo, profeta, sacerdote e rei; pelo crisma, a Cristo, que é doador de Espírito; pela ordem, a Cristo pastor (ou a Cristo servo, no caso do grau do diaconado). 

(Note-se que este entendimento é um entendimento particular. Enquanto no meu entendimento o carácter se liga à configuração, à conformação, vejo alguma dificuldade nalguns autores, por exemplo, Guilhaume de Menthière, que afirma “o carácter é res et sacramentum no batismo: sacramentum tantum (a ablução da água); res et sacramentum (o caracter); res tantum (a graça do Espírito Santo).” (Le penchant de la grâce, Artège, Paris, 2023, p. 210).

2. O Selo –sphragis - em S. Paulo

S. Paulo utiliza a palavra selo – sphragis, sigillum – algumas vezes. Por exemplo, em 2Cor 1,21-22: É Deus quem nos confirma convosco em Cristo, e quem nos ungiu, Ele que assim nos marcou com um selo e depositou nos nossos corações o penhor do Espírito. Em Ef 1,13-14: Foi também nele que vós escutastes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação. E foi também nele que, ao acreditardes, fostes marcados com o selo do Espírito Santo prometido.

“Em S. Paulo, a marca do selo relaciona-se à iniciação cristã em geral, englobando com o nome de batismo aquilo que hoje entendemos por batismo e confirmação”[1]. A marca do selo, a impressão do selo, é símbolo de aquisição, de distinção e de proteção. Para S. Paulo, não é propriamente um efeito do batismo tal como o entendemos hoje, mas antes um sinal de santificação para esta vida e para a vida futura. S. Paulo não distingue o selo da graça ainda que faça a distinção entre os “santos” e os que são culpados de pecados graves (I Cor 1,2; 2,17). Esta distinção pressupõe uma santidade objetiva do carácter e uma santidade subjetiva da graça[2]. Podemos dizer que a noção de selo, de impressão, ou de carácter, está presente nos escritos do Novo Testamento e nos Padres da Igreja mas existe uma dificuldade em distinguir graça e carácter, e em perceber qual é a sua natureza.

Na primeira escolástica, a dificuldade em compreender a natureza do carácter torna-se argumento de debate: é uma relação, é uma graça ou é apenas uma figura? É uma qualidade, uma disposição ou uma potência? É uma primeira graça do sacramento ou é um efeito do sacramento? Uma vez que a primeira escolástica define a graça como ação do Espírito Santo na obra da justificação interior, torna-se difícil integrar a noção de caracter como qualquer coisa de distinto da graça. Desta forma, no princípio, “o carácter situa-se como uma realidade intermédia entre o rito e a graça sacramental, entre o “sacramento” e a “coisa do sacramento”[3]. Essa perspetiva do carácter como “prelúdio da graça”[4] é figurada, por exemplo, na ideia do primeiro S. Tomás de Aquino ao afirmar que a impressão da cruz na fronte dos catecúmenos os prepara para receber graças maiores e cultuar a Deus.

Mais tarde, e no seguimento de outros autores, S. Tomás abrirá uma outra via ao carácter, qual efeito secundário dos sacramentos – a da configuração ao sacerdócio de Cristo – “pela qual se o separa do domínio da graça”[5]. Tomás mostrará que à santificação procede o culto e que “a santificação e o culto estão unidos, e eles constituem o movimento relacional para Deus (…). O benefício para a sacramentalidade é incomparável: os sacramentos que dão aos homens a santificação do Christus passus são ao mesmo tempo acções cultuais do homem participante à cultualidade radical do Christus sacerdos”[6].

Os autores da primeira escolástica procuram uma classificação para o caracter: hábito, disposição, potência ou figura? Enquanto S. Alberto e S. Boaventura desenvolvem o carácter a partir do hábito e da disposição, S. Tomás desenvolverá a partir da potência espiritual na inteligência humana. Mas os três doutores da Igreja vão chegar à conclusão de que o carácter é a configuração a Cristo. Cristo é o carácter do Pai (Heb), o “caracter incriado” (expressão de Alexandre de Hales[7]), que é impresso na alma, pelos três sacramentos do batismo, da confirmação e da ordem.

3. S. Alberto e S. Boaventura[8]: hábito, disposição e configuração. As três configurações.

S. Alberto Magno começa por pensar que o carácter não é uma qualidade mas uma relação, como a paternidade[9]. No seguimento de outros autores, compara o carácter na alma à consagração das igrejas: assim como a consagração das basílicas ordena as igrejas à celebração do culto divino, assim o carácter na alma ordena a alma à habitação divina. Mais tarde, abandona a ideia do carácter como relação para o pensar, como S. Boaventura, como hábito, como qualidade, como uma disposição, para receber a luz da graça. Para os seguidores de Boaventura, o carácter poderia ser uma espécie de qualidade infusa- uma graça - paralela às outras qualidades infusas, e às outras qualidades adquiridas. S. Alberto e S. Boaventura concluem que se trata de uma primeira qualidade, de um hábito infuso, que é permanente, e que tem qualquer coisa de dispositivo, porquanto dispõe e não aperfeiçoa. Neste sentido, para S. Alberto, trata-se de um hábito habilitante[10], de um “sinal demonstrativo e causativo de graça”, de uma “gratia gratis data” (por diferença à gratia gratum faciens própria dos efeitos dos sacramentos), da habilitação à graça. Também para S. Boaventura, trata-se de um sinal sacramental que “significa” e “prepara” para a graça e “configura” a Deus (por ser uma semelhança divina) e “distingue”. Trata-se da graça impressa na alma que imprime uma semelhança divina e que dispõe a receber mais graça. Sendo uma semelhança divina, o caracter assimila ou configura a alma a Deus. No entanto, para estes dois autores o grau de semelhança é distinto entre carácter e graça. Na verdade, a assimilação da criatura a Deus comporta três degraus: para S. Boaventura, esses três degraus são a assimilação perfeita da glória, a assimilação suficiente da graça, e a assimilação que dispõe à graça, e que é compatível com o estado de dissemelhança; para S. Alberto, a assimilação pode ser por completa indivisão, por participação ou por imitação. Para S. Boaventura, a terceira assimilação eu dispõe à graça é aquela que produz o carácter, da mesma forma que para S. Alberto, a assimilação por imitação é a semelhança que produz carácter. Estamos, portanto, no campo de uma graça intermédia que dispõe à graça.

Essa graça dispositiva está ordenada a Cristo e a configurar-se a Cristo. Para ambos os autores, S. Alberto e S. Boaventura, o caracter dispõe à configuração ao Filho. Para S. Boaventura, o sacramento configura a um dos ministérios do Filho: ao Filho morrente e redentor (batismo), ao Filho sofrente e combatente (confirmação), ao Filho atuante como ministro (ordem). Para S. Alberto, as três configurações a Cristo têm que ver com os três estados da fé e de ligação a Cristo: os iniciantes, os progressivos e os perfeitos. Ainda que seja uma proposta muito artificial - da configuração a Cristo que dá a fé, a Cristo que a robustece, e a Cristo que exerce um ministério – podemos concluir que, tanto para Boaventura como para Alberto, “é na pessoa e na obra do Filho de Deus que se funda a natureza dos três caracteres sacramentais”[11].

Concluímos que o carácter é uma disposição à configuração; não é a própria configuração. Precede a graça santificante, como uma espécie de primeiro efeito, ao passo que em S. Tomás é um efeito secundário e último do sacramento.

4. S. Tomás de Aquino: configuração ao sacerdócio de Cristo e deputação para o culto divino.

Para S. Tomás de Aquino o carácter não é um hábito nem uma disposição, mas uma potência instrumental[12], que dá determinado poder espiritual, análogo às potências naturais. Numa primeira fase, S. Tomás, referindo-se a Dionísio, afirma que os candidatos ao batismo são assinalados com uma cruz, e, essa cruz, é uma potência para poder participar às operações divinas, à administração e à receção dos sacramentos[13]. S. Tomás segue outros autores que situam o carácter entre o rito sacramental e a res do sacramento (Guilhaume d’Auxerre, Alexandre de Hales, Alberto Magno, Boaventura). No entanto, mas tarde, Tomás de Aquino, entende o carácter como o efeito secundário dos sacramentos: ele é a condição de possibilidade da cultualidade. O Dotor angélico compreende que a santificação é acompanhada simultaneamente pelo culto. Assim como a santificação de Cristo na cruz foi acompanhada simultaneamente de um ato cultual a Deus se Pai[14], assim a santificação do crente é acompanhada de um ato de culto ao Pai por meio do sacerdócio de Cristo. Os homens tornaram-se recetáculo da graça santificante para poderem ser sujeitos de acção cultual. Esta perspetiva pode ter nascido da leitura da carta aos Hebreus ou da própria noção do carácter ministerial dos sacerdotes que tem Cristo sacerdote como referência. Nesta leitura, o ministro sagrado foi configurado ao sacerdócio do Cristo para ser revestido de um caracter, de um poder espiritual, por meio do qual possa oferecer o sacrifício de Cristo. Assim também os fiéis são santificados de modo a serem habilitados com uma potência espiritual para o culto de Deus. Enquanto potência espiritual, o carácter é conferido por três sacramentos que operam a consagração, a destinação de uma pessoa a uma função espiritual; os restantes sacramentos operam a santificação por meio da purificação, como por exemplo a penitência.

Tomás não dirá claramente que o carácter seja uma graça dispositiva para receber maior graça; prefere distinguir a graça do carácter e dizer que o carácter é uma potência espiritual, um poder de participar nos sacramentos[15], uma configuração a Cristo para o culto divino[16]. Tomás de Aquino estende a configuração do sacerdócio de Cristo a todos os fiéis: assim como Cristo se oferece continuamente ao Pai, assim os fiéis se oferecem continuamente ao Pai por meio de Cristo. Tomás de Aquino desenvolve a tripla perspetiva do carácter como tripla configuração a Cristo: a configuração a Cristo como filhos por meio do batismo, a configuração a Cristo como soldados por meio da confirmação, a configuração ao sacerdócio de Cristo por meio da ordem. O carácter para S. Tomás de Aquino não se encontra na essência da alma mas na faculdade da inteligência onde se encontra a Imagem[17]. Por causa desta configuração a Cristo, o caracter do sujeito é incorruptível e imutável; a alma recebe uma participação a Cristo que é causa exemplar, instrumental e final.

Note-se forma muito particular que S. Tomás de Aquino além de associar o carácter ao culto que procede da santificação, ao efeito segundo da configuração ao sacerdócio de Cristo no sacramento, indica que o carácter é uma participação em Cristo. Na verdade, se os sacramentos produzem na alma humana uma participata similitudo divinae naturae, o sinal que trazemos em nós – signaculum etiam non sit sensible - é uma impressão do próprio Deus. “Tomás sabe que tratar da noção de sinal comporta uma precisão necessária, porque a definição augustiniana utilizada para sacramento não pode ser estendida ao carácter sem o recurso à similitudo”[18]. A dificuldade de S. tomás foi relacionar a graça e o carácter. S. Tomás de Aquino não relaciona a graça e o carácter, da mesma forma que não relaciona o Espírito e Cristo; é por essa razão que prefere guardar para o Espírito a obra da justificação e para Cristo a configuração/participação. Ainda que as Escrituras dizem, como Paulo, que os cristãos foram marcados pelo Espírito Santo, S. Tomás afirma que o carácter vem de Cristo.

 

Q.63,a1

São destinados aos atos convenientes à Igreja presente por um certo sinal espiritual que lhes é impresso e que se chama caráter.

Também pode chamar-se caráter ou sinal, por uma certa semelhança, tudo o que torna um ser semelhante a outro (…). Assim Cristo é chamado figura ou caráter da substância paterna, pelo Apóstolo.

A.2

Os sacramentos da lei nova imprimem caráter, porque por eles se destinam os homens ao culto de Deus segun­do o rito da religião cristã.

O caráter implica uma certa po­tência espiritual ordenada às cousas do culto divino. - Mas, devemos saber que essa potência espiritual é instrumental

A.3

Ora, o caráter eterno é Cristo mesmo, segundo aquilo do Apóstolo: O qual, sendo o resplendor da glória e a figura, ou o caráter, da sua substância. Logo, parece que o caráter se deve propriamente atribuir a Cristo.

or onde, é manifesto que o caráter sacramental e especialmente o caráter de Cristo, a cujo sacerdócio se assemelham os fiéis pelos caracteres sacramentais, que outra causa não são senão umas participações do sacerdório de Cristo, derivadas do próprio Cristo.

 

 



[1] J. Galot, La nature du caractère sacramentel, Desclée de Brouwer, Bruxelles, 1956, p. 25

[2] Galot, p. 27.

[3] Galot, p. 225.

[4] Galot, p. 229.

[5] Galot, p.229.

[6] Mauro Turrini, L’anthropologie sacramentelle de S. Thomas d’Aquin dans ST, III, q. 60-65, Paris, 1996, p. 446.

[7] Galot, p. 228.

[8] Galot, p. 146-170.

[9] Galot,p.147.

[10] Galot, p. 154.

[11] Galot, p. 171.

[12] Galot, p. 174.

[13] Galot, p. 175.

[14] Turrini, p. 449.

[15] Galot, p. 186.

[16] Galot, p. 184.

[17] Galot, p. 190.

[18] Turrini, p. 457.